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O S SETE CONTRA TEBAS

No documento A adivinhação na tragédia de Ésquilo (páginas 63-200)

A tragédia Os Sete contra Tebas, de acordo com a didascália, era a terceira da tetralogia com que Ésquilo obteve a vitória em 467 a.C e que compreendia ainda as tragédias Laio e Édipo e o drama satírico A Esfinge. A unidade temática dessa tetralogia, como sugerem os títulos das peças, reside nos acontecimentos funestos que atingiram a casa real de Tebas ao longo de três gerações: a de Laio, a de Édipo e a dos filhos deste, Etéocles e Polinices.

Pelo fato de Os Sete ser a última tragédia a compor a trilogia e a única supérstite, pode-se apenas inferir, dos fragmentos que restaram das duas outras tragédias e do próprio texto dos Sete, os acontecimentos representados em Laio e em Édipo. Conjectura-se que a primeira tragédia narraria as consequências funestas da desobediência de Laio a um oráculo de Apolo que o impedia de ter filhos. A segunda tragédia narraria a descoberta por parte de Édipo do parricídio e do incesto por ele cometidos, sua consequente reação, arrancar seus próprios olhos, e a maldição que ele lança sobre seus filhos1.

A terceira e última parte da trilogia sobre a casa real de Tebas narra, fundamentalmente, o cumprimento da maldição de Édipo sobre seus filhos: a morte que, inevitavelmente, um trará ao outro. Os Sete inicia-se, pois, na iminência de mais um acontecimento ruinoso: os filhos de Édipo, sobre os quais pesa a maldição do pai, encontram-se em lados opostos na guerra que está prestes a se travar pelo poder real de Tebas. Etéocles, detentor do poder, prepara-se para enfrentar o exército argivo que Polinices e Adrasto reuniram e que está prestes a atacar a cidade.

A ação dramática transcorre em Tebas. No prólogo (Se. 1-77), Etéocles apresenta a situação: a cidade encontra-se sitiada e o adivinho Tirésias prediz a iminência de um forte ataque. O Mensageiro chega trazendo notícias que confirmam as predições do adivinho, descrevendo a fúria sangrenta dos generais. No párodo (Se. 78- 180), o Coro, temendo pelo destino da cidade e agarrando-se às estátuas dos deuses, invoca proteção divina. Etéocles, no primeiro episódio (Se. 182-286), repreende-o duramente. No primeiro estásimo (Se. 287-368), o Coro, ainda temeroso e suplicando aos deuses, descreve o retrato triste e desolador de uma cidade tomada por inimigos. O

1 Para uma análise conscienciosa dos fragmentos de Laio e Édipo e hipóteses sobre o conteúdo dessas

tragédias, conferir a introdução à edição de Hutchinson dos Sete contra Tebas (1985) e a obra de De Dios, Esquilo: Fragmentos, Testimonios (2008).

55 segundo episódio (Se. 369-719) é a parte central da tragédia, tanto por seu conteúdo como por sua extensão. Nele, o Mensageiro conta a Etéocles e ao Coro a qual general do exército inimigo coube cada uma das sete portas da cidade. Tendo designado os respectivos opositores, Etéocles declara que irá defender a porta que coube a seu irmão Polinices. No segundo estásimo (Se. 720-791), o Coro rememora o triste destino de Édipo e de Laio, pressentindo que a terrível maldição que Édipo lançou sobre os filhos começa a se realizar. É o que acontece quando, no terceiro episódio (Se. 792-821), o mensageiro traz a notícia da morte dos irmãos, para desespero do Coro, que, no terceiro estásimo (Se. 822-847), lamenta-se pela desdita dos filhos de Édipo. No êxodo (Se. 848- 1004), entram em cena Antígona e Ismene, lamentando a sorte de seus irmãos e de sua estirpe. Finalmente, na cena final (Se. 1005-1078), o arauto anuncia a interdição ao sepultamento de Polinices, considerado traidor pela cidade, o que provoca a rebelião de Antígona, que afirma haver de sepultá-lo a qualquer custo2.

