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O sentido da Razão aberta e sensível na trama do trabalho de campo

1. MUCAMBOLANDO, MUCAMBIANDO, MUCAMBANDO

1.4 O sentido da Razão aberta e sensível na trama do trabalho de campo

Para uma compreensão da constituição de determinada cultura se faz necessário a realização de textualização que considere, a partir de um movimento circular, determinado aspecto cultural do lugar que depois o contextualize em uma realidade mais global (RICOEUR apud. CLIFFORD, 1998). Este caminho circular exige dispositivos e, acima de tudo, uma postura do pesquisador pautada na escolha de algumas orientações teóricas que alimente seu olhar, seu escutar e seu escrever em

campo e, sobretudo uma atitude sensível frente aos sujeitos e seus processos de constituição do modo de vida.

Roberto Cardoso de Oliveira (2000) em seu texto Trabalho do Antropólogo: Olhar, ouvir e escrever coloca em foco o que ele denomina de atos cognitivos como etapas dependentes da investigação empírica dos fenômenos sociais tanto quanto a construção do texto resultante da pesquisa: o olhar, o ouvir e o escrever. O olhar e o ouvir etnográficos, como atos cognitivos que necessitam de disciplinamento e de domesticação teórica para produzir um discurso escrito criativo, voltado à construção da teoria social, uma vez que, “seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade.” (OLIVEIRA, 2000, p. 19)

Considero o argumento de Roberto Cardoso Oliveira (2000) fundamental para o planejamento, execução e interpretação do trabalho de campo do tipo etnográfico, uma vez que, o lugar de nossa formação acadêmica deve ser problematizado e utilizado sob pena de escamotearmos valorosas informações advindas dos episódios ocorridos em campo por falta de um repertório teórico capaz de, por uma espécie de prisma, permitir

a visualização da imagem. Por outro lado, a ideia de recuperar a sensibilidade na apreensão do objeto

investigado também merece ser destacada aqui. Esta qualidade delicada, como diz Lévi-Strauss (1996), abarca corpo e mente na busca de compreender o fenômeno aparentemente impenetrável ou, muitas vezes, naturalizado porque familiar: seus sentidos complexos e sua inteligibilidade mais densa por meio da sensibilidade, do faro e do bom gosto, ou seja, de qualidades delicadas. Qualidades que fogem do racional puro e da perspectiva lógica e que, por este motivo, foram renegadas ao anonimato da vida privada das pessoas. No entanto, o conhecimento não pode se restringir a uma só perspectiva e o significante é “[...] a mais elevada forma de ser racional [...]” (LÉVI- STRAUSS, 1996, p. 53).

Inspirado na figura mitológica de Dionísio, Maffesoli (2005) apresenta a sua proposta de se compreender o mundo onde a solidificação de uma pluralidade de práticas na compreensão dos fenômenos sociais é utilizada:

Dizendo o mesmo em outras palavras, convém elaborar um saber “dionisíaco” que esteja o mais próximo possível de seu objeto. Um saber que seja capaz de integrar o caos ou que, pelo menos, conceda a este o lugar que lhe é próprio, um saber que saiba, por mais paradoxal que isso possa parecer, estabelecer a topografia da incerteza e do

imprevisível, da desordem e da efervescência, do trágico e do não- racional. Coisas incontroláveis, imprevisíveis, mas não menos humanas. Coisas que, em graus diversos atravessam as histórias individuais e coletivas. Coisas, portanto, que constituem a via crucis do ato de conhecimento (MAFFESOLI, 2005, p. 13).

O reconhecimento dos diversos significados e sentidos advindos das práticas humanas e também dos elementos da subjetividade adstritas ao próprio pesquisador fez com que Maffesoli (2005) sugerisse uma fenomenologia. Tal fenomenologia se fundamenta nos preceitos fenomenológicos de autores como: Edmund Hursserl (1859- 1938), Georg Simmel (1858-1918), Alfred Schutz (1899-1959), Gilbert Durand (1969) e Martin Heidegger (1889). Vale destacar que a fenomenologia apresentada por Maffesoli (2005) apropria-se das contribuições destes pensadores e acrescenta, na atitude investigativa de fenômenos sociais contemporâneos, as dimensões do sonho, do afeto, do sentimento, do lúdico.

