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O SILÊNCIO DO MUNDO

No documento Silêncio e Poesia em Teixeira de Pascoaes (páginas 119-125)

CAPÍTULO III – SILÊNCIO E ESPAÇO

5. O SILÊNCIO DO MUNDO

Há, em Teixeira de Pascoaes, uma consciência do espaço e da Natureza que nos permite afirmar que esta própria consciência sinaliza um sentimento de mundo. Adalberto Dias de Carvalho parece-nos certeiro ao afirmar que Pascoaes «confere um sentido ao mundo através da sua consciência» ( CARVALHO, 2004, p. 170). Este sentimento de mundo, em Pascoaes, é também pressentido por Jorge Coutinho quando tratou do «enraizamento na terra» em sua obra (COUTINHO, 2004, p. 203). Pascoaes é um poeta

de seu habitat, mas ele próprio transcende a mera relação com o meio, pois ele é também o habitat, como afirma Pascoaes peremptoriamente em O Homem Universal: «o homem é êle e o seu habitat» (PASCOAES, 1937, p. 110, grifo do autor). Para compreender o papel do silêncio, regressemos, pois, ao tópico do «estranhamento» manifestado, por exemplo, pelo personagem Doido perante a Morte, em O Doido e a Morte. A imagem de um mundo como «estranho signo», já utilizada em Terra proibida, se repete em Jesus e

Pã como um distanciamento: «Eu sou um solitário, oh triste isolamento! / das cousas vivo só no seu distanciamento!» (PASCOAES, 1996, p. 183). Não apenas um mundo exterior que é «estranho» à Pascoaes, como também o mundo interior, como se vê em Para a luz, no poema «Vida do campo»: «Um mundo interior, estranho e misterioso...» (PASCOAES, 1998, p. 48). A partir de As sombras, Pascoaes utilizará a imagem do mundo (interior e exterior) como um «recanto escuro», como no poema «A sombra do passado», deste último livro, «Nessa fonte invisível, mais quimérica / do que a imagem da tarde a concentrar-se / nos recantos escuros e cismáticos…» (PASCOAES, 1996, p. 27), bem como em Elegias, no poema «Ausência»: «Dos recantos escuros, em segredo / nascem visões saudosas» (PASCOAES, 1998, p. 236). Outro recurso utilizado por Pascoaes que corrobora este aparente «distanciamento» do mundo é o tópico do «adeus». Na primeira edição de Sempre, de 1898, o sujeito lírico do poema «Cantigas» (que não irá constar na edição definitiva), expressa a sua despedida do mundo: «Adeus! Adeus! Vou-me embora!» (PASCOAES, 1898a, p. 103). Em Terra proibida, encontramos um poema intitulado «Adeus», de onde retiramos os seguintes versos: «Partir! Partir! É a força do destino / ... Para dizer adeus ao mundo vim / Sou sempiterno adeus! / [...] viverei duma eterna Despedida», (PASCOAES, 1997, p. 207) — na segunda edição desta obra, de 1917, há um verso do poema «A minha história» que Pascoaes não incluirá na edição definitiva, onde lemos: «...E tive de partir! Dizer adeus a tudo!» (PASCOAES, 1917, p. 48). Já no poemeto «À ventura», vemos o tom nostálgico de um sujeito lírico deslocado do mundo: «É um adeus afinal a minha vida toda...» (PASCOAES, 1996, p. 156).

Mas apesar do tom de negação do mundo, temos que lembrar que estes versos constituem um corpus ainda da primeira fase do autor, que abrange o seu primeiro decênio de publicações. Como diz o próprio Pascoaes, são obras que foram feitas «durante a febre

de criar» (PASCOAES, 1997, p. 98). Porém, a partir dos anos 1920 cremos ver na poesia de Pascoaes uma crescente aproximação ao mundo como responsabilidade do poeta – o que justifica possíveis leituras ecocríticas e topofílicas em sua obra. O próprio autor, em tom autobiográfico, em O Homem Universal, assim define os poetas: «o sêr eleito da terra» (PASCOAES, 1937, p. 26).

Enquanto «ser eleito» da terra pode tomá-la como um abrigo materno: «se a terra é nossa mãi, é claro que está presente nos seus filhos» (Ibidem). Se, por um lado, há na obra de Pascoaes uma dimensão de alto grau de intimidade, e até cósmico, no estabelecimento «onírico» para com os espaços vividos e sonhados, por outro, sua obra pode caracterizar uma espacialização do mundo enquanto habitação.