O diálogo divinatório, nos Sete, dá-se mediante uma miríade de sinais numinosos, que compreendem os vaticínios de dois ilustres adivinhos, Tirésias e Anfiarau, o oráculo apolíneo entregue a Laio, um sonho profético mencionado por Etéocles, a maldição de Édipo sobre seus filhos, a tiragem da sorte e uma profusão de palavras e imagens cledomânticas. A cledomancia é, aliás, nesta tragédia, um dos mais importantes suportes para o diálogo divinatório que se trava ao longo da ação dramática.

A importância da palavra falada perpassa toda a tragédia: contra Tebas, essa cidade que verte “fala grega” (Ἑλλάδος φθόγγον, Se. 72-3), insurgem guerreiros que, tendo pronunciado um juramento (Se. 45-60), agridem a cidade e os deuses com suas palavras insultantes, ameaçadoras, agourentas e com seus escudos igualmente eloquentes. Contra a “língua carente de ação” (γλῶσσαν ἐργµάτων ἄτερ, Se. 556) de tais inimigos, Etéocles contrapõe os braços (Se. 473, 554, 623-4) de homens hostis a discursos presunçosos (Se. 410), que se definem pela ação. Salvando assim a cidade, Etéocles, no entanto, perece, pois pesa sobre ele e seu irmão “a palavra votiva do pai” (πατρόθεν εὐκταία φάτις, Se. 841), consequência da desobediência de Laio ao oráculo “três vezes pronunciado” em Delfos (τρὶς εἰπόντος, Se. 746) e cujo cumprimento demonstra que “a voz de Deus não perde o gume” (θέσφατ’ οὐκ ἀµβλύνεται, Se. 844).

2 Para uma discussão sobre a autenticidade da parte final da tragédia, vejam-se, entre outros: R. D. Dawe,

“The End of Seven against Thebes”, CQ, 17 (1), 1967, p. 16-28; H. Lloyd-Jones, “The End of the Seven against Thebes”, CQ, 9 (1), 1959, p. 80-115; A. L. Brown, “The End of Seven against Thebes”, CQ, 26 (2), 1976, p. 206-19; E. Flintoff, “The Ending of the Seven Against Thebes”, Mnemosyne, 33 (3/4), 1980, p. 244-71.

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2.1) Etéocles e a palavra numinosa

A tragédia inicia-se com o discurso de Etéocles convocando todos os cidadãos – tanto os mais jovens quanto os mais velhos – para defender seu solo pátrio. O motivo da exigência do empenho de todos na defesa da cidade é a interpretação que o adivinho faz do auspício das aves, que revela a iminência de um severo ataque à cidade de Cadmo. Pondera Etéocles que, se até então a divindade os tem favorecido, agora o momento decisivo chegou e é assim enunciado por Etéocles:

νῦν δ' ὡς ὁ µάντις φησίν, οἰωνῶν βοτήρ, ἐν ὠσὶ νωµῶν καὶ φρεσίν, πυρὸς δίχα, χρηστηρίους ὄρνιθας ἀψευδεῖ τέχνῃ – οὗτος τοιῶνδε δεσπότης µαντευµάτων λέγει µεγίστην προσβολὴν Ἀχαιίδα νυκτηγορεῖσθαι κἀπιβουλεύσειν πόλει.

mas, agora, diz o adivinho pastor de pássaros, longe da pira, à escuta e em busca, atento às aves augurais, com arte sem mentira, esse déspota de tais modos de adivinhar diz que à noite se reúne para decidir-se o maior assalto aqueu contra a cidade.

