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2. V OZES DA IDENTIDADE JUDAICA

2.7. O SIONISMO : UMA RESPOSTA POSSÍVEL AO ANTI SEMITISMO

O posicionamento em relação aos significados do processo social conhecido pelo nome de ‘assimilação’, e que se referiu paradigmaticamente aos judeus de língua alemã (antes que o termo fosse estendido para designar fenômeno análogo nos países do leste europeu e outros) depende de considerações que extrapolam dados objetivos. As narrativas de judeus a respeito da ‘assimilação’,

53 ‘Associação central dos alemães de fé mosaica’, tradução minha.

54 Embora sediada na Alemanha, ela tinha um alcance considerável também na Áustria. 55

Para Shulamit Volkov o desfecho da história judaico-alemã com o nazismo também é surpreendente, tal como para Kremer (2000: 167).

assim como aquele que por vezes é visto como o seu antípoda, o sionismo, estão inevitavelmente informadas por afetos e valores, dado que os desdobramentos destes fenômenos repercutem até hoje e obrigam cada judeu a se posicionar, de forma mais ou menos consciente, mais ou menos explícita. Não cabe a esta dissertação, portanto, maldizer sob o rótulo de ingênua a tentativa da simbiose judaico-alemã, ou a sua versão atenuada, de conciliação da dicotomia judeu/alemão, corporificada pelo CV. Tampouco cabe acusar o sionismo de comprar o discurso anti-semita e até mesmo de fomentá-lo, dizer dele que correspondeu ao desejo genuíno por uma nação ou então a inventou por completo.

Interessa aqui visualizar a complexidade das tensões inerentes ao judaísmo e em específico com relação à experiência dos judeus alemães para estar atento a como elas se re-configuram quando o nacionalismo judaico – uma das respostas históricas ao anti-semitismo – vê diante de si a tarefa de dirimi-las.

A excepcionalidade, em um nível europeu, e a assimilação, fortemente identificada com a experiência judaico-alemã, são motes fundamentais do sionismo, ainda que apareçam sob o seu avesso na forma de normalização e (re-) nacionalização. No terceiro capítulo se verá como eles se relacionam ao discurso a respeito das línguas judaicas (e, em menor extensão, das línguas não judaicas), a partir da perspectiva da imprensa sionista em língua alemã, até o início da Primeira Guerra Mundial.

Para tanto, há de se passar pelo segundo capítulo, onde a complexa Guerra das Línguas é discutida a partir de um panorama geral, tanto em seus efeitos quanto em suas origens.

S E G U N D O C A P Í T U L O

A Guerra das Línguas – processos identitários e lingüísticos

no espaço de língua alemã e no leste europeu

1.Perseguir o marcador lingüístico

Diversos são os marcadores que poderiam servir de parâmetro ao estudioso para julgar a validade de cada uma das teorias descritas no capítulo anterior a respeito da integração dos judeus às sociedades de língua alemã. O mesmo vale para os judeus do leste europeu. Palavras como nação, etnia, sistema cultural ou confissão ganham sentido a partir deles. Poder-se-ia focar no rito religioso, na freqüência de casamentos inter-religiosos, no status político, nas conversões (também de cristãos ao judaísmo), ocupação econômica, entre outros, como alguns estudiosos já fizeram e vem fazendo com maior freqüência, dado que a ‘antropologização’ da história é uma tendência dos últimos anos nos estudos judaicos na Europa assim como da história em geral56.

Para o pesquisador a tarefa não é nada elementar. A simples eleição do termo ‘marcador’ ou do seu imperfeito equivalente ‘princípio articulador’ já denota respectivamente a ênfase em sua função como delimitador entre dois grupos ou então na coesão intra-grupal. Além disso, o tipo de marcador perseguido provavelmente influenciará a perspectiva geral que se tem do caso. Isso porque cada um destes aspectos da vida humana não é equivalente aos outros: articula ou marca de uma maneira mais ou menos visível, mais ou menos indelével, mais ou menos superficial.

O peso exato de cada um deles face aos outros está longe de gozar de unanimidade mesmo dentro da antropologia. É certo que para Lévi-Strauss, seria o parentesco o princípio articulador ao qual todos os outros estariam subordinados. O parentesco seria a linguagem básica dos grupos humanos e estruturante do seu pensamento. Diante da experiência em campo, no entanto, os

56 O que chamo de ‘antropologização’ da história remete a: 1) tentativa de apagar uma fronteira teórica e afetiva que

delimita abordagens diferentes para o estudo de sociedades ocidentais e não-ocidentais 2) relativizar os processos históricos ocidentais como ‘modelo’ para compreender outros 3) trazer questões e noções desenvolvidos fora do ocidente para compreender aspectos das sociedades ocidentais. A respeito do impacto da teoria antropológica na escrita da história ver: WEINSTEIN, Barbara (2003). Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101- 90742003000200011&script=sci_arttext#nt01. Consultado em 02.03.2009. A respeito da história judaica, em STEER (in: SCHMALE e STEER, 2006), discute-se detalhadamente a nova perspectiva sobre a história judaica na Europa.

etnógrafos tem se confrontado há muito com casos particulares em que um ou outro marcador aparece como mais determinante.