Em O Homem Universal, Pascoaes lança o questionamento: «que seria do mundo sem o homem?» (PASCOAES, 1937, p. 49). Esta pergunta nos é útil para uma abertura de diálogo entre Pascoaes e Heidegger142, tomando a categoria «mundo» como articuladora, pois, na primeira etapa da analítica existencial de Ser e Tempo, a compreensão de Heidegger é que o «mundo» incorpora o sentido do ser ou, como comenta Harrison Hall, «o ser humano é o seu mundo (‘existencialmente’) e que o mundo tem o nosso (‘do Dasein’) modo de ser» (HALL, 1998, p. 150-151).

Parece-nos que Gianni Vattimo, em Introdução a Heidegger, pode responder à pergunta feita por Pascoaes, sobre o elo entre o ser e o mundo: «não há mundo, se não existe o Dasein» (VATTIMO, 1998, p. 30). O mundo é o campo onde o ente se manifesta e se projeta enquanto tal – o que significa que existir é projetar; uma projeção, digamos, lançada. Estamos no mundo. Porque Ser é presença, é estar aqui, lá. E todas as «coisas» que estão ao nosso redor formam a natureza do que Heidegger chama «mundo circundante». Em Ser e Tempo (2011a), a questão do mundo aparece fortemente na primeira secção. Com a expressão composta ser-no-mundo, Heidegger alcança a estrutura essencial do Dasein, quer dizer, «conhecer o mundo, dizer e discutir o mundo funcionam

142 Consideramos até aqui a utilização da topoanálise para estruturar o local de intimidade em Pascoaes,

transcendendo o físico (o Marão) e valendo-se das metáforas utilizadas por Bachelard. Porém, como em Pascoaes o homem não está dissociado do mundo, nos é possível argumentar que sua obra possibilita um pensar do «ser-no-mundo», esta mesma fórmula proposta por Martin Heidegger. Para isto, é necessária uma abordagem cuidadosa na transição entre Bachelard e Heidegger no tocante à questão da intimidade/relação com o espaço exterior.

como modo primário de ser-no-mundo» (HEIDEGGER, 2011a, p. 105). Na leitura de Marco Casanova, que aqui acompanhamos, «mundo é o correlato intencional originário do existir» (CASANOVA, 2013, p. 90); é «horizonte de concreção das possibilidades de ser do ser-aí humano» (Idem, p. 91). Na sua preleção de 1929/1930 intitulada Os conceitos

fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão (2011b), Heidegger dirá que, no

mundo, em seu caráter de totalidade, o homem é formador: formador do mundo143. Assim como dirá Pascoaes, em O Homem Universal: «na sua fantástica natura, o sêr humano é essencialmente criador» (PASCOAES, 1937, p. 88). Heidegger entenderá o homem como formador do mundo a partir de três pontos: primeiro, quando ele instala o mundo; segundo, quando ele fabrica uma imagem do mundo; terceiro, quando ele enquadra e envolve o mundo. Logo, e para concluir nossa passagem nesta preleção, o ser-aí no homem formador de mundo precisa «estar ligado em si ao mundo» (HEIDEGGER, 2011b, p. 453).

Esse estar-ligado ao mundo que nos fala Heidegger é tão somente o nosso modo de

ser no mundo, constituído não por uma «presença efetiva em um espaço previamente

dado chamado mundo, mas muito mais a articulação existencial desse espaço a partir de um sentido» (CASANOVA, 2013, p. 92). O que nos interessa em Heidegger, para uma interpretação da «terra mãe» em Pascoaes, é justamente a «ligação ontológica» com o mundo, proposta em Ser e Tempo (§ 21). O Dasein é essencialmente espacial (§§ 22 e 24). Note-se que Heidegger também dará relevo à espacialidade do Dasein em seu curso de 1928/1929 intitulado Introdução à filosofia (2009), nomeadamente no § 17 do quarto

capítulo144. Neste parágrafo, vemos que o ser-aí, temporalizante e também espacializante, traz já consigo uma espécie de círculo de manifestações em que cada ente participa145. E

143 Cf. o § 68 desta preleção, onde lemos a seguinte citação de Heidegger: «A abertura do ente enquanto tal

na totalidade, o mundo, forma-se; e mundo só é o que é em uma tal formação. Quem forma o mundo? Segundo a tese, o homem» (HEIDEGGER, 2011b, p. 366).

144 Heidegger não nos deixou uma teoria acerca da espacialidade, mas, é no horizonte do conceito de mundo,

no horizonte da temporalização do mundo, ou do tempo como horizonte transcendental da questão do ser (tese que se encontra em Ser e tempo), que o espaço já se encontra no mundo, e não o inverso.

