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1.3 A justiça e Os justos

1.3.2 O sangue da liberdade

O conflito essencial na peça se dá entre dois revolucionários, um que não mede consequências para fazer valer a causa, Stepan, e o outro que mantém sempre seus limites morais, Kaliayev. Evidentemente, a posição camusiana, que também se define por essa reflexão entre meios e fins, é representada por Kaliayev. Stepan, por outro lado, representa a posição sartreana com relação à ação revolucionária,73 em que os fins podem justificar os meios.74 Kaliayev é escolhido no grupo para assassinar o Grão-Duque Sérgio Alexandrovich, filho do então czar Alexandre II da Rússia e, portanto, importante figura do regime czarista.

Curiosamente, o título da tradução para o inglês dessa obra ficou estabelecido como The Just Assassins. Como podemos ver, trata-se de uma peça que busca descrever uma situação na qual a justiça pode levar ao assassinato, ou, como Quadros (s/d b) expressa no prefácio dessa obra, “Camus não aborda aqui o problema da justiça, mas o dos homens que por ela lutam e que, fazendo-o com igual sinceridade, dela se podem aproximar ou afastar.” (J, p. 7). E o assassinato, ou seja, o direito ao jugo sobre a vida de outro, é um ponto central da peça e de nossa discussão em torno da justiça.

O ponto de confronto das posições de Kaliayev e Stepan expressa-se com grande clareza na primeira das Cartas a um amigo alemão (1948) – coleção de

publicações destinadas ao jornal de resistência Combat. Lá podemos encontrar a posição do “amigo alemão”, expressa, sobretudo, na afirmação: “A grandeza do meu país não tem preço” (CA, p. 17). Nessa carta, Camus não discute que alguma grandeza seja alcançável com “campos de concentração e fábricas de morte”, mas seu preço é justamente a justiça. Ainda tratamos da relação entre meios e fins na ação política e, nesse sentido, acreditamos que podemos estabelecer uma relação de equivalência entre a posição de Stepan e a do amigo alemão. Para Camus e Kaliayev, como o interlocutor da primeira carta, ao contrário, é a justiça que não tem preço e

73 Os Justos foi publicada dezoito meses depois de outra peça de Sartre que tratava do engajamento

político chamada As mãos sujas. Alguns comentadores, como O’Donohoe (2012) afirma que Os Justos oferecem uma “resposta implícita” (2012, p. 72) à peça de Sartre.

74 Chegando a fazer publicamente a justificativa do “massacre de Munique” nas Olímpiadas de 1972,

quando afirma: “terrorismo é uma arma terrível, mas o pobre explorado não tem nenhuma outra” (tradução nossa) em SARTRE, Jean-Paul. La cause du peuple. Número 29, outubro de 1972.

nada, nem a felicidade ou grandeza de um povo, é urgente o suficiente para o seu sacrifício.

A opção pela primazia dos fins na ação política se constrói no que definimos anteriormente por “messianismo” e que é expresso em toda a sua clareza em Os

Justos na posição de Stepan. Logo após a falha do primeiro atentado, o grupo parece aceitar a justificativa de Kaliayev, que coloca o assassinato das crianças como o exemplo de um limite da ação revolucionária. Não devemos deixar de notar que essa noção de limite é a mesma que chamamos de medida, ao introduzir o tema da justiça. Stepan, por outro lado, dá como resposta a essa justificativa a receita da desmedida, a justiça ideal da revolução:

Não há limites. A verdade é que vocês não acreditam na revolução. (Todos se levantam, excepto Yanek). Não acreditam. Se acreditasse totalmente, integralmente, se tivessem a certeza de que pelos nossos sacrifícios, pelas nossas vitórias, conseguiríamos construir uma Rússia liberta da tirania, uma terra de liberdade que acabará por cobrir o mundo inteiro, se não duvidassem de que o homem então, liberto dos seus senhores e dos seus preconceitos, levantaria ao céu a face dos verdadeiros deuses, o que pesaria a morte de duas crianças? E se a morte das crianças vos detém, é porque não têm certeza de ter esse direito. É porque não acreditam na revolução. (J, p. 79)