(Se. 24-9)

O conteúdo do vaticínio – a reunião das tropas para decidir o assalto aqueu contra a cidade – é precedido de quatro versos em que se descrevem 1) o modo de adivinhação empregado pelo adivinho: a ornitomancia, visto que ele é dito um “pastor de pássaros” (οἰωνῶν βοτήρ, Se. 24), que se coloca “à escuta e em busca, / atento às aves augurais” (ἐν ὠσὶ νωµῶν καὶ φρεσίν ... χρηστηρίους ὄρνιθας, Se. 25-6) e que não recorre a outra forma de adivinhação, a piromancia; logo, “longe da pira” (πυρὸς δίχα, Se. 25); 2) a excelência do adivinho em tal arte divinatória: ele é qualificado como um “déspota de tais modos de adivinhar” (τοιῶνδε δεσπότης µαντευµάτων, Se. 27); 3) e a veracidade desse modo de adivinhação: trata-se de uma “arte sem mentira” (ἀψευδεῖ τέχνῃ, Se. 26).

Ainda que o adivinho não apareça em cena e se faça presente apenas através da proclamação que Etéocles faz de seu vaticínio e ainda que Ésquilo não o nomeie, sabe- se que se trata de Tirésias, famoso por estar presente nos mais importantes acontecimentos da casa real de Tebas e que é um dos mais ilustres adivinhos da Antiguidade. Ele desfruta de tal renome que Circe, na Odisseia, envia Odisseu a uma viagem ao Hades para consultá-lo, descrevendo-o da seguinte forma:

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µάντιος ἀλαοῦ, τοῦ τε φρένες ἔµπεδοί εἰσι· τῷ καὶ τεθνηῶτι νόον πόρε Περσεφόνεια οἴῳ πεπνῦσθαι· τοὶ δὲ σκιαὶ ἀΐσσουσιν.

cego adivinho, cuja alma os sentidos mantém ainda intactos. A ele, somente, Perséfone deu conservar o intelecto

mesmo depois de ser morto; as mais almas esvoaçam quais sombras. (Od. X, 493-5)

Circe atribui-lhe ainda o epíteto de “pastor de guerreiros” (ὄρχαµε λαῶν, Od. X, 538) e, quando da chegada de sua alma junto a Odisseu, ele é descrito tendo um “cetro de ouro na mão” (χρύσεον σκῆπτρον ἔχων, Od. XI, 90-1), uma insígnia digna de sua autoridade; na Ilíada, o sacerdote de Apolo, Crises, é descrito também portanto um “cetro de ouro” (χρυσέῳ σκήπτρῳ, Il. I, 15).

No que concerne à natureza do dom divinatório de Tirésias e à sua cegueira, a poesia homérica não oferece nenhuma informação, mas, em narrativas pós-homéricas, há diferentes versões a esse respeito. Uma delas, transmitida por Calímaco, conta que, como sua mãe, a ninfa Cariclo, costumava acompanhar Atena, deu-se o caso de Tirésias ver a deusa completamente nua em um de seus banhos. Como castigo, Atena tocou-lhe os olhos, cegando-os. Sua mãe, porém, rogou à deusa que restituísse a visão a seu filho. Como era impossível para Atena desfazer o mal que lhe havia causado, a deusa o compensou, outorgando-lhe o dom da adivinhação, grande renome, uma vida longa e o privilégio de manter a consciência mesmo após a morte (Call. Hino V, 121-30)3.

Apolodoro, em sua Biblioteca, narra, além desta versão, que ele atribui a Ferécides, outras duas. Em uma delas, o dom da adivinhação é-lhe inato, mas ao revelar segredos que os deuses não desejavam compartilhar com os mortais, Tirésias foi por eles castigado com a cegueira. Em outra versão, conta Apolodoro que o dom da adivinhação lhe foi outorgado por Zeus (Píndaro o chama “profeta de Zeus”: N., I, 60). Tirésias, tendo encontrado num bosque um casal de serpentes copulando, feriu-as, transformando-se em seguida em mulher, mas, tendo reencontrado as mesmas serpentes

