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O sistema dos quadrinhos

No documento DISSERTACAO INCIDENTE EM TUNGUSKA (páginas 41-44)

Batizada de formas diferentes em cada país, os muitos termos usados para nomear a história em quadrinhos trazem, recorrentemente, algum tipo de problema.14 Muitas vezes, as tradições e escolas que se desenvolveram com mais visibilidade nestes países, com seus estilos e características próprios, ou às vezes movimentos e neologismos usados para designar um tipo específico de HQ, acabaram por serem utilizados como se designassem distintos campos.15 Por muitas décadas, o entendimento que se teve sobre os quadrinhos baseou-se em análises insuficientes. A presença do balão de fala, um tipo específico de desenho, a necessidade do humor, um conteúdo infantil e de entretenimento, ou mesmo a necessidade de haver um personagem recorrente ou personagens antropomorfos, eram elementos que se confundiram (e, ainda hoje, confundem-se), para muitos, com uma definição de HQ. Dessa forma, é importante percebermos como o

14 Nos Estados Unidos e no Japão, os quadrinhos ficaram conhecidos, respectivamente, como comics e manga, remetendo a um tipo de conteúdo cômico, engraçado ou ‘supérfluo’ (em uma tradução literal, manga significa “imagens supérfluas” ou “imagens irresponsáveis”). Na Itália, o termo fumetti refere-se ao formato dos balões de fala tão comuns nos quadrinhos. Na América Latina, o termo historieta faz pensar se tratar apenas de historinhas, como algo menor, infantil e/ou despretensioso. Já na França e em Portugal, os quadrinhos ficaram conhecidos, respectivamente, como bande dessinée e banda desenhada. Contudo, sabemos (e há inúmeros exemplos de obras que nos mostram isso) que uma história em quadrinhos não precisa ser cômica ou engraçada, nem possuir balões de fala, tampouco precisa ser, necessariamente, desenhada (há exemplos de quadrinhos pintados, feitos em gravura ou mesmo, e ainda que de forma discutível, que envolvem a fotografia). O próprio termo usado no Brasil, história em quadrinhos, traz seus problemas, já que, em muitas, os próprios quadrinhos, isto é, o formato das vinhetas, não existe ou mesmo diversos trabalhos não se caracterizam exatamente como histórias, não apresentando uma proposta narrativa.

15 Por exemplo, é bastante comum ver o termo manga sendo utilizado para descrever quadrinhos que trazem determinada influência de estilo do quadrinho japonês, mesmo feitos em outros países, como o Brasil.

modo como a história em quadrinhos foi definida e entendida ao longo dos anos contribuiu para ratificar o status dos quadrinhos não como uma forma de arte (BEATY, 2012, p. 25), mas como parte da cultura de massas.

Thierry Groensteen,16 um dos mais influentes e reconhecidos teóricos do campo dos quadrinhos, argumenta que a dificuldade de se chegar a um entendimento da história em quadrinhos faz com que as definições encontradas nos livros de teóricos do campo sejam bastante insatisfatórias. Para o autor, foi necessário abandonar a ideia de que a história em quadrinhos é essencialmente uma mistura de texto e imagem para que se avançasse em sua teoria, demonstrando que se trata de uma linguagem predominantemente visual cuja essência não está na representação mas em seu dispositivo canônico.

Em seu livro The System of Comics, Groensteen (2007), olhando o meio como um sistema, propõe que os quadrinhos sejam analisados por um conjunto de relações formado por imagens solidárias, que compartilham um espaço. Desse modo, apresenta o princípio da solidariedade icônica, que rege a história em quadrinhos. Segundo o autor, os quadrinhos compõem-se por “imagens interdependentes que participam em uma série, apresentando a dupla característica de serem separadas e que são plástica e semanticamente

sobredeterminadas pela sua existência em copresença”17 (GROENSTEEN,

2007, p. 18). Cada quadro solicita completude nos outros que se articulam entre si, de diferentes maneiras e em diferentes níveis, adquirindo um valor complementar pela presença das outras imagens, acompanhados ou não de texto verbal.

