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O Serviço Militar Obrigatório

No documento Sérgio Valente: um fotógrafo da oposição (páginas 98-100)

Sérgio estava já mais do que envolvido em várias actividades da oposição quando se dá o segundo acontecimento marcante na sua vida de activista político: o cumprimento do serviço militar obrigatório. Estávamos em 1963. A Guerra Colonial estava em curso há cerca de dois anos e Sérgio, em vias de casar e a caminho de ser pai do seu primeiro filho, tomou a firme decisão de nunca se deixar mobilizar para a frente de uma guerra com a qual discordava profundamente, o que tornaria a sua passagem pela tropa um acontecimento verdadeiramente épico da sua vida pessoal.

Com o objectivo de não ser mobilizado para as colónias, durante a sua recruta, na Serra da Carregueira, e a sua especialidade em Fotocine, no Batalhão de Sapadores do Caminho-de-Ferro, em Lisboa, Sérgio seguiria duas estratégias: a provocação e a insubordinação perante os seus superiores e a simulação de problemas de saúde.

Deste modo, durante os treinos físicos da recruta, particularmente nos crosses, Sérgio insurgia-se sempre que os soldados eram incitados pelos seus superiores a cantar «Angola é nossa!», contrapondo que Angola não era nossa, mas sim dos africanos. Por outro lado, nas aulas de «psico», que serviam, segundo Sérgio, para «mentalizar o racismo» nos soldados, e nas aulas de cinema e fotografia tinha acesas discussões com um sargento que ai leccionava, nas quais não deixava de expressar abertamente a sua oposição relativamente à Guerra Colonial. Este comportamento chegou a valer-lhe várias ameaças, por parte do referido sargento, de que poderia arranjar problemas se persistisse com aqueles comportamentos. Ameaçava incorporá-lo em infantaria e mobilizá-lo de imediato para a frente de combate numa das colónias. Na verdade, no contexto de guerra em que o país se encontrava, Sérgio assumia sérios riscos com aquelas formas de insubordinação.

É com bastante surpresa que Sérgio Valente virá a ter conhecimento, durante a sua passagem pela tropa, da existência de elementos da oposição nas fileiras do Exército. Viria a aproximar-se de um jovem soldado de 21 anos, natural da Covilhã - que, veio a descobrir mais tarde, já depois do 25 de Abril de 1974, que tinha passado a ser funcionário do Partido Comunista Português -, que o põe ao corrente do «clima quente» que se vivia naquele quartel. Conta-lhe, inclusivamente, que na parada e nas casernas onde Sérgio estava a fazer a sua especialidade, nos Serviços Cartográficos do Exército, haviam sido distribuídos panfletos com mensagens subversivas contra a Guerra Colonial. Depois de terem atingido um certo grau de confiança mútua, é ele quem marca um encontro, dentro das próprias instalações do quartel, entre Sérgio Valente e um outro militar ligado ao PCP, com mais responsabilidades, no qual viriam a ser passados alguns jornais clandestinos.

Com o tempo, o comportamento deliberadamente indisciplinado de Sérgio Valente foi-lhe valendo alguma reputação entre os soldados, mas começa a ser visto com desconfiança por alguns graduados, consegue no entanto emprestar um exemplar da obra A Mãe, do escritor russo Máximo Gorki, uma obra proibida

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pelo regime, a um furriel miliciano, de quem se torna amigo e que, de certa forma, começa a facilitar a vida a Sérgio durante a tropa.

Todavia, seriam as sucessivas simulações de graves problemas de saúde que viriam a garantir a não mobilização de Sérgio Valente para as colónias. Começa por requerer várias consultas ao Hospital Militar por causa de uma úlcera no duodeno, de que de facto padecia. O excesso de faltas por ir a essas consultas, juntamente com as faltas que dá por se ausentar a pretexto de falsas consultas, fizeram-no reprovar pela primeira vez na especialidade de Fotocine. Mandam-no para casa durante alguns dias e, quando está para partir para Lisboa, para recomeçar pela segunda vez a especialidade de Fotocine, Sérgio simula um ataque de epilepsia e de pânico. Nesse dia, Sérgio despede-se da sua mulher, Laura Valente, de quem sempre recebeu um apoio incondicional, e vai encontrar-se com dois camaradas seus no café Estrela D’Ouro, Carlos Armando e Jorge Alves que o apoiam na simulação do ataque epiléptico e o conduzem para o hospital. O objectivo era fazer com que ficasse internado no Hospital Militar do Porto para não ter que se apresentar ao quartel em Lisboa. Mas, como não estava fardado na altura em que simula o ataque, é levado ao Hospital de Santo António, de onde o enviaram para Lisboa, uma vez que Sérgio era militar e o Hospital de Santo António era um hospital civil.

Em Lisboa, mal chega ao quartel, queixa-se novamente dos seus «problemas de saúde». É então observado por um médico militar e é internado durante cerca de 60 dias no Hospital Militar de Lisboa. Constava-se no Hospital que o director dizia que preferia «uma facada no coração do que livrar um homem que estivesse mobilizado para a guerra». Durante o internamento fazem-lhe exames médicos através de uma endoscopia ao estômago e um raio-x aos pulmões e é-lhe detectada uma úlcera no duodeno, e continua a simular vários ataques de epilepsia. É sujeito a vários tratamentos, incluindo injecções para o reanimar das crises de epilepsia, é-lhe prescrita medicação para o sistema nervoso e é sujeito a uma dieta alimentar para o estômago, sem que se verificassem grandes resultados. Os médicos militares que o estavam a acompanhar entendiam que ele não estava em condições de fazer a tropa, mas o receio em relação ao director do hospital impediu-os de propor Sérgio Valente para uma junta médica. Assim, e uma vez que este longo período de internamento o fez perder novamente a especialidade, regressa a casa para uma nova licença, trazendo consigo, desta vez, a farda.

No dia em que ia regressar ao quartel de Lisboa para se apresentar para uma terceira tentativa de fazer a especialidade de Fotocine, Sérgio, com a colaboração dos mesmos camaradas que anteriormente o ajudaram e, novamente, com o apoio de sempre da sua mulher, simula um novo ataque de epilepsia em plena Praça de Lisboa, no Porto, o local onde os recrutas da região embarcavam nas camionetas que os levariam para os vários quartéis de Lisboa e do resto do país. Na sequência dessa simulação, consegue ser internado no Hospital Militar do Porto. Aí é submetido a vários exames médicos.

Durante o seu internamento, continua a queixar-se do estômago e da cabeça e, na véspera de fazer uns exames, chega a privar-se do sono e a tentar embriagar-se para poder falsear os resultados. Após um mês de internamento, de simulações e de grande sofrimento, Sérgio faz um electroencefalograma e exames ao estômago, sendo-lhe diagnosticada uma epilepsia e uma úlcera duodenal. É depois, finalmente, submetido, por indicação dos médicos de Neurologia e de Clínica Geral, a uma junta médica que, ao fim de cerca de um ano de luta pela sua não mobilização para as colónias, o livra da tropa, conseguindo assim ludibriar as autoridades militares.

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No documento Sérgio Valente: um fotógrafo da oposição (páginas 98-100)