• Nenhum resultado encontrado

3 O SER SOCIAL E A TRANSITORIEDADE PARA A EMANCIPAÇÃO HUMANA

3.1. O ser social e a transitoriedade das relações sociais mediadas pelo capital

3.1.2. O ser social materializado na divisão do trabalho e manufatura

A manufatura capitalista iniciou a universalização do ser social na materialidade e teve por base fundamental a união de “órgãos vivos humanos” no processo de trabalho destinado à produção de mercadorias. Correspondeu, não obstante, à fase transitória da qual resultou o modo de produção especificamente capitalista. Superou formas anteriores dos homens produzirem individualmente suas existências. Foi sobre esta base material que, por sua decomposição, engendrou-se a grande indústria moderna, ou seja, da produção na sociedade capitalista. Foi um processo ainda limitado de produção de mais-valia, por estar assentado sobre o trabalho parcelar dos órgãos dos homens. Foi um processo de trabalho prenhe de muitas imperfeições.

Nesta fase o processo de produção de mercadorias não é passível de uma análise científica. Nas palavras de Marx:

Para o entendimento correto da divisão do trabalho na manufatura é essencial atentar para os seguintes pontos: antes de mais nada, a análise do processo de produção, em suas fases particulares coincide inteiramente com a decomposição de uma atividade artesanal em suas diversas operações parciais. Composta ou simples, a execução continua artesanal e, portanto, dependente da força, habilidade, rapidez e segurança do trabalhador individual no manejo de seu instrumento. O ofício permanece a base. Essa

estreita base técnica exclui uma análise verdadeiramente científica do processo de produção, pois cada processo parcial percorrido pelo trabalhador tem que poder ser realizado como trabalho parcial artesanal (MARX, 1983, v. 1:268-269). (grifos nossos).

O trabalhador, ao executar uma mesma atividade por um longo período de tempo, torna a realização desta atividade um autômato, possibilitando, com isto, a elevação da produção. Se, por um lado, este processo compromete o indivíduo, por outro lado, este movimento autômato permite a substituição deste trabalhador por um mecanismo que o dispensa. Adam Smith, por exemplo, disse que:

Nas primeiras bombas de incêndio um rapaz estava constantemente entretido em abrir e fechar alternadamente a comunicação existente entre a caldeira e o cilindro, conforme o pistão subia e descia. Um desses rapazes, que gostava de brincar com seus companheiros, observou que, puxando com um barbante a partir da alavanca da válvula que abria essa comunicação com outro componente da máquina, a válvula poderia abrir e fechar sem a ajuda dele, deixando-o livre para divertir-se com seus colegas. Assim, um dos maiores aperfeiçoamentos introduzidos nessa máquina desde que ela foi inventada, foi descoberto por um rapaz que queria poupar- se no próprio trabalho (SMITH, 1983:45).

No processo manufatureiro, à virtuosidade do trabalhador, como fator de elevação da produtividade do trabalho social, foi substancialmente alterada pela perfeição das ferramentas, impulsionadas por forças motrizes automáticas. Para Marx:

O período manufatureiro simplifica, melhora e diversifica os instrumentos de trabalho, mediante sua adaptação às funções exclusivas particulares dos trabalhadores parciais. Ela cria, com isso, ao mesmo tempo, uma das condições materiais da maquinaria que consiste numa combinação de instrumentos simples (MARX, 1983:270).

É neste sentido que das entranhas do velho surge o novo. Neste caso, a grande indústria decorre do aperfeiçoamento de equipamentos e do processo de substituição de seres imperfeitos e movimentos limitados por instrumentos perfeitos e movimentos bem sincronizados, harmônico e contínuo. O processo de trabalho, na forma de trabalho social em potência, materializando-se em meios de produção que produz e comanda outros meios de produção, emancipa-se do trabalhador, liberta-o.