3

Diz Atena nos versos de Calímaco: “farei dele um adivinho digno de ser cantado pelas gerações futuras, / de certo, muito mais notável do que os outros. / Conhecerá os pássaros, os de bom augúrio, os que voam / em vão e os que fazem presságios não favoráveis. / Muitos oráculos aos Beócios, muitos a Cadmo / irá proferir e, mais tarde, aos grandes Labdácidas. / Dar-lhe-ei um grande bastão, que conduzirá seus pés aonde lhe convir; / dar-lhe-ei também um termo da vida que por muito tempo se adia. / E será́ o único que, após morrer, vagará consciente / entre os mortos, honrado pelo grande Hagesilau.” (‘µάντιν ἐπεὶ θησῶ νιν ἀοίδιµον ἐσσοµένοισιν, / ἦ µέγα τῶν ἄλλων δή τι περισσότερον. / γνωσεῖται δ' ὄρνιχας, ὃς αἴσιος οἵ τε πέτονται / ἤλιθα καὶ ποίων οὐκ ἀγαθαὶ πτέρυγες. / πολλὰ δὲ Βοιωτοῖσι θεοπρόπα, πολλὰ δὲ Κάδµῳ / χρησεῖ, καὶ µεγάλοις ὕστερα Λαβδακίδαις. / δωσῶ καὶ µέγα βάκτρον, ὅ οἱ πόδας ἐς δέον ἀξεῖ, / δωσῶ καὶ βιότω τέρµα πολυχρόνιον, / καὶ µόνος, εὖτε θάνῃ, πεπνυµένος ἐν νεκύεσσι / φοιτασεῖ, µεγάλῳ τίµιος Ἁγεσίλᾳ’ Call. Hino V, 121-30). Tradução de Agatha Pitombo Bacelar (2007).

58 unindo-se novamente, voltou a ser homem. Tal experiência o tornou apto a responder à questão, postulada por Zeus e Hera, de quem sente maior prazer no amor: o homem ou a mulher. Por ter respondido que era a mulher, Hera vingou-se de Tirésias cegando-o, mas Zeus lhe concedeu o dom divinatório e uma vida longa (III, 6, 7). Esse mito foi retomado posteriormente por Ovídio nas Metamorfoses4.

Quanto à morte do adivinho, Apolodoro (III, 7, 3), Pausânias (IX, 33) e Diodoro (IV, 67, 1) narram o mesmo: após a tomada de Tebas pelos epígonos, Tirésias partiu em fuga e, tendo bebido das águas da fonte Telfusa, ali morreu. Não foi, entretanto, no local de sua morte que se instalou o oráculo de Tirésias e sim em Orcômeno, cidade rival de Tebas. De acordo com Bouché-Lecquercq (2003, pp. 764-5), este é um dos menos conhecidos oráculos heroicos. É provavelmente um oráculo tardio e, no século I d.C., Plutarco (De Def., 434 C) diz que o oráculo de Tirésias emudeceu, desaparecendo completamente5.

O que é notável nessas narrativas acerca de Tirésias é o fato de a sua cegueira aparecer relacionada a um castigo divino e o dom divinatório, juntamente com a longevidade, a um ato de compensação pela punição sofrida. Essa intervenção divina direta sofrida por Tirésias por parte dos deuses garante-lhe uma autoridade inigualável.

Na tragédia grega, algumas características básicas se mantiveram na representação de Tirésias; a saber, a sua cegueira e a sua idade avançada, símbolo tanto

