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O semblante da miséria

No documento Dissertação Antonio Carlos Aguiar Dias (páginas 128-131)

Um dos últimos trabalhos referentes à história de Sobral, publicado com apoio do Governo do Estado do Ceará, em 2011, é a tese de doutorado da Socióloga Elza Marinho Lustosa da Costa, intitulada “Sociabilidade e Cultura das Elites Sobralenses 1888-1930”. No decorrer do trabalho, Costa (2011) afirma:

O período de grande vitalidade econômica de Sobral vai de 1880 a 1930. Seu declínio começa a partir de 1932, com a abertura de estradas para Fortaleza e outros municípios antes abastecidos por Sobral, fazendo com que a cidade perca sua posição de principal entreposto comercial da região norte do Ceará.

Ao lado desta vitalidade política e econômica, Sobral também se firmou como uma cidadela da Igreja Católica, cujo poder ia muito além dos negócios celestiais, traduzindo-se em bens, votos, prestígios, poder e todas as coisas terrenas que cobiçam os homens (Costa, 2011, p. 10).

127 Contudo, como já observamos em vários trechos de Cassacos, essa vitalidade econômica, provavelmente, estava restrita a uma pequena parcela da população sobralense. Aparentemente, não representando a realidade citadina do início do século XX. Fato ponderado nos complementos de Costa (2011):

Nesta fortaleza econômica, política e moral surgiu uma elite que desenvolveu hábitos, atitudes e comportamentos que buscavam certa sofisticação e a autopromoção. A afirmação ostentatória das elites sobralenses, que atinge sua expressão maior na diversidade dos domínios da vida urbana, formou um sistema que chamamos de “cultura das elites de Sobral (Costa, 2011, p. 11).

Distante do discurso dessa cultura elitizada, Cordeiro de Andrade traça o cotidiano da urbe recheado de contemplação determinista típico da geração de 30.

Imbuído dessa ideia e da realidade vivida, Cordeiro utiliza um discurso que distancia o leitor de uma geografia patética, isto é, de um romantismo à terra, e o aproxima de uma paisagem que, para Dardel (2011) :

(...) não é, em sua essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, manifestação de seu ser com os outros, base de seu ser social (Dardel, 2011, p. 32).

Agindo como um integrante da geografia local, o escritor se coloca e nos coloca dentro do mercado público da cidade e, em seguida, no matadouro público:

Eram os meninos creados á tôa. Pela manhã, depois de dizerem, “benção, pae, benção, mãe”, rumavam à feira, em falange, trapudos, a ajudar aos serranos pôrem as cargas a baixo, pastorear os seus animais, para depois terem direito de catar, nos surrões, de cabeças mergulhadas para dentro, as rebarbas das rapaduras que se quebravam durante o atrito da viagem de Meruoca a Sobral.

Ao meio dia, estavam no curral do açougue, uns com cuias, outros com urús de palha de carnaúba, á espera do sangue das rêzes que se entregavam passivamente á morte, isto quando não eram abatidas vacas prenhas, no mêz de darem cria, para safarem-se com os monjolos, já encabelados, rumo ao morro vermelho do curral, como bando de urubús famintos, mas diferentes dos urubús, porque a presa era repartida equitativamente. A’ tarde, rentes nas estações, aceirando o bonde bagageiro, puxado a burro, que fazia o transporte de farinha da colonia, ou feijão de arrancar, chegados do Pará, via Camocim. Os mais desprotegidos da sorte, os que siquer não amialhavam dez-tões, para a compra de um canivete

128 “Corneta”, nem tão pouco o conseguiam no jogo dos

dados, a espano e dois manos, improvisado nas calçadas das casas do lado da sombra, conduziam discretamente, no cós das calças, um arco de barril ou um estilhaço de vidro de garrafa de cerveja, o que facilmente adquiriam, no boeiro da praça do Mercado, atulhado de pacótes de excremento humano em adeantado estado de decomposição. Furavam, então, sacos e paneiros de farinha, enchiam os bolsos, enquanto o Antonio Chorão, o bolieiro os não advirtia com ameaças (Andrade, 1934, p. 11, 12 e 13).