145 Vale lembrar como Heidegger termina o § 23 em Ser e Tempo (2011a, p. 168) dedicado à espacialidade

o «aí» do ser nada mais é que a possibilidade (o poder-ser do ser-aí) do movimento do ser no espaço146.

A reflexão sobre a linguagem será o ponto de partida para seus escritos da década de 1950 para pensar o «habitar» do ser no mundo. Na sua conferência de 1951, «Construir, habitar, pensar», Heidegger aproxima, na língua alemã, os vocábulos wohnen (habitar) e

bauen (construir). Ao retomar uma tese já defendida anteriormente (que o ser-aí se

espacializa)147, o filósofo entende que o Ser pensante mantém sempre uma relação «em habitando» (HEIDEGGER, 2010, p. 136), pois é na essência do habitar que o próprio habitar se faz «traço essencial do ser» (Idem, p. 140, grifo do autor). Para Heidegger, o habitar não está distante do construir, já que o homem é formador de mundo, e não são necessárias paredes ou tetos para se firmar um elo de intimidade com o espaço148. Aqui fica clara a crítica de Heidegger à noção de Bachelard de intimidade, em sua topoanálise, uma vez que o filósofo francês se restringiu aos espaços fechados, interiores e sonhados. Para Heidegger, o habitar transcende o fechado, o interior. Cita alguns exemplos: uma auto-estrada que é a residência, ou o local de morada, de um caminhoneiro, ou uma usina elétrica, que é a residência de um engenheiro. Para Heidegger, é possível habitar espaços abertos, habitar no construir. Mas trata-se ainda de uma questão «linguística».

Em outra conferência, intitulada «...poeticamente o homem habita...», título que Heidegger extrai do poema «No azul sereno», de Hölderlin, temos a chave para o habitar: «é a poesia que permite ao habitar ser um habitar. Poesia é deixar-habitar em sentido pró prio» (Idem, p. 167). Habitar é também um habitar poético. E «é a poesia que traz o homem para a terra» (Idem, p. 169). O que nos interessa nessa conferência é como a poesia (a arte, de modo geral) alcança um papel central no pensamento de Heidegger da década de 1950, pois «o habitar, contudo, só acontece se a poesia acontece com propriedade [...]. É a poesia que permite ao homem habitar sua essência» (Idem, p. 178).

146 Em outro momento, tivemos a oportunidade de investigar esta questão do ser-no-mundo heideggeriano

(cf. ARAUJO, 2014b, pp. 19-33).

147 Nesta conferência Heidegger retoma a questão do espaço para enfatizar que «quando se fala do homem

e do espaço, entende-se que o homem está de um lado e o espaço de outro. O espaço, porém, não é algo que se opõe ao homem. [...] Os espaços abrem-se pelo fato de serem admitidos no habitar do homem» (HEIDEGGER, 2010, p. 136, grifo nosso)

148 Para nós, em Heidegger a intimidade é, de algum modo, tratada de maneira mais «aberta» (ao exterior)

Ao apropriarmo-nos deste pensamento heideggeriano queremos interpretar o Marão como a poética habitação de Pascoaes, e entender a poesia do silêncio que o poeta habita. Um Marão tão universal quanto o «Homem Universal». Como a cabana e a Floresta Negra estão para Heidegger, assim o Marão está para Pascoaes, que nos diz: «Sim, criar, comungar a realidade, assimilando-a [...]» (PASCOAES, 1937, p. 137). Apesar de O

Homem Universal ser anterior às conferências de Heidegger, nota-se como a comunhão

do poeta com o mundo, contida na obra de Pascoaes, pode encontrar solo fértil no pensamento do filósofo alemão, que buscou fazer da poesia a condição necessária para o habitar poético do Ser. Ou seja, de algum modo, o que encontramos em Pascoaes acaba por ser «embrionário» daquilo que Heidegger pensará, em termos filosóficos, o que coloca verdadeiramente estes dois autores em sintonia para um estudo comparado no trânsito entre a filosofia e a literatura. Deste modo, o que buscamos argumentar, neste capítulo, foi a presença e o fundamento de uma «poética da intimidade» que suscita uma «filosofia da Natureza», mas que também abre caminhos para uma leitura a partir de discursos ecocríticos, viabilizando uma topoanálise, porque, aqui, o silêncio se espacializa na própria intimidade.

No documento Silêncio e Poesia em Teixeira de Pascoaes (páginas 119-125)

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