Para Aued (2005a), ao desenvolver as forças produtivas do trabalho social, materializando-as em meios de produção, ainda que sob a mediação do capital, apresenta-se o caminho para a emancipação dos homens da condição de trabalhador e “explicita a condição potencial de o homem se fazer homem plenamente desenvolvido pela via de transformá-lo em elemento supérfluo à produção material de sua existência” (2005a:23). Aued ainda destacou que; “Outra não é a história do homem a não ser a de emancipar sua condição humana das condições que ainda o identificam com a natureza sensível quando ainda se põe como trabalhador” (Id.:30).

Com a manufatura o processo de trabalho transforma-se em metabolismo social, ainda que imperfeito, com continuidade, regularidade e uniformidade na utilização dos meios de produção, dos objetos de trabalho e do consumo de matérias-primas. Nas palavras de Marx:

O período manufatureiro, o qual logo proclama conscientemente, como princípio a diminuição do tempo de trabalho necessário para a produção de mercadorias, também chega esporadicamente a desenvolver a utilização de máquinas, sobretudo para certos processos iniciais simples que têm de ser executados massivamente e com grande emprego de força (MARX, 1983:275).

O princípio da maquinaria foi engendrado na fase manufatureira. A imperfeição dos movimentos dos trabalhadores foi sendo superada.

A divisão manufatureira do trabalho pressupõe a concentração dos meios de produção nas mãos de um capitalista, e divisão social do trabalho, fracionamento dos meios de produção entre muitos produtores de mercadorias entre si (MARX, 1983:28)

Mais adiante tem-se que:

A divisão manufatureira do trabalho pressupõe a autoridade do capitalista sobre seres humanos transformados em simples membros de um mecanismo global que a ele pertence; a divisão social do trabalho confronta produtores dependentes de mercadorias, que não reconhecem nenhuma outra autoridade senão a da concorrência, a coerção exercida sobre eles pela pressão de seus interesses recíprocos, do mesmo modo que no reino animal o bellum comum contra onces preserva mais ou menos as condições de existência de toda a espécie. A mesma consciência burguesa, que festeja a divisão manufatureira do trabalho, a anexação do trabalhador por toda a vida a uma operação parcial e a subordinação incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organização do trabalho que aumenta a força produtiva, denuncia com igual alarde qualquer controle e regulação social consciente do processo social de produção como uma infração dos invioláveis direitos de propriedade, da liberdade e da genialidade autodeterminada do capitalista individual (MARX, 1983:280).

A divisão manufatureira do trabalho sobrepõe-se às relações anteriores de produção. “A divisão manufatureira do trabalho é uma criação totalmente aperfeiçoada do modo de produção capitalista” (MARX, 1983:282), porque:

A cooperação, baseada na divisão do trabalho ou a manufatura é nos seus inícios uma formação naturalmente desenvolvida. Tão logo ela tenha ganho alguma consistência e amplitude de existência, torna-se consciente, planejada e sistemática do modo de produção capitalista. A história da manufatura propriamente dita mostra como, de início, a sua divisão peculiar do trabalho atinge, de acordo com a experiência, igualmente pelas costas das pessoas atuantes, as formas adequadas, e como almeja depois, da mesma forma que o artesanato corporativo manter tradicionalmente a forma uma vez descoberta, e a mantém em casos isolados por séculos (MARX, 1983:285).

Aqui a cooperação e a divisão do trabalho apresentam-se como a síntese da produção de mercadorias na forma de manufatura.

A divisão manufatureira do trabalho cria, por meio da atividade artesanal, da especialização dos instrumentos de trabalho, da formação dos trabalhadores especiais, de sua agrupação e combinação em um mecanismo global, a graduação qualitativa e a proporcionalidade quantitativa de processos sociais de produção, portanto determinada organização do trabalho social, e desenvolve, com isso, ao mesmo tempo, nova força produtiva social do trabalho. Como forma especificamente capitalista do processo de produção social – e sob as bases preexistentes ela não podia desenvolver-se de outra forma – a não ser na capitalista – é apenas um método especial de produzir mais-valia relativa ou aumentar a autovalorização do capital – o que se

denomina riqueza social, Wealth of Nations etc – à custa dos trabalhadores. Ela desenvolve a força produtiva social do trabalho não só para o capitalista, em vez de para o trabalhador, mas também por meio da mutilação do trabalhador individual. Produz novas condições de dominação do capital sobre o trabalho. Ainda que apareça de um lado como progresso histórico e momento necessário de desenvolvimento do processo de formação econômica da sociedade, por outro ela surge como meio de exploração civilizada e refinada (MARX, 1983:286).

Na fase manufatureira, o capital não consegue apropriar-se do tempo total disponível de jornada de trabalho. Como observou Palloix (1982:73), não elimina a porosidade. Aliás, o próprio Marx foi quem identificou os poros na jornada de trabalho. Sobre isto, disse:

[...] Outra coisa, porém, ocorre assim que a redução da jornada de trabalho, com o prodigioso impulso que ela dá ao desenvolvimento da força produtiva e à economia das condições de produção, impõe maior dispêndio de trabalho, ao mesmo tempo, tensão mais elevada da força de trabalho, preenchimento mais denso, dos poros da jornada de trabalho, isto é, impõe ao trabalhador uma condensação do trabalho a um grau que só é atingível dentro da jornada de trabalho mais curta [...] (MARX, 1984 v. 2:33).

O limite da manufatura foi observado por Marx, quando destacou que:

Ao mesmo tempo, a manufatura nem podia apossar-se da produção social em toda a sua extensão, nem revolucioná-la em sua profundidade. Como obra de arte econômica ela eleva-se qual ápice sobre a ampla base do artesanato urbano e da indústria doméstica rural. Sua própria base técnica estreita, ao atingir certo grau de desenvolvimento, entrou em contradição com as necessidades de produção que ela mesma criou (MARX, 1983:288).

É exatamente neste sentido que a fase manufatureira explicita a materialidade da transição para a grande indústria moderna. Nela assenta-se a base material para a elevação da potência das forças produtivas do trabalho social. É a proto base da emancipação humana. Como o homem, ao nascer, torna-se herdeiro de todo o patrimônio histórico e cultural, a grande indústria moderna também se constitui enquanto herdeira histórica e cultural do período manufatureiro. Esta última imprime profundas transformações na primeira a suplanta e a supera.

Ao observar a manufatura como transitoriedade no capitalismo, Marx disse que:

A condição das mais indispensáveis para a formação da indústria manufatureira era a acumulação de capitais facilitada pela descoberta das Américas e pela introdução de seus metais preciosos (MARX, 1985:128).

O período manufatureiro foi importante na construção do ser social, foi o meio de decomposição do trabalho individual do ofício, ao mesmo tempo criou, em suas entranhas, os elementos de sua transmutação na grande indústria moderna. Para Aued (2004:73):

De todos os elementos engendrados pela manufatura, um se constitui naquele que permite a superação (aufhebung) de seus próprios limites, mas, ao ser criado, este elemento constitui-se no germe da própria negação. Ela dará origem à base técnica da próxima fase de produção da existência material pelos homens, como o “Cosmo”. O novo elemento é o setor de ferramentas, desenvolvido no interior da manufatura e que se constituirá no pilar da grande indústria moderna.

Sobre a manufatura como processo transitório, Aued (2005b:27) observou que:

Mas mesmo não engendrando a emancipação plena da força produtiva do trabalho social, a manufatura capitalista é o nexo, a mediação a relação de se constituir o elemento material que faz alcançar esta condição, ao decompor o trabalho individual do artífice em seus diversos elementos constitutivos. Alienando-se, transformaram-se em ser em si independentes e autônomos. Entre eles, o instrumento de trabalho constitui-se naquele que ao serem combinados, uns com os outros, propiciará a ampliação das condições subjetivas do trabalho pelas objetivas e, por conseguinte, a constituição das condições materiais da emancipação plena das forças produtivas do trabalho social.

3.1.3. O ser social como grande indústria moderna: a base produtiva da