O discurso moderno que nos orientou a compreender as experiências coletivas, as relações sociais e suas problemáticas a partir de grandes conceitos e de análises macros, tal como argumenta Maffesoli (2005), deixa escapar ambivalências, ambiguidades e contingências do viver social. A diversidade inerente neste viver social se manifesta por formas espontâneas e às vezes contraditórias e só podem ser observadas e compreendidas através de uma aproximação sensível do cotidiano daqueles que constroem e se constroem nos espaços das relações primárias (Idem.).

As coisas e as pessoas são o que são; procedem e organizam-se de acordo com uma disposição que lhes é própria. Assim, em vez de desejar “pega-las” no conceito, talvez valha mais a pena acompanhar a energia que está em ação em tal propensão. De minha parte propus pôr em ação um pensamento de acompanhamento, uma “metanóia” (que pensa ao lado), por oposição a “paranóia” (que pensa de um modo impositivo) próprio da modernidade. Algo como uma sociologia da carícia sem mais nada a ver com o arranhão conceptual. (MAFFESOLI, 2005, p. 19) [grifos meus]

Este desafio da Sociologia da Carícia coloca em cena o cotidiano como um espaço-tempo fundamental para a atividade de pesquisa. Um cotidiano de um indivíduo ou grupo não apenas orientado por um comportamento racional, mas, sobretudo, por um indivíduo governado pelo afeto, pelo simples sentimento de pertencer à. A compreensão de um grupo, ou de um coletivo como é o caso, deve considerar que o que faz com que pessoas se liguem, desliguem e re-liguem a determinado Movimento Social pode está relacionado não apenas a racionalidade, mas também a afetividade. Nestes termos, o indivíduo deixa de ser compreendido como aquele que é dirigido apenas por

uma razão técnica instrumental, este, passa a ser visto na contemporaneidade, como sujeito orientado pelas fulgurâncias da afetividade, do sentimento, do sensível. Um indivíduo que vive em um tempo em que os avessos se ligam. Um indivíduo que se constitui com o outro numa relação dialógica das diversas facetas opostas do cotidiano.

Assim se exprime a sinergia da razão e do sensível. O afeto o emocional, o afetual, coisas que são da ordem da paixão, não estão mais separados em um domínio à parte, bem confinados na esfera da vida privada; não são unicamente explicáveis a partir de categorias psicológicas, mas vão torna-se alavancas metodológicas que podem servir à reflexão epistemológica, e são plenamente operatórias para explicar os múltiplos fenômenos sociais, que, sem isso, permaneceriam totalmente incompreensíveis. Em outras palavras, é preciso fazer de uma fraqueza uma força inegável, e, perceber que, ao negar certos aspectos do dado mundano, corre-se o risco de culminar com seu retorno em massa de maneira perversa. Numa palavra, compreender que a racionalidade aberta integra como parte o seu contrário, e que é dessa conjunção que nasce toda percepção global (MAFFESOLI, 2005, p. 54).

A razão aberta apresentada pelo autor permite encarar os coletivos, os sujeitos e suas comunidades sem o poder historicamente ligado a razão puramente instrumental. Permite, também, que o próprio pesquisador deixe-se seduzir e sinta integralmente as potencialidades das experiências dos sujeitos por ele investigados, no dizer de Maffesoli (2005, p.56) “é estando enraizado no ordinário, que o conhecimento responde melhor a sua vocação: a libido sciendi. Por que não dizer: um saber erótico que ama o mundo que descreve.”

O olhar por dentro pode despontar atitudes e práticas racionais fundamentadas em uma perspectiva lógica, como pode também revelar práticas e atitudes que fogem a lógica racional e se filiam e se identificam especialmente com dimensões afetiva. Neste sentido, o autor se pergunta: como surpreender o dinamismo em ação na vida diária, dar conta da razão interna que percorre, por vezes de modo desordenado, os pequenos atos criativos vividos dia a dia? Qual poderia ser a sensibilidade teórica, ou melhor, as categorias úteis e necessárias para perceber e compreender novas formas de sociabilidade que nascem sob nossos olhos? Para tentar responder tais desafios o autor sugere três categorias: a descrição, a intuição e a metáfora.

Descrever é buscar perceber todas as formas fundantes da vida sem, contudo fragmentar as relações sociais; o conteúdo das formas sociais é portanto descrito a partido que ele denomina de raciovitalismo. Esta descrição, para Maffesoli (2005) é atenta aos fenômenos empíricos da vida cotidiana que são compostos, segundo o autor,

de formas estáticas e dinâmicas que devem ser acariciadas por um olhar que reconheça, em profundidade, o que acontece na vida banal e que se manifestam de diversas maneiras: lógicos/racionais; emocionais/ lúdicos.

A apreensão dos fenômenos sociais é marcada por uma espécie de relação pendular conflituosa entre: o outro nativo e o outro pesquisador; interior e o exterior; local e o global; o sensível e o racional. Para completar a lista, Laplantine (2004) acrescenta: “enfim entre a descrição e a explicação”. Segundo o autor, a racionalidade científica se construiu amparada na ideia de ruptura com o universo da sensação, especialmente com o da visão, considerado como ilusório e ingênuo foi negligenciado a favor de uma ciência pautada na explicação racional. Desta maneira, a descrição, fundamental para a compreensão da sociabilidade contemporânea, deve permanecer às margens da ciência apenas como primeira etapa do processo investigativo das Ciências Sociais devido ao seu caráter problemático.

No entanto, no universo das Ciências Sociais se verifica a busca por posturas investigativas que não se restrinjam a uma sistematização de teorias e tratados científicos. Uma crise dos paradigmas se arrasta há algum tempo no meio acadêmico e, neste contexto, a descrição ganha contornos de legitimidade, uma vez que, ao participar do universo “nativo”, o etnógrafo descreve de forma regular e sistemática, o que observa aquilo que olha “[...] não pensem, olhem, contenta-te em pintar aquilo que vês”112, isto porque: “eu vejo, eu sinto, portanto eu tomo nota, eu olho e eu penso”(Laplantine, 2004)

O que apreende enquanto participa do cotidiano dos seus “sujeitos” via registro dos signos, dos contatos, dos eventos, das suas relações, das descobertas, das frustrações, dos envolvimentos afetivos, inclusive, deve ser por meio da ação que descreve cenários, ambientes; define o campo, os informantes, os sujeitos. Assim é que, enquanto observa o ambiente, ele cria um registro que, embora seja particular e por isso é específico, ambiciona dar significações ao registro feito em um “movimento que vai do ver ao escrever, e que, a partir da escrita volta para o ver” (CERTEAU apud. LAPLANTINE, 2004, p. 122) e com tudo isto atingir o status de sistematizações dotadas de sentido que extrapole ao seu gabinete.

112Expressão de Wittgenstein utilizada por Laplantine (2004). Inclusive, este último utiliza em seu texto Descrição e Explicação (2004) as contribuições de Wittgnstein na análise da linguagem e das condições do texto descritivo (etnografia) e explicativo (antropologia).

A intuição, desprezada por muito tempo pela racionalidade técnica da modernidade, é resgatada em Maffesoli (2005). Segundo o autor, não é apenas uma qualidade psicológica, mas, por sedimentar a experiência ancestral, pode exprimir um saber incorporado onde um determinado grupo ou uma determinada pessoa pode exteriorizá-lo mesmo inconscientemente. Deste modo, o pesquisador deve ser, antes de mais nada, um “farejador social”, aquele que saiba farejar as contingências sociais. Isto é,

Alguém que saiba reconhecer que, no devir cíclico das histórias humanas, o instituinte, aquilo que periodicamente (re)nasce, nunca está em perfeita adequação com instituído, com as instituições, sejam elas quais forem, que sempre são algo mortíferas. (MAFFESOLI, 2005, p. 131).

Assim, buscar a análise das contingências sociais do Mucambo a partir não apenas da descrição, mas também na intuição, permitiu o religamento e a aproximação minha (sujeito) e do objeto, ou seja, para além de objetivar, tentei senti. (MAFFESOLI, 2005, p. 131). Maffesoli (2005) também argumenta que na abordagem dos fenômenos sociais cuidadosas e respeitosas do imaginário cotidiano, a metáfora pode auxiliar na sua descrição, ajudando-o a compreender o valor das coisas e a sentir os sentidos e significados.

As metáforas estão em toda parte do mundo cotidiano – na música, na dança, em poema, a canção, na comunicação, na moda – então, o olhar do pesquisador deve apontar para a importância destas “coisas” compreendendo sua forma e conteúdo, aspecto considerado caro na etnografia, ou seja, poder compreender o mundo que “já está lá” aproximando-se das coisas e dos seus sentidos inventados por este mundo. Para traduzir uma compreensão do mundo desta forma, Maffesoli (2005) sugere a figura metafórica de Dionísio como a que assume a multiplicidade de práticas e fenômenos sociais favorecendo as emoções da vida banal, contrapondo-se a figura de Prometeu que representa toda a instrumentalidade racional do mundo. Por aqui, opto por caminhar em busca de uma relação complementar e solidária entre o inteligível e o sensível, dimensões a primeira vista opostas.

A noção de “complementaridade” me remeteu a considerar na relação pendular conflitosa, mas necessária, entre dimensões aparentemente opostas como: o dar e receber; dentro e o fora; conhecimentos científicos e saber popular; próximo e distante;

o racional e sensível113 no processo pensado e sentido da pesquisa em que mucambolei, mucambiei, mucambei.

113Para a cultura africana, diz Fernandes (2005): “[...] o ideário de comunidade desta cultura passa pela idéia de complementaridade, diferenciando-se, deste modo, das sociedades modernas ocidentais que se desenvolveram com o ideário de separação e fragmentação com base no crescente processo de racionalização social. A cultura nagô, ao contrário da cultura européia, se caracteriza por uma elaboração ou visão de mundo classificadora de princípios transcendentes ou forças cósmicas que regem o universo. Estes princípios ou poderes se distinguem entre si e são inexoravelmente complementares.” (FERNANDES, 2005, p. 148)

FECHO II

MEMÓRIA E HISTÓRIA DO PROCESSO DE

INDENTIFICAÇÃO E TERRITORIALIZAÇÃO

DO MUCAMBO

INTRODUÇÃO

[...] nós quando fomos pra luta foi nesse sentido, pra dizer: nós existimos! Essa comunidade existe? Existe!

Rubens Farias

Existir. Eis o desafio de comunidades rurais historicamente invisibilizadas pelo poder público e por toda a sociedade. Existir. Eis a ação praticada coletivamente há localizar mais de trezentos anos por homens e mulheres do campo. - Existe! Eis o que dizem os que compõem a “história do invisível”. A “história do invisível” não é contada em livros que versam costumeiramente sobre reis, rainhas e homens poderosos, certamente a “história do invisível”, hoje com maior repercussão, é bem distinta daquela narrada pela historiografia oficial corriqueiramente escrita por quem retirou dos “invisíveis” o direito de contar versões sobre acontecimentos e fatos que lhes dizem respeito.

Eis, portanto, o meu desafio: contar a história da ocupação das terras114 de uma destas muitas comunidades invisibilizada historicamente indicando as bases que constituíram a travessia dos moradores de posseiros imemoriais da terra a membros de uma comunidade de Fundo e Fecho de Pasto – FFP analisando, para tanto, a forma como continuaram existindo e ocupando a terra apesar de pressões dos grileiros, mineradores, fazendeiros e líderes políticos da região sobre o território que ocupavam desde os tempos dos seus antepassados. São pressões que expressam a intensa conflitualidade115 no campo brasileiro alimentadas pelas atuações dos agentes hegemônicos do capital e do Estado.

Para encontrar os vestígios da “história invisível” do Mucambo, tive que subir- descer-descer-subir vales e morros íngremes das serras que compõe a cordilheira do Espinhaço. Entre tombos e solavancos causados pela degradada estrada de chão, deparei-me com dégradé de verde que compunha a paisagem, noções das tonalidades do “invisível” marcadas no chão e no dizer dos moradores. Rastros e relatos de um povo que narra a própria história sempre na primeira pessoa do plural – nós. Falam de paz e

114 Godoi (1999) em O trabalho da memória: cotidiano e história no sertão do Piauí, utiliza a memória dos sertanejos para apreender a história da ocupação de terras. Pela relevância e originalidade dessa pesquisa tomo-a como referencial.

de luta, de derrotas e de vitórias e, especialmente, da organização de estratégias criativas na busca da afirmação das suas seculares existências (in) visíveis.

Nestes termos, este Fecho II é dedicado a descrição e análise da trama histórica do processo de formação, da metamorfose identitária da comunidade do Mucambo. Este processo de formação segue ritos de passagens que se iniciam com a identificação, por parte do grupo, do “desrespeito” ao conjunto de condutas de sentido moral relativas ao direito sobre a terra e segue com a instituição coletiva de pertencimento identitário à categoria política, jurídica e administrativa de Fundo e Fecho de Pasto (ARRUTI, 2006; ALMEIDA, 2008).

Como estratégia de aproximação da complexidade desse processo de formação, os capítulos dois, três e quatro descrevem: no segundo capítulo um panorama histórico da origem e ocupação das terras do Mucambo, bem como os fundamentos morais que orientam o direito sobre a terra nesta comunidade. A função desta descrição histórica é buscar, na história da comunidade e na constituição dos direitos consuetudinários referentes à terra, os fundamentos que compuseram a base da identificação, por parte dos sujeitos, dos riscos e ameaças sobre a terra; no decorrer do terceiro capítulo, é feito uma análise do sistema de uso comum da terra verificado na Serra da Várzea Comprida. Nele, as características singulares deste sistema calcadas nas especialidades geográficas e históricas da região, serão discutidas. No quarto e último capítulo, é apresentada uma narrativa histórica sobre a Luta da Serra da Várzea Comprida, com enfoque no processo de identificação, de reconhecimento e de territorialização levado a cabo pelos moradores do Mucambo, BA.

Assim, as narrativas sobre a procedência da comunidade indicam que a origem é indígena e centrada na figura mítica de uma mulher, denominada Mucamba. O nome Mucambo faz referência ao nome da índia Mucamba. Seus moradores também sustentam que a comunidade existe há mais de 300 anos e, depois dos índios, famílias passaram a ocupar as terras férteis dos vales nas encostas da serra. A memória das histórias e práticas da ocupação e origem da comunidade foram instrumentos fundamentais no momento do conflito, foram instrumentos de mobilização simbólica, moral e política do grupo.

Indicam também uma atualização de um tipo de economia citado por Thompson (1998) como sendo uma “economia moral” na organização desse arranjo territorial especifico. A ocupação e uso das terras no Mucambo (BA) entrelaça, de forma complementar, duas modalidades de apropriação da terra – a posse de uma área

individual; o uso comum de outra área, denominada localmente de A Serra da Várzea Comprida ou de refrigero com base em regras e condutas referente a uma ética de sentido moral.

Característica muito comum desse tipo de espacialidade das denominadas “terras tradicionalmente ocupadas”. Ao que pese as suas diferentes configurações, elas possuem, via de regra, princípios e condutas relativos ao uso da terra comum baseado por uma espécie de “sentido moral” a orientar as práticas e estratégias de ocupação e apropriação da natureza de terras comuns. Estas terras de uso comum ficaram invisíveis por muito tempo nos dispositivos jurídicos de categorização cadastrais e censitárias rurais da estrutura agrária116, mas que se fazem presentes na realidade do campo brasileiro apesar das interpretações evolucionistas que as considerarem como “resquícios do passado”, fadadas ao fracasso frente a inevitável “evolução histórica” (ALMEIDA, 2008).

O convite é para que o leitor entre no universo mucambeiro e aproxime o seu olhar da história de uma comunidade historicamente invisibilizada. Devo ressaltar que a narrativa apresentada é específica, no entanto, não tem a pretensão de ser única, uma vez que, compreendo que toda narrativa é fruto de um olhar e, por isto, sempre fica algo na periferia, porque, como diz Albuquerque (2011) o nosso olhar não é absoluto é sempre perspectivo.

116

Ausentes nas categorias cadastrais e censitárias do domínio jurídico formal brasileiro sobre a dominalidade da terra (ALMEIDA, 2008, p. 28)

CAPÍTULO 2

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