Mais adiante, somos inseridos, juntamente com Andrade (1934), na realidade deplorável do centro da cidade, habitado por dezenas de miseráveis, que causa uma distorção no cenário romano desejado pela elite sobralense:

Eram três horas da tarde. A cidade se quebrantava num esmorecimento de morte.

Descia a rua da Aurora um batalhão de flagelados. Alguns baús tauxeados, em costas de jumentos esqueleticos; meninos no meio da carga, agarrados aos cabiçotes das cangalhas, caras chupadas, lambendo pedaços de rapadura; uma asa branca, triste, piando, dentro de uma gaiola; um papagaio tagaréla que fazia ginástica em redor dum garajáu; mulheres que conduziam crianças de cueiro, enroladas em molambos sujos e fedorentos, dependurados de tipoias... Chôro. Falas arrastadas, como si tivessem mêdo de sair da garganta... Flagélo. Resquicios ambulantes de lares devastados. A sêca. A fôme...

Debaixo do tamarideiro do quiosque, na praça do Mercado, homens comiam, apressados, pedaços de jabá sapecados nos fogareiros das velhas cafeteiras, a farinha dagua ao fundo da copa do chapéu, os olhos espantados, denunciando o mêdo de que os outros os não fossem a ajudar naquêle miseravel repasto (Andrade, 1934, p. 63 e 64).

Embreados dessa dura realidade, observamos que o homem do sertão vivencia um ecótono social. A briga com o meio e consigo mesmo deixa de ser pela sobrevivência e passa a ser por uma causa que destrói os restos da dignidade humana. A razão do ir ou ficar não é por melhores dias e sim onde morrer com melhor pundonor.

No sertão, pelo menos, o pobre homem tinha com que enganar a barriga das crianças. Era uma ou outra frutinha de mandacaru, ao alcance da mão, um palmito, um pirão de farinha de mucunã, ou de páu mocó, e até maniçoba, num lento suicídio, mas de pança cheia, todo o povo.

129 Morriam intoxicados, de fome não! (Andrade, 1934, p.

44 e 45).

O resultado de toda essa mazela social não é apenas a morte física, mas também a de tornar-se um “morto vivo” capaz de destruir os seus próprios valores culturais e religiosos, a partir do instante em que a única alternativa é o aviltamento do próprio corpo:

Mocinhas cruzavam, apressadas, de uma bodega para outra, com lançadeiras de maquina, em rogos lamuriantes, sob a chalaça de uns, as propostas indecorosas de outros:

– Vamos morar comigo, minha filha! Te dou tudo só prá parir... (Andrade, 1934, p. 64 e 65).

Defronte dessas cenas, verificamos que a realidade geográfica projetada é:

(...) para o homem, então, o lugar onde ele está, os lugares de sua infância, o ambiente que atrai sua presença. Terras que ele pisa ou onde ele trabalha, o horizonte do seu vale, ou a sua rua, o seu bairro, seus deslocamentos cotidianos através da cidade. A realidade geográfica exige, às vezes duramente, o trabalho e o sofrimento dos homens. Ela o restringe e o aprisiona, o ato à “gleba”, horizonte estreito imposto pela vida ou pela sociedade a seus gestos e a seus pensamentos. A cor, o modelado, os odores do solo, o arranjo vegetal se misturam com as lembranças, com todos os estados afetivos, com as ideias, mesmo com aquelas que acreditamos serem as mais independentes (Dardel, 2011, p. 34).

Por fim, como uma cidade que buscava uma romanização espiritual e arquitetônica poderia conviver com toda essa discrepância em sua geografia social? Quais as posições que o poder vigente poderia tomar para abstrair essa paisagem que contrariava a ordem social almejada?

No documento Dissertação Antonio Carlos Aguiar Dias (páginas 128-131)