Penso por exemplo na enorme diferença em como Leach e Evans-Pritchard interpretaram a importância da língua respectivamente no sudeste asiático e no Sudão. Em ‘Sistemas Políticos da Alta Birmânia’ (publicado pela primeira vez em 1954) Leach descreveu a língua como um elemento um tanto pífio e superficial, que atuava como um “mero” marcador entre os kachin e chan, enquanto o verdadeiro – e, portanto, profundo – princípio articulador era o casamento, que perpassava e ligava estes dois grupos, dado que o funcionamento deste princípio era comum para ambos. Contrariando a idéia que se fazia antes do seu estudo, quando era praxe aceitar que os kachin e os chan fossem grupos eminentemente diferentes, Leach descreveu um sistema formado por um continuum que ligava dois pólos, um beirando a anarquia, o outro uma espécie de sólido feudalismo. Em meio a este complexo social a língua somente servia para delimitar grupos entre os quais havia rivalidade, a despeito da presença de trocas de mulheres e bens. Nas palavras de Leach (1971:50), os kachin “trocavam de língua como quem troca de roupa”.

Ao passo que, no livro ‘Nuer Religion’ (1956) Evans-Pritchard concedeu à língua um status de articulador profundo, o substrato mesmo do pensamento humano em suas várias ‘filosofias nativas’. É especialmente neste segundo volume dedicado aos Nuer que Evans-Pritchard se concentra mais no pensamento do que no comportamento. Para Pritchard, há uma imbricação entre a linguagem e a filosofia nativa, sendo que não são elas reféns da estrutura social, seu reflexo, mas mantém uma certa independência 57.

A julgar apenas pela língua, judeus alemães e judeus do leste europeu durante o século XIX, não pertencem à mesma etnia58. Os judeus alemães falam alemão, enquanto o judaísmo ashkenazita no leste europeu, que até o começo do século XX tinha o ídiche como sua língua materna59, destacada do contexto eslavo, configura-se mais claramente como uma etnia, ou termo que é co-extensivo a ela, uma nação.

Em relação aos judeus na Europa e mesmo antes de sua dispersão, já se proferiram afirmativas que fariam crer que a aproximação do marcador lingüístico no seu caso resultaria em uma

57 A respeito deste tema, ler a conclusão do livro ‘Nuer Religion’ (1956) em especial pp. 314 e 315. Cito como

exemplo: “(...) if we seek for elucidation beyond these (native) terms, a statement of what Spirit is thought to be like in itself we seek of course in vain (…)” (315).

58 De acordo com Weber (2004:269), a língua comum configura um dos índices para se averiguar a existência de

uma etnia.

59

Segundo Weinreich em 1897, ano do Primeiro Congresso Sionista em Basiléia, 97,96% dos judeus vivendo no Império Russo afirmavam ser o ídiche sua língua materna (apud GROSSMAN:2000:24). Os judeus do Império Russo, por sua vez, contavam com mais da metade dos judeus vivendo na Europa então (KARADY: 2000:17).

impressão ora à la nuer, ora à la kachin. Chaver (2004) e Grossman (2000) argumentam no sentido da importância do ídiche como fator de delimitação do entorno não judeu, como elemento inextricável da judeidade ashkenazita. Para Fishman (1970), existe a tendência de alguns autores a ver no ídiche uma expressão máxima do ethos judaico (ashkenazita, bem lembrado). Para estes autores, que descendem do movimento idichista, especialmente marcante na primeira metade do século XX, o ídiche, expressando um ethos único, seria intraduzível. Fishman diz-se contrário a esta postura, que revelaria uma reificação do língua. Em outras palavras: para ele o ídiche é único, como todas as línguas, e passível de tradução (imperfeita) também como todas as demais.

Myhill (2004) considera que a importância histórica do ídiche reside tão somente em sua propriedade delimitadora do grupo judeu no contexto de línguas (geralmente) eslavas no leste europeu. Segundo este autor, somente a língua sagrada e escrita, o loshn-koydesh60 teve uma importância substantiva, positiva na história judaica, mesmo na Europa. A língua falada (fosse ela grego, espanhol ou ainda outra) nunca teria sido um parâmetro essencial para a identidade judaica, antes, durante, ou depois da diáspora. Esta divisão explicaria a disposição judaica, presumida pelo autor, de abandonar com facilidade a(s) língua(s) falada(s), embora muito dificilmente a língua sagrada. Para Myhill a noção étnico-nacional judaica repousa sobre a religião, e mesmo a importância do hebraico se extrai, em primeiro lugar, da associação entre a religião e a língua. Foi por ressaltar tais propriedades do hebraico que seus entusiastas lhe deram o epíteto de ‘a língua eterna’, a exemplo do título do livro publicado em 1964 pelo pai de Noam Chomsky, William Chomsky (em inglês, Hebrew: the eternal language).

Analisando os componentes do ídiche, Harshav (1994) chegou à conclusão, à primeira vista paradoxal, de que o ídiche exprimiria de forma única o ethos judeu ashkenazita, se confundiria com sua cosmologia, e ao mesmo tempo funcionaria como uma ‘língua aberta’, que permite aos seus falantes a rápida passagem a outras línguas. A última característica está ligada ao fato de o falante de ídiche conseguir reconhecer a origem de cada um dos componentes da língua (de extração germânica, eslava ou semítica), sendo assim capaz de filtrar sua fala para adaptar-se a contextos lingüísticos diversos. O que faz o ídiche único, no entanto, é a forma como estes elementos estão organizados no interior da língua, organização esta que sempre remete à valoração diferente dos pólos com os quais pode se aproximar. Além disso, debaixo do texto majoritariamente alemão haveria um subtexto especificamente judaico e não acessível para cristãos. Ou seja, Harshav não nega a penetração de

60 A língua sagrada, loshn-koydesh, é muitas vezes tomada simplesmente por hebraico, mas compõe-se também de

elementos goy na cosmologia judaica ashkenazita, por exemplos os contos pagãos que integram o seu acervo. Mas há, como acontece com os havaianos de Sahlins, uma lógica autônoma de apropriação destes elementos.

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