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O sonho na perspectiva da Psicologia Analítica

3. DA PSICOLOGIA DO SONHO AO UNIVERSO ONÍRICO INFANTIL

3.1. O sonho na perspectiva da Psicologia Analítica

A realidade dos sonhos sempre esteve presente na história da humanidade. Ao longo dos séculos e nas variadas culturas esse produto humano e legítimo assumiu várias faces, sendo encontrado em diversos momentos históricos da humanidade, na mente de inúmeros pensadores, poetas, religiosos entre outros. O universo onírico povoado de imagens e vida psíquica por muitas vezes associou-se à revelação, loucura e à comunicação entre mundos espirituais.

Antes da constituição da psicologia como área de conhecimento supostamente capaz de compreender os fenômenos psíquicos, os pensadores da modernidade expunham suas ideias a respeito da gênese dos produtos oníricos. São inúmeras as considerações de filósofos modernos que subsidiaram ideias básicas a respeito da fenomenologia do sonho. Esses pensadores e pesquisadores propuseram uma crescente psicologização do sonho, “tentando expurgar o sonho desta vasta rede de significados sociais, religiosos e cósmicos” (SHAMDASANI, 2005, p.132)

Um dos pioneiros na análise dos conteúdos oníricos foi Sigmund Freud. No momento de auge da era Vitoriana, em uma sociedade européia marcada por um positivismo ilustrado, em meio aos inúmeros laboratórios visíveis e dissecadores, Freud lança a interpretação dos sonhos. Na mesma época, Jung entra em contato com a vertente “psico analítica” e aprofunda suas contribuições sobre o aparelho psíquico do homem. Apesar das divergências teóricas, Freud e Jung corroboram a ideia de que o homem possui um inconsciente com características psicodinâmicas, com elementos vivos e atuantes.

Inicialmente Jung propõe que o sonho é um produto natural da psique, “produto autônomo e muito importante da atividade psíquica e, como todas as outras funções psíquicas, passível de uma análise sistemática” [JUNG, 1990(1909), p.27]. Assim como o corpo físico tem suas estruturas regulativas do sistema simpático, do qual não temos controle, o sonho apresenta a realidade psíquica do sujeito, num olhar de dentro para fora. “O sonho é uma criação psíquica que, em contraste com os conteúdos habituais

da consciência, se situa, ao que parece, pela sua forma e seu significado, à margem da continuidade do desenvolvimento dos conteúdos conscientes” [JUNG, 2009b(1928), §443, p.177].

A maneira pela qual analisamos o sonho é de importância significativa, visto que é mediante a conduta do observador que se permite à psique livre expressão ou se reduz os conteúdos oníricos a meras generalizações. A visão Freudiana privilegia que o conteúdo manifesto do sonho passou por inúmeros mecanismos até atingir a forma apresentada. Por esse viés, o sonho traz conteúdos desagradáveis que precisam ser censurados para que possam chegar à consciência. Portanto, a visão de causalidade é a adotada, entendendo que o conteúdo manifesto e latente do sonho indicam alguma espécie de conflito da ordem do desejo, geralmente em oposição à vontade, que precisa ser realizado de alguma forma. Procura-se nos conteúdos oníricos elementos que possam ser interpretados e assim entendidos pelo ego do sonhador.

Jung (2009b(1928) §462, p.182) explica que há validade no método causalista proposto por Freud, pois “o ponto de vista da finalidade que oponho à concepção de Freud não implica, como expressamente o sublinho, uma negação das causas do sonho, mas antes uma interpretação diferente dos seus materiais associativos”. Jung propõe uma visão finalista para o sonho, concebendo-o tal como os demais conteúdos psíquicos, estando além de uma causa e de uma fixação no desenvolvimento. Uma visão essencialmente causal dificulta o acesso ao potencial transformador do sonho, a sua eficácia e a indicação ao sujeito de uma nova posição diante da vida.

