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3. CAPÍTULO DOIS: O acesso à experiência via estratégia GAM-BR: diferentes

3.9. O Sujeito da Experiência, a Educação Terapêutica do Paciente e a

Na França, o histórico das produções sobre o saber expert remonta à

Education Thérapeutique du Patient - ETP (Educação Terapêutica do Paciente, em

tradução nossa). É esta noção que prevalece, relacionada às doenças crônicas, definida como o processo que compreende um conjunto de fenômenos ativos e organizados num determinado tempo, que permite ao paciente apropriar-se de competências terapêuticas com o objetivo de aplicá-las sobre si mesmo. (JOUET; FLORA; LAS VERGNAS, 2010). Desta forma, considera-se que tomar em consideração a experiência dos pacientes é uma evolução no campo da saúde, pois as instituições de cuidado passam a ser reconhecidas também como espaços de educação

e o sistema de saúde faz valer a ideia de democracia sanitária42. Há uma relação de

ensino-aprendizagem que passa a fazer parte do campo da saúde. A melhora da qualidade de vida em pacientes com doenças crônicas é também um ponto indubitável a partir desta abordagem.

Como consequência, de uma lado temos profissionais de saúde desenvolvendo

42

Este termo se refere à implicação dos cidadãos nos dispositivos de participação das decisões públicas do campo da saúde e está incluído ne Lei francesa de 4 de março de 2002 (Loi n° 2002-303 du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à la qualité du système de santé).

estratégias de educação que visam fornecer aos pacientes uma melhor capacidade de reconhecer seus sintomas e melhorar suas condutas; de outro, multiplicam-se os movimentos de pacientes e familiares buscando a ajuda mútua e o reconhecimento de suas especificidades a partir da experiência do adoecimento. Em paralelo, desenvolvem-se, na educação, temáticas de autoformação e de formação pela experiência.

Segundo Brun et Lascoumes (2002, apud JOUET, FLORA, LAS VERGNAS, 2010), foi em 1934, com o movimento dos Alcoólicos Anônimos, que as pedras angulares de um novo tipo de troca, fundado sobre práticas não-formais em saúde, foram colocadas. A partir daí, esse modelo de organização de grupos de anônimos se expandiu para pessoas com outras questões (uso de substâncias psicoativas ilícitas, comportamentos compulsivos com jogos, distúrbios alimentares, entre outras) e também com pessoas portadoras do vírus HIV a partir da década de 1980. Neste período, o número de pessoas acometidas por este último foi muito grande, caracterizando, para alguns autores, uma pandemia. É aí que surge a figura de um paciente-ator, que vai fundar e participar de associações de pacientes e familiares voltadas à informação e ao cuidado de pessoas portadoras de infecções devidas ao HIV. A busca é por difundir conhecimento a respeito da doença, na direção também da prevenção dos sujeitos ainda não afetados, dado o aumento do risco para toda a população.

Estes eventos acabaram por produzir mudanças no paradigma biomédico, o qual reitera a importância e o saber do médico na condução dos tratamentos. Daí em diante, outras doenças crônicas como diabetes e hipertensão foram tomadas por esta via da educação terapêutica, e a saúde pública passou a investir na prevenção e nos tratamentos a partir da ideia de fornecer informações ao paciente para que este pudesse melhor gerir sua condição.

A educação terapêutica, portanto, trabalha na perspectiva de o sujeito apropriar-se de um saber que lhe é exterior, mas já reconhecido como tendo valor no campo do cuidado. Trata-se de aprender e apreender algo do outro para, focado em si, colocar em ação. A passagem ao lugar de expert se dá por meio de uma aquisição de algo que lhe é externo.

Diferentemente, o que o trabalho com a GAM propõe e coloca em questão nessa relação ao saber experiencial é a valorização de algo que já pertence ao sujeito;

consideração e elevada a um estatuto de valor. São os profissionais que precisam se apropriar de uma outra forma de olhar/escutar/cuidar a partir do que lhes é colocado pelo usuário/paciente. A GAM e a educação terapêutica parecem traçar percursos inversos, pois na GAM não há um saber a priori, ele se constrói a partir da troca de experiências. Ao mesmo tempo, há uma aposta a priori: o que o sujeito tem a dizer sobre seu vivido, vale. É como se o usuário ocupasse um lugar no púlpito: ainda que não se saiba o que será dito por ele, já lhe é outorgado um primeiro reconhecimento. E, à medida que vai dizendo e trocando com outros dizeres, isso vai se ratificando.

Se fizermos uma transposição desta discussão para os termos brasileiros, podemos dizer que o que a GAM propõe e coloca em ato aproxima-se do que, na

Saúde Coletiva, nomeia-se Educação em Saúde. O Ministério da Saúde a define

como um

Processo educativo de construção de conhecimentos em saúde que visa à apropriação temática pela população [...]. Conjunto de práticas do setor que contribui para aumentar a autonomia das pessoas no seu cuidado e no debate com os profissionais e os gestores a fim de alcançar uma atenção de saúde de acordo com suas necessidades (BRASIL, 2006, apud FALKENBERG et al, 2014, p. 2)

A prática da educação em saúde se dá na interação entre os três principais segmentos que compõem o setor: trabalhadores, gestores e usuários. Contudo, na cotidiano, teoria e prática ainda se encontram distantes. O termo vem sendo usado desde o início do século XIX, quando eram realizadas práticas de medicina preventiva, a qual apresentava estratégias de educação em saúde autoritárias, tecnicistas e biologicistas, em que as classes populares eram vistas e tratadas como passivas e incapazes de iniciativas próprias. O indivíduo era colocado como o responsável pela sua saúde. Algo que nos remete à noção de Educação Terapêutica de que falávamos logo acima. (FALKENBERG et al., 2014)

Na década de 60, contudo, momento em que a ditadura ameaçava a população, movimentos sociais como o Movimento da Educação Popular conduzido por Paulo Freire, começaram a influenciar o campo da educação em saúde incorporando a participação e o saber popular à área, dando origem a processos educativos mais democráticos. Começou a falar-se então em educação popular em saúde. Ainda que

não digamos que a GAM seja ipsis litteris uma corrente deste movimento, ela é também por ele inspirada e se aproxima muito em termos da maneira como é conduzida.

Vale lembrar que, em muitos serviços, a expectativa em torno à GAM que

encontramos em alguns serviços, ao apresentá-la como proposta a gestores e trabalhadores em saúde, era a da produção de algo muito aproximado à essa perspectiva de Educação Terapêutica: a ideia de que a GAM faria os usuários seguirem “à risca” o tratamento medicamentoso, motivando a tão repetida expressão “adesão ao tratamento”. Se assim o fosse (e por vezes, dependendo da condução dos grupos, isso pode acontecer), não estaríamos respeitando o princípio de autonomia tão caro à GAM, mas impondo ao sujeito uma maneira de conduzir sua vida. A Educação Terapêutica é, portanto, um risco/um viés do trabalho com a GAM, mas não sua proposta primeira. O sujeito da experiência, nesse caso, passaria longe de ser o preconizado sujeito ex-posto de que falávamos acima.

Sobre este tema, em artigo publicado por Silveira e Moraes (2018), as autoras relatam um interessante aprendizado possível a partir do encontro com o professor e pesquisador Emerson Mehry que parece trazer em poucas e certeiras palavras, muito do que abordamos até aqui:

Numa palestra que organizamos na UFRJ em 2015, com o prof. Emerson Merhy, perguntei-lhe sobre o que ele pensava que era preciso mudar na formação acadêmica desses que seriam/serão possíveis trabalhadores da saúde mental. Ele respondeu que é preciso acabar com a formação tal como ela ainda acontece hoje, essa que nos enche de conteúdos que pensamos ser toda a nossa fortaleza. “É preciso formar profissionais fracos”, ele disse, no sentido de que, ao se encontrarem com os usuários, não tomem os saberes aprendidos como certezas tão grandes que os