4 Dizem os versos: “conta-se Jove, ébrio de néctar, ter deixado / seus graves afazeres e travado alegre /

prosa com Juno: ‘Sentes mais prazer que os homens / no sexo, certamente’, ele teria dito. / Ela negou. Aprouve-lhes levar o assunto / a Tirésias, nos dois modos de Vênus, douto. / Pois com dois toques de bastão em verde relva / violara a cópula de duas grandes víboras; / e de homem fez-se fêmea, por encantamento, / durante sete outonos. No oitavo as reviu / e diz: ‘Se vossas chagas têm tanto poder / de mudar em contrário a sorte do agressor, / ora vos ferirei’. Batendo em ditas cobras, / retorna à forma antiga e ao modo de nascença. / Feito arbitro, então, desta rixa jocosa, / põe-se ao lado de Jove. A Satúrnia ficou, / dizem, bem mais zangada que o caso pedia, / e os olhos do juiz danou à noite eterna. / O pai onipotente, posto não ser lícito / divo feito anular, em troca de olhos deu-lhe / a visão do futuro e a pena mitigou-lhe.” (forte Iovem memorant diffusum nectare curas / seposuisse graves vacuaque agitasse remissos / cum Iunone iocos et ‘maior vestra profecto est, / quam quae contingit maribus’ dixisse ‘voluptas.’ / illa negat. placuit quae sit sententia docti / quaerere Tiresiae: Venus huic erat utraque nota. / nam duo magnorum viridi coeuntia silva / corpora serpentum baculi violaverat ictu / deque viro / factus (mirabile) femina septem / egerat autumnos; octavo rursus eosdem / vidit, et ‘est vestrae si tanta potentia plagae’ / dixit, ‘ut auctoris sortem in contraria mutet, / nunc quoque vos feriam.’ percussis anguibus isdem / forma prior rediit, genetivaque venit imago. / arbiter hic igitur sumptus de lite iocosa / dicta Iovis firmat: gravius Saturnia iusto / nec pro materia fertur doluisse suique /iudicis aeterna damnavit lumina nocte; / at pater omnipotens (neque enim licet inrita cuiquam / facta dei fecisse deo) pro lumine adempto / scire futura dedit poenamque levavit honore, Metam. III, 318-38). Tradução de Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho (2010).

5 Para um apanhado mais completo a respeito de Tirésias, as narrativas a ele associadas e suas profecias,

conferir Bouché-Leclercq (2003, pp. 298-301; 764-5); sobre o papel de Tirésias como mediador, conferir o artigo de Carlos García Gual (1975); a respeito do papel de Tirésias como adivinho e mago, conferir o artigo de Marcello Carastro (2007); sobre a experiência de mudança de sexo de Tirésias, conferir Loraux (1989).

59 de sua sabedoria quanto de sua incomum longevidade. Ele é associado principalmente à arte augural. No Édipo Rei, de Sófocles, após as revelações de Tirésias, o Coro o chama de “sábio áugure” (σοφὸς οἰωνοθέτας, S. OT. 484). Em Antígona, Tirésias explica a Creonte o que observou dirigindo-se a seu “antigo assento augural, porto de todos os pássaros” (παλαιὸν θᾶκον ὀρνιθοσκόπον ... παντὸς οἰωνοῦ λιµήν, S. Ant. 999-1000). Nas Fenícias, de Eurípides, Tirésias entra em cena para comunicar os vaticínios que colheu “ao saber auspícios de aves” (οἰωνίσµατ' ὀρνίθων µαθὼν, E. Ph. 839). E, nas Bacantes, Penteu, irado com Tirésias, ordena a um de seus homens que destrua o lugar onde ele “sonda auspícios” (οἰωνοσκοπεῖ, E. Ba. 347).

A tragédia retratou-o fazendo predições ou dando conselhos referentes aos funestos acontecimentos que compõem a história dos Labdácidas, como acontece nos Sete. Sua dignidade e sabedoria são sempre ressaltadas e os insultos que a ele lhe dirigem Édipo ou Creonte nas tragédias de Sófocles, ou Creonte e Penteu nas tragédias de Eurípides, somente acentuam o poder da áte que perturba o espírito e obnubila o discernimento dos reis tebanos.

Diferentemente das tragédias supracitadas, nos Sete, os vaticínios de Tirésias são amplamente considerados por Etéocles; como se viu, o líder tebano apresenta Tirésias como um pastor das aves augurais, que exerce de forma soberana a sua arte, uma arte que não mente. É a interpretação que o adivinho faz dos auspícios que leva Etéocles, no prólogo, a conclamar todos os cidadãos para que se preparem para o combate.