Groensteen demonstra que quando lemos uma história em quadrinhos, primeiro vemos a página como um todo, percebendo as múltiplas imagens estáticas e simultâneas que ocupam o mesmo espaço, para só depois nos fixarmos em cada vinheta, separadamente, detendo nosso olhar em uma vinheta de cada vez. Na óptica deste investigador, os quadrinhos se caracterizam pelo dispositivo

espaço-tópico [spatio-topic],18 um sistema particular de relações entre duas

16 Além de publicar diversos livros e incontáveis artigos, Groensteen é agente no campo em outras frentes: como crítico, editor de revistas como Les Cahiers de la Bande Dessinée e 9e Art, diretor do Musée de la Bande Dessinée de Angoulême, participando da organização e curadoria de inúmeras exposições e eventos do meio, sendo um dos fundadores da OuBaPo, entre diversas outras atividades.

dimensões que se complementam: uma de espaço, através de um formato e de uma superfície, e outra de lugar, que indica determinada colocação na página e no livro. O dispositivo espaço-tópico é, portanto, uma categoria abstrata (GROENSTEEN, 2012) que quer dar conta do conjunto de distribuição de espaços e ocupação de lugares, pelo posicionamento das imagens em situação de copresença, que ocupam determinado espaço, e que se sobredeterminam. Da vinheta à página, à história ou ao livro, criando significados e vetores para a produção de leitura. Para Groensteen, quando, por exemplo, um autor começa uma nova história em quadrinhos, ele imagina a história em determinada forma mental com a qual precisa negociar. “Esta forma é precisamente o dispositivo espaço-tópico, um dos fundamentos do sistema da história em quadrinhos” (GROENSTEEN, 2007 p. 21).

Em seu último livro, Comics and Narration, que dá continuidade a The

System of Comics, analisando transformações e novas propostas para o campo,

no ponto de vista desse pesquisador, ao aceitarmos a possibilidade de existirem histórias em quadrinhos abstratas, percebemos que o dispositivo espaço-tópico dos quadrinhos existe por conta própria, independentemente de qualquer condição relativa à representação figurativa ou à narração. Dessa forma, segundo o autor, o dispositivo deve ser reconhecido como constituindo o elemento central de uma definição de história em quadrinhos (GROENSTEEN, 2013, p. 14), assim como Dubois sugere que “a projeção de um filme, realizada em uma tela, envolvendo uma sala escura com espectadores, constituem o dispositivo do cinema, algo absolutamente fundamental para defini-lo”. Groensteen demonstra ainda que a própria página estabelece uma função de quadro, entendido pelo autor como um hiperquadro [hyperframe], fornecendo à vinheta as condições de sua localização, sendo a totalidade desse texto quadrinístico entendida como um multiquadro [multiframe], através do qual se articularão essas imagens solidárias. Para isso, Groensteen propõe o conceito de artrologia [arthrology], referindo-se aos diferentes modos de articulações entre as imagens, e assim nos mostra sua ideia de entrelaçamento [braiding], que diz respeito às relações que as vinhetas constituem entre si, demonstrando que elas

encontrar esta tradução em pesquisas acadêmicas de nosso país, como em Benjamin Picado e Maria Clara Carneiro. Contudo, chamo a atenção para o uso de “espacio-tópico” feito por Pedro Moura, uma tradução que a meu ver se encaixa melhor com a proposta de Groensteen.

não acontecem apenas na página, mas também na relação entre as páginas duplas e de página para página. Dessa forma percebemos que até em trabalhos que apresentam uma única vinheta por página pode haver um entrelaçamento das vinhetas entre as páginas da obra. Assim, para o autor, apesar de ser composta de múltiplas imagens, “os quadrinhos não são uma arte apenas do fragmento, da dispersão e da distribuição, mas também da combinação, da articulação e da repetição” (GROENSTEEN, 2007, p. 22).

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