O inconsciente não se utiliza de expressões literais ou conceitos intelectualmente formulados, mas estabelece um elo de comunicação que lhe é singular e que de inúmeras maneiras informa ao sujeito sobre seu funcionamento. Uma das formas pelas quais o inconsciente se utiliza é do sonho. Segundo Jung:

Os sonhos contêm imagens e associações de pensamentos que não criamos através da intenção consciente. Eles aparecem de modo espontâneo, sem nossa intenção e revelam uma atividade psíquica alheia à nossa vontade arbitrária. O sonho é, portanto, um produto natural e altamente objetivo da psique, do qual podemos esperar indicações ou pelo menos pistas de certas tendências básicas do processo psíquico. Este último, como qualquer outro processo vital, não consiste numa simples sequência causal, sendo também um processo

de orientação teleológica. Assim podemos esperar que os sonhos nos forneçam certos indícios sobre a causalidade objetiva e sobre as tendências objetivas, pois são verdadeiros auto-retratos do processo psíquico em curso [1996(1928) §210, p.07].

O sonho oferece uma comunicação de maior amplitude, pois os conteúdos apresentados no sonho estão além do domínio egóico, mas, em consonância com a atitude consciente, num jogo compensatório de elementos psíquicos. “O sonho na minha opinião, faz parte dessas reações oportunas, introduzindo na consciência, graças a uma estruturação simbólica, os materiais constelados no inconsciente pela situação consciente” (SILVEIRA, 1997, p.94).

O universo onírico é uma porta pela qual observamos o inconsciente. O retrato onírico possui funções importantes ao desenvolvimento da personalidade, pois oferece um caminho de autoconhecimento e estabelecimento de uma relação madura entre o mundo consciente e inconsciente. Von Franz (1999, p.11-2) ressalta que “o sonho é expressão da natureza inconsciente e não pré concebida dos seres humanos” e ainda complementa que “se trata de uma resposta da parte da própria psique à questão da auto-realização”. Johnson (1989, p.79) advoga que “o objeto principal de nossos sonhos é, em última instância, o processo de individuação. A maioria dos sonhos, de uma forma ou de outra, são retratos de nossa jornada em busca da totalidade”.

Enquanto produto natural, o sonho, oferece insights, compensa as atitudes unilaterais da consciência, possui um caráter preventivo, anuncia possíveis acontecimentos ou oferece prognósticos, auxiliando o sujeito na busca pelo sentido de sua vida. Von Franz (1993, p.25) escreve que os mesmos nos dão uma direção para lidar com as situações, buscar algo que dê um sentido de vida, o próprio caminho e a realização do potencial singular individual. Trata-se de um processo de coniunctio no qual fragmentos cindidos, não integrados ou não reconhecidos, unem-se à personalidade. Jung ressalta que “os sonhos podem exprimir verdades implacáveis, sentenças filosóficas, ilusões, desenfreadas fantasias, recordações, planos, antecipações e até visões telepáticas, experiências irracionais...” [JUNG, 2008c(1931), §317 p.19].

A revelação advinda dos sonhos é análoga a outras formas de expressão psíquica, mas sua especificidade está na sua objetividade; é um produto que não passa pelo crivo do ego desperto, não há como controlá-lo. “Da mesma forma que a psique tem seu lado diurno, que é a consciência, ela também tem o seu lado noturno, seu funcionamento psíquico inconsciente, que poderia ser concebido com o fantasiar onírico” [JUNG, 2008c(1931), §317 p.19]. Ou seja, o homem noturno é a contraparte do homem diurno.

As imagens dos sonhos do homem noturno estão em correspondência com a fase do seu processo de individuação. A psique elucida aspectos da trajetória do indivíduo e estas características específicas de cada momento da vida são arquetípicas. Von Franz explicita que:

Na primeira metade da vida os sonhos se referem mais a uma adaptação dinâmica a vida exterior, terrena, material; na segunda, em geral, começam a dirigir a pessoa a recolher-se e a desenvolver uma certa sabedoria e insight sobre o que está por trás da vida aparente (1993, p. 42).