Diante da certeza do ataque iminente dos argivos, Etéocles, no verso inicial da tragédia, reconhece a necessidade de “dizer o oportuno” (λέγειν τὰ καίρια, Se. 1) como seu dever enquanto dirigente e defensor da cidade de Tebas. Dizer o oportuno, em situação tão premente, é convocar todos os cidadãos à guerra, não importando se muito jovens ou muito velhos; é incitar-lhes o ardor bélico, relembrando-lhes a dívida que têm com a terra mãe que os criou; é dar instruções para que se posicionem para a batalha, ocupando as ameias, os portais, os parapeitos e os bancos das torres, as portas de saída; é também reportar os vaticínios do adivinho, conferindo dessa forma à mobilização e à participação de todos um caráter divinamente inelutável. Porém, dizer o oportuno, do ponto de vista da piedade grega, é também proferir palavras de bom augúrio e evitar a todo custo as de sentido ominoso.

Como se viu no capítulo precedente, a prática da cledomancia se fundamenta na percepção da linguagem como um aspecto fundamental do mundo: a palavra possui um nume que nela reside e que faz com que ela se cumpra, sendo, desse modo, profética.

60 Essa mesma relação do homem grego com a linguagem está na base do poder da maldição, da solenidade do juramento e da gravidade do perjúrio, do temor à imprecação pública, do uso de eufemismos e de antífrases, da prática da eufemia. São tanto formas de empenhar corretamente a palavra falada quanto de cuidado com seu uso em virtude de um reconhecimento de que a palavra falada, dependendo da ocasião e do contexto, é numinosa.

Veja-se, por exemplo, no Agamêmnon, o cuidado que os algozes de Ifigênia têm de amordaçá-la no momento de seu sacrifício, de modo que ela não lançasse uma maldição sobre o palácio (Ag. 235-7). E, na Teogonia de Hesíodo, a divindade que perjurasse sofreria o mais brutal dos castigos (Th. 794-804). Observe-se a preocupação do Coro, no Agamêmnon, em relação à imprecação pública (Ag. 456-7). Tome-se o exemplo da palavra “noite”, que frequentemente é chamada εὐφρόνης (benévola), pois, além de designar uma parte do dia, a palavra “noite” também é o nome de uma divindade, cujo domínio é o da privação do ser e, assim, para evitar a invocação desse aspecto do mundo, utiliza-se o eufemismo. Veja-se como na Ifigênia em Áulida, de Eurípides, quando a jovem parte voluntariamente para o sacrifício, ela pede aos dânaos que silenciem, isto é, que observem a eufemia (I.A. 1.469).

Por essa razão, quando Etéocles, no prólogo, fala sobre a possibilidade de serem malsucedidos na batalha, rapidamente ele procura neutralizar essas palavras de mau agouro pronunciando de antemão uma fórmula verbal apotropaica. Ele diz: “se, aliás, que isto não se dê, viesse infortúnio” (ὃ µὴ γένοιτο, Se. 5). O mesmo cuidado tem o Mensageiro, no segundo episódio, ao descrever as ameaças proferidas pelos atacantes. Em meio ao relato das ameaças de Capaneu à cidade, ele insere uma fórmula verbal apotropaica: “não o cumpra!” (ἃ µὴ κραίνοι τύχη, Se. 426). E faz o mesmo ao relatar as ameaças proferidas por Partenopeu “o que Deus não cumpra!” (ἃ µὴ κραίνοι θεός, Se. 549).

Apesar de todo o cuidado de Etéocles, no prólogo, em “dizer o oportuno” (λέγειν τὰ καίρια, Se. 1), o Coro de mulheres tebanas irrompe em cena, no párodo, aterrorizado, descrevendo, em seu canto, a alarmante proximidade do exército argivo, cujo estrépito chega a seus ouvidos, e as piores desgraças que podem advir dessa iminente guerra: a morte, o saque, a escravidão.

