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Neste capítulo, trataremos do discurso de nossos autores acerca do cangaço, tema controverso que tem recebido, desde o início do século XX, atenção especial de historiadores e sociólogos. Logo no início de nossa pesquisa, o contato com as primeiras obras demonstrava que o volume historiográfico de estudos dedicados a este assunto era tão grande que, antes de discutir a produção discursiva de Gustavo Barroso, Lourenço Filho e Rodolfo Teófilo sobre este fenômeno social em sua relação com a invenção moderna de um espaço sertanejo, consideramos necessário um breve e problemático balanço da historiografia do mesmo. Breve para não escaparmos aos interesses de nossa pesquisa e problemático por ser da natureza de todo apanhado historiográfico, a incompletude e as incorreções que inevitavelmente ocorrem quando se tenta sintetizar algo tão extenso.

A vasta bibliografia sobre o cangaço que, desde o início do século XX é apresentada em autores como Gustavo Barroso, Xavier de Oliveira, Pedro Batista, entre outros, tenta dar respostas às questões do tipo: por que Lampião entrou no cangaço? “Lampião era bom ou mau?” “Herói ou bandido?” Quando muito, estes livros tentam explicar o fenômeno pelo analfabetismo, desemprego e outras mazelas sociais. De certa forma, podemos dizer que Rui Facó e Eric Hobsbawm foram os que primeiro incluíram o tema do cangaço no ambiente acadêmico, dando a ele um tratamento mais preocupado com o uso das fontes lançando novas perguntas e uma nova influência teórica.

O primeiro, em: “Cangaceiros e Fanáticos”, tenta dar uma conotação positiva das categorias de cangaceiro e fanático vistas, até então, de modo negativo. Defende uma explicação material para as origens e fins desses movimentos vistos como vítimas da organização social da Primeira República, a partir de uma análise por um viés marxista, pelo qual tenta explicar o porquê do fanatismo e do cangaço que, segundo o autor, seriam formas de reação às estruturas sociais de dominação existentes nas áreas rurais do Nordeste.

Eric Hobsbawm, com os livros “Bandidos” (1970) e “Rebeldes Primitivos” (1965), também utiliza um viés marxista para a abordagem do tema. Preocupando-se em demonstrar,

entre outros aspectos, que o cangaço não era um movimento revolucionário, em “Rebeldes Primitivos”, tenta criar um modelo de resistência camponesa pré-política para este fenômeno.

Apesar de colocar o cangaço dentro de uma análise materialista e conjuntural da sociedade na qual se inseria, Hobsbawm alerta para o fato de que a elaboração do cangaceiro como vítima das estruturas sociais de seu tempo e espaço também pode ser problemática, tornando válida a pergunta: até que ponto o papel do bandido é determinado pelo drama da vida dos camponeses? Ou seja, até que ponto o mito do banditismo mostra o verdadeiro bandido?

É neste sentido que Hobsbawm desenvolve a idéia do banditismo social, amplamente utilizada como referência em estudos posteriores que apoiavam ou criticavam a mesma. Entre os tipos de bandidos apontados pelo autor, o cangaceiro foi enquadrado na categoria de “vingadores” que, ao contrário dos “bandidos nobres” (como Robin Hood) seriam violentos e cruéis e, uma vez humilhados, tinham de se vingar.

Na desmistificação do cangaço e no seu enquadramento na categoria de banditismo social, Hobsbawm aponta para a ausência de um ideal igualitário entre os cangaceiros, mas considera a idéia de luta contra a injustiça um motivo que poderia levar camponeses ao banditismo. Dessa maneira, o autor inspira um debate historiográfico sobre banditismo na América Latina, com estudos no México, Cuba e mesmo em Portugal e Espanha.

Um dos autores que abordam o cangaço a partir das análises de Hobsbawm é Billy Chandler que, no livro “Lampião o rei dos cangaceiros”, critica o modelo de resistência camponesa pré-política trabalhado pelo primeiro. Sua obra trata do fenômeno a partir do lugar autoritário de onde parte um discurso de primeiro mundo que considera a superstição, a ignorância e a pobreza como elementos indispensáveis a qualquer estudo sobre os sertanejos.

