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O sentido objetivo da Anistia: “a lei seca”

3. TRAJETÓRIA DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL I: NEGACIONISMO

3.2 Lei de Anistia: a produção do silêncio

3.2.1 O sentido objetivo da Anistia: “a lei seca”

Diz a lei:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos

ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos

políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes

de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por

motivação política.

§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram

44 Seria muito interessante observar a implementação dessa lei pelo sistema de justiça, a fim de perceber como os operadores do direito a utilizam para legitimar o silêncio que discutimos na sessão anterior, ou ainda, contra ela a fim de garantir direitos. No entanto, não é este o escopo desta investigação.

condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e

atentado pessoal. 45

Iniciamos análise com a análise da definição e da caracterização do crime político na lei. Isso é importante, porque indica sobre o que se pretende silenciar e orienta o se deve interpretar como atos políticos durante a ditadura. O caput do artigo 1º diz que são anistiados todos que cometeram crimes políticos e conexos a estes. Já nos parágrafos 1º e 2º procurou-se caracterizar o que seria cada uma dessas categorias. Enquanto no 1º parágrafo os chamados “crimes conexos” são inseridos no rol de crimes políticos sem serem tipificados textualmente, no parágrafo 2º excluem-se da anistia os “crimes de terrorismo” deixando-se seu significado claro na literalidade da lei – assaltos, sequestros e atentado pessoal. Assim, vemos que neste mesmo parágrafo não se reconhece que as ações armadas dos grupos guerrilheiros sejam motivadas por questões políticas, enquanto os conexos podem ser quaisquer crimes. Nesse sentido, busca-se descontextualizar, deslegitimar um tipo específico de violência política, qual seja: aquelas praticadas pelos contestadores armados do regime classificados pela lei como criminosos, ou pior, terroristas. Ou seja, há ações que são excluídas das possibilidades de anistiamento porque se retira, na verdade, sua natureza de motivação política46. Por outro lado, atribui-se uma natureza política aos crimes conexos que sequer estão nomeados.

Nesta contraposição entre crimes conexos e crimes de terrorismo está o sentido lógico da política: não tornar claros os atos de exceção, obscurecer um determinado tipo de ação, que na realidade das experiências vividas e no contexto do debate público, sabia-se bem do que se tratava47.

Forja-se, assim, uma situação insidiosa de legitimação da mentira e da hipocrisia na vida política do país. É no léxico “crimes conexos” que está a tentativa de negar e de silenciar sobre os atos “irreveláveis” – na visão dos militares e seus aliados civis – ou melhor, sobre as violações aos direitos humanos.48 Concretamente, a lógica é não deixar claro, não nomear e não

45 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6683.htm. Acessado em 06-01-2015.

46 É importante fazer uma ressalva aqui sobre a generalização da acusação de terrorismo que o governo militar, através de suas estruturas repressivas faziam aos opositores, conforme apontou o Relatório Brasil Nunca Mais (1985) no que se refere à montagem dos processos judiciais.

47 Não podemos esquecer que havia denúncia, inclusive no plano internacional, das práticas de tortura, morte e desaparecimento. Ver Mezarobba, 2003. Além disso, na “Coluna do Castello” do Jornal do Brasil de 28-071979, o Jornalista Carlos Castello Branco expõe os motivos dos militares em restringir a anistia: proteger as pessoas que atuaram nos “doicodis”. Texto disponível em

https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19790628&printsec=frontpage&hl=pt-BR . 1º. Caderno, página 2. Acesso em 13-12-2016.

dar definição exata aos atos de exceção. Stanley Cohen (2005) fala em um estado de negação no qual se sabe “que algo há sucedido pero recusa aceptar la categoria assignada a sua actos” (p.98). Essa obscuridade da lei foi identificada pelo ex-ministro Ayres Brito do Supremo Tribunal Federal, em 2010, quando do julgamento da ADPF 153, no qual se discutia a constitucionalidade da Lei de Anistia. Diz o Ministro:

Convenhamos, a Lei de Anistia poderia anistiá-lo [o torturador], mas que o fizesse o Congresso Nacional claramente, sem tergiversação e não é isso que consigo enxergar na lei.49

Assim, se na “lei seca”, ou ainda, na vontade objetiva da lei não se consegue saber do que se trata a expressão “crimes conexos”, como chegamos a uma situação de inexistência de processos penais de crimes comuns, como tortura, sequestro, ocultação de cadáver e assassinatos cometidos por agentes estatais durante a ditadura civil-militar? Esta é a indagação que fez o Ministro Ricardo Lewandowski, em 2010, durante o julgamento da ADPF-153. É na declaração de voto do próprio Ministro que encontramos um indício de resposta. Segundo o magistrado:

A ausência de ações penais contra os agentes do Estado pela prática de crimes comuns durante o período estabelecido na Lei 6.683/1979, qual seja, entre 02

de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, está a revelar que se

generalizou a impressão, entre os operadores do Direito, de que a anistia teria abrangido todas as condutas delituosas praticadas naquele lapso temporal. Em outras palavras, ela englobaria, genericamente, os vários atores

do cenário político de então, de modo a abortar, ainda no nascedouro, qualquer iniciativa de responsabilização criminal individualizada.50 (grifo nosso)

O Ministro observa que há entre os operadores da lei um entendimento doutrinário

49 A citação é uma transcrição feita pela pesquisadora a partir de vídeo gravado durante a sessão de julgamento da ADPF 153 e disponibilizado no Canal do STF no Youtube, já que o voto do referido ministro não foi publicado até o momento do acesso. https://www.youtube.com/watch?v=5ranNPsDDAk . Acessado em 26- 112016.

50 Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/voto-ministro-lewandowski-lei-an.pdf . Acessado em 26-11-2016. 53 No voto do Ministro há uma longa digressão sobre o significado de crimes conexos e o entendimento jurisprudencial daquela Corte sobre motivação política. Não cabe nessa pesquisa analisar em profundidade esses termos, mas eles são interessantes para nos fazer compreender o voto divergente do magistrado, contra a compreensão de que crimes de lesa humanidade são abarcados pela Lei 6.683/79.

generalizado de que a Lei da Anistia abarca os crimes de todas as naturezas, inclusive aqueles que não são conexos ao crime político 53. No entanto, como discutimos, esta interpretação não

está expressa na vontade objetiva da lei. Há, na verdade, uma inominação seletiva. Assim, a questão que se abre é saber como os juristas, e mesmo outros atores sociais e políticos, puderam interpretar essa norma da forma como o Ministro coloca. Desse modo, podemos buscar resposta para esse problema olhando para a “vontade subjetiva do legislador”, para usar termos do voto de Ayres Brito, a fim de buscar o que chamamos de “interpretação desta lei.

Desta feita, analisaremos o discurso do ex-presidente João Figueiredo em dois documentos: primeiro, na mensagem escrita e encaminhada ao Congresso Nacional explicando os termos da anistia e, segundo, no discurso presidencial no momento da assinatura em que é dado o encaminhamento ao Projeto de Lei ao poder legislativo, como seguem respectivamente apresentados na próxima seção.