Stepan é um artesão da revolução e sabe, precisamente, o que fazer para levá- la a cabo, e nada o impediria nisso, nem o assassinato de crianças. Mas a velha recomendação de não esperar a mesma precisão no campo ético que na matemática, aplica-se aqui: A lei é, fundamentalmente, geral e, por principio, incapaz de julgar com precisão cada caso. Aqui, os pensamentos antigo e contemporâneo repelem uníssonos uma abordagem técnica da ética, ou seja, uma regra de ação guiada pela lógica de uma ideia absoluta, como também vimos em Calígula. Por isso, apenas Kaliayev é capaz da excelência revolucionária. Nesse sentido, ao que chamamos de “excelência revolucionária”, Camus chamaria apenas de revolta e se define, sobretudo, de modo que sua ação não se volte contra seu impulso original. Ou seja:

Ela é a recusa de uma parte da existência em nome de outra parte que ela exalta. Quanto mais profunda é a exaltação, mais implacável é a recusa. Em seguida, quando, na vertigem e na fúria, a revolta passa a tudo ou nada, à negação de todo ser e de toda a natureza humana, é nesse ponto que ela se renega. Somente a negação total justifica o projeto de uma totalidade conquistada. Mas a afirmação de um limite, de uma dignidade e de uma beleza comuns a todos os homens só acarreta a necessidade de estender esse valor a todos e a tudo e marchar para a unidade sem renegar suas origens.” (HR, p. 287)

Isso significa que a nova ordem à qual a revolta aspira não deve se pretender absoluta como a ordem contra a qual ela opera. Por essa razão, Kaliayev tem a lucidez de perceber o aspecto totalitário do idealismo de Stepan. Yanek, como Camus, prefere “a mãe” a essa justiça cega que se dispõe a matar inocentes. O critério de definição dessa posição, ou seja, a medida para a justiça defendida por Camus é a afirmação de um valor que convencionaremos chamar, aqui, de amor e que representa o que nos referimos anteriormente como amparo ou lastro emocional do argumento, ora desenvolvido.

Nesse sentido Dora, uma espécie de Diotima russa,75 é a personagem que insere essa noção fundamental amor na peça. Ela afirma que “Os que amam verdadeiramente a justiça, não têm direito ao amor” (J, p. 104), mas essa é a justiça das bombas. A justiça defendida por Camus e Yanek é nas palavras de Dora a “justiça com ternura” (J, p. 105). Por outro lado, em discussão com Stepan, ou seja, dentro da lógica revolucionária e da justiça ideal, Dora admite que o amor só é possível “depois” (J, p. 112), isso é, no fim da história, quando a revolução tiver sido completada e essa justiça revolucionária, estabelecida. Por isso, Stepan diz odiar os seus semelhantes (J, p. 113). Nessa perspectiva, assim como para Calígula, a alteridade é, justamente, o problema no estabelecimento da ordem ideal.

Essa é uma discussão fundamental, na medida em que ela regula a justificativa para o assassinato. Como podemos perceber, ela se articula, justamente, na possibilidade de anular o outro por trás de uma ideia. Vemos isso claramente quando Yanek fala da prisão que lançou uma bomba sobre a tirania e não sobre um homem (J, p. 132). A resposta do chefe de polícia, apesar de seu cinismo, denuncia o

75 Filósofa grega que figura no Banquete de Platão e que, nesse livro, também tem um papel

ponto para o qual Camus quer nos chamar atenção – Skouratov fala: “Sem dúvida, mas foi o homem que a recebeu” (J, p. 132). Podemos encontrar nessa frase o sentido que Camus busca estabelecer com a sua noção de justiça. Esse reconhecimento do outro, indelével por qualquer ideia, estará na base da justificação do “papel do escritor”.

Capítulo 2

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