Por tal atitude do Coro, Etéocles, no primeiro episódio, repreende-o severamente. Viu-se nessa dura repreensão de Etéocles um traço de misoginia (BACON, 1964, p. 30), ou de comportamento excessivo, hybristés (PODLECKI, 1964,

61 pp. 284-5), ou ainda de impiedade por Etéocles impedir o Coro de mulheres a fazer suas preces (GOLDEN, 1964, pp. 80-82). Porém, como observa Cameron (1970, p. 99), a atitude repreensiva de Etéocles é duplamente motivada: tais demonstrações de terror por parte do Coro representam um perigo para a cidade à medida que podem provocar desordem e espalhar o pânico, enfraquecendo, assim, o ânimo dos guerreiros; mas também representam outro tipo de perigo, o de as mulheres, em sua algazarra, pronunciarem palavras ominosas, augurando, assim, um destino adverso à cidade.

O mesmo pode ser dito a respeito da insistência de Etéocles para que o Coro fique em silêncio. Durante o primeiro episódio, Etéocles ordena às mulheres tebanas que se calem quatro vezes seguidas:

σὸν δ' αὖ τὸ σιγᾶν καὶ µένειν εἴσω δόµων. Teu, aliás, é calar e ficar dentro de casa. (Se. 232)

Οὐ σῖγα µηδὲν τῶνδ' ἐρεῖς κατὰ πτόλιν; Silêncio! Nada disso fales na cidade!

(Se. 250)

Οὐκ ἐς φθόρον σιγῶσ' ἀνασχήσῃ τάδε; Não aguentarás isso calada nessa ruína? (Se. 252)

Σίγησον, ὦ τάλαινα, µὴ φίλους φόβει. Cala-te, infeliz! Não apavores os teus!

(Se. 262)

Essa insistência de Etéocles no silêncio do Coro tem a mesma dupla finalidade: não espalhar terror e desordem e, principalmente, não engendrar uma sorte funesta ao proferir, descuidadamente, palavras de mau agouro.

A mesma preocupação com o poder funesto das palavras de mau agouro está presente quando Etéocles repreende as mulheres tebanas por suas súplicas aos deuses. Note-se que o próprio Etéocles declara não se opor à honra aos numes (Se. 236); ou seja, não se trata de coibir uma prática piedosa por parte do Coro. O verdadeiro motivo da repreensão do filho de Édipo às súplicas aos deuses das mulheres tebanas diz respeito à linguagem em que elas formulam suas preces. Por esse motivo, Etéocles diz: “Não aconselhes mal, invocando Deuses” (µή µοι θεοὺς καλοῦσα βουλεύου κακῶς, Se. 223). Ora, o momento da súplica ao pé das estátuas, assim como o do sacrifício e o

62 da consulta a oráculos, é um momento solene, que requer a prática da eufemia, de forma que palavras ominosas devem ser cuidadosamente evitadas. Mas o que o Coro de mulheres tebanas faz é exatamente o oposto. Vejam-se alguns exemplos das súplicas feitas pelo Coro no párodo:

ἰὼ ἰὼ θεοὶ θεαί τ', ὀρόµενον

κακὸν ἀλεύσατε. Iò iò! Deuses e Deusas Repeli o mal emergente.

(Se. 86-7) θεοὶ πολιάοχοι πάντες χθονός,

ἴδετε παρθένων

ἱκέσιον λόχον δουλοσύνας ὕπερ·

Deuses que tendes a cidade todos, vinde do chão. Contemplai a tropa de virgens

súplice contra a escravidão.

(Se. 109-11) τί ῥέξεις; προδώσεις, παλαίχθων

Ἄρης, τὰν τεάν;

Que farás? Ó Ares, antigo terrícola trairás a tua terra?

(Se. 104-5)

ἀλλ〈ά µοι,〉 ὦ Ζεῦ 〈 Ζεῦ,〉 πάτερ παντελές, πάντως ἄρηξον δαΐων ἅλωσιν

Eia, ó Zeus, Zeus, pai perfectivo, afasta toda captura por inimigos

No documento A adivinhação na tragédia de Ésquilo (páginas 63-200)

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