O trabalho com os sonhos não é aleatório, mas exige técnica, treinamento e uma boa dose de sensibilidade com as imagens: um processo geralmente experimentado anteriormente pelo observador que pretende analisar o sonho de outrem. Jung ressalta que diante do inconsciente e de sua importância os sonhos são uma “expressão direta da atividade psíquica inconsciente, a tentativa de analisar e interpretar os sonhos é, para começar, um empreendimento teoricamente justificável do ponto de vista científico” [JUNG, 2008c(1931), §295 p.12].

Analisar os próprios sonhos é inviável, pois não se pode ver além das lentes já utilizadas no momento vígil e por que, geralmente, o sonho toca em um ponto que é inconsciente, difícil de ser percebido e assimilado, necessitando de um outro olhar. Von Franz explica a técnica junguiana para o trabalho com os sonhos:

Comparamos o sonho a um drama e o examinamos sob três aspectos estruturais: primeiro a introdução e a exposição – o cenário do sonho e a colocação do problema; segundo, a peripécia – o desenrolar da história; e finalmente, a lysis – solução final, ou talvez a catástrofe (1993, p.48).

Em um primeiro momento é necessário observar o cenário, os sentimentos e sensações atrelados a ele, se o mesmo é conhecido ou que impressão lhe causa, os personagens, o protagonista, o antagonista e as formas de relações estabelecidas. Em seguida observa-se o desenrolar do enredo, o problema ou a questão que está envolvida, na qual se observam as reações e atitudes dos elementos envolvidos no sonho. Ao final espera-se um desfecho, uma consequência do enredo e de importante significação psíquica pois pode estar mostrando uma solução ou prognóstico, que precisa ser apresentado à consciência vígil do sonhador.

Os fenômenos psíquicos são altamente importantes para a homeostase psíquica e todos os elementos combinados nos personagens, enredos e desfecho são participantes de uma “dança psíquica” com movimento e vida próprios. A respeito da tendência compensatória do inconsciente, as manifestações oníricas “levam a um feedback, que muda tanto o consciente como o inconsciente. Isso faz surgir o que Jung chama de processo de individuação” (Meier, 1999, p.156). Stein (2004, p.157), afirma que “as compensações acontecem classicamente nos sonhos. A função de compensação consiste em introduzir equilíbrio no sistema psíquico” ou seja, são fontes de restaurar o elo imprescindível de vida e de comunicação consigo mesmo.

Tal como um organismo vivo, cada elemento onírico tem um simbolismo particular, semelhante ao que observamos na mitologia, nos contos de fadas, nos contos populares, na religião e outras formas de expressão.

Em nossos sonhos, os perigos, gárgulas, provações, auxiliares secretos e guias ainda são encontrados à noite; e podemos ver refletidos, em suas formas, não apenas todo o quadro da nossa presente situação, como também a indicação daquilo que devemos fazer para ser salvos (CAMPBELL, 1993, p.105).

“Os sonhos costumeiramente se reúnem ao redor de temas específicos, que começam a manifestar-se no tempo” (BOSNAK, 2006, p.18). O mesmo autor compreende que estudando uma série de sonhos observamos como as imagens oníricas estão em contínuo processo de desenvolvimento e que, semelhante a um

organismo vivo, elas nascem e morrem. O propósito dos sonhos, na teoria junguiana, é compensar as distorções unilaterais do ego vígil; por conseguinte, os sonhos também estão a serviço do processo de individuação, auxiliando o ego vígil a encarar a si mesmo de forma mais objetiva e consciente. O sonho é um elemento mobilizador da psique e sua importância reside no diálogo possível com os elementos inconscientes, proporcionando a integração e alavancando o processo de autoconhecimento.