Outro autor que se deixa tocar pela categoria de banditismo social para desenvolver sua abordagem é Frederico Pernambucano de Melo, o qual tenta explicar, entre outros aspectos, a conduta do cangaceiro a partir do modelo típico de nordestino, surgido em meio a uma cultura típica que, a partir do processo que empurra o colonizador para o interior da região, cria uma sociedade da qual emergem várias formas de cangaço.

Em Guerreiros do Sol: o banditismo no Nordeste do Brasil, Frederico Pernambucano defini três tipos de cangaço: meio de vida, vingança e refúgio. A maioria dos cangaceiros entrariam nos bandos por motivos de vingança e depois migravam para o segundo tipo. Ao

113 explicar esta migração, este autor que se destaca pelo volume de suas fontes, introduz o conceito do escudo ético, no qual o cangaceiro encontra na vingança um motivo que legitima sua atividade, não terminando sua obra justamente por ter aí um argumento ético que justifica sua continuidade no cangaço.

No livro Quem foi Lampião, Frederico Pernambucano traz, além de considerações gerais sobre o cangaço, uma rica coleção de detalhes que vão desde a indumentária até as armas de Lampião criando, de certa forma, o ambiente de vida do cangaceiro, destacando-se pelo acervo iconográfico e pelo anexo que apresenta grande quantidade de documentos. Apesar disso tudo, por sua natureza biográfica, a obra reduz bastante o universo do cangaceirismo à figura de Lampião, o que não facilita a compreensão do fenômeno.

O que nos parece claro em toda essa produção historiográfica é que, por enquanto, boa parte da historiografia do cangaço permanece presa à idéia de verdade histórica, especialmente quando alguns desses autores tentam compreendê-lo a fim de responder a questões como “o que realmente foi?” “Banditismo?” “Até que ponto era violento?” “Pode ou não ser considerado um movimento social?” Quando esta historiografia tenta superar a busca pelas “verdades” em torno do cangaço surgem perspectivas de análise como a que busca um tipo de cultura e sociedade sertaneja capaz de proporcionar seu surgimento.

Não obstante não ser interesse desta pesquisa, contribuir com os estudos historiográficos sobre o cangaço e sim incluir-se nos trabalhos que discutem as invenções discursivas dos espaços, conhecer parte destas obras tem colaborado secundariamente com nossos objetivos na medida em que as diferentes abordagens do tema acabam por nos fornecer equipamentos analíticos para a discussão das fontes que, no período deste fenômeno social, foram escritas, muitas vezes, no sentido de marcar fronteiras entre o mundo litorâneo e o sertanejo, atuando na invenção destes espaços e, possivelmente, na construção das identidades que lhes iam sendo imputadas.

Nos autores trabalhados nesta dissertação, um dos assuntos mais recorrentes ao se dirigirem para o sertão do estado era o cangaço e aquilo que diziam a seu respeito atuava na elaboração simultânea de dois espaços, uma vez que um determinado sertão, repleto de imagens construídas nas falas sobre o cangaceiro era formado na capital que, por sua vez, era inventada por tais escritores nos símbolos de um novo tempo e modo de vida avesso ao que ocorria no interior do Ceará.

Dentro dos subcapítulos que tratarão do discurso de nossos autores sobre o cangaço, abordaremos as questões: da construção do sertão enquanto ideologia geográfica; das teorias raciais na representação do cangaceiro; do papel do Estado nos discursos de combate ao cangaceirismo; do problema do termo “bárbaro” recorrentemente aplicado a Lampião e seus companheiros e, por fim, das possíveis representações sertanejas da atividade cangaceira que acabavam por acentuar a idéia de que os discursos de nossos autores eram próprios de setores urbanos.

3.1 - SERTÃO CEARENSE: UMA FORMAÇÃO DE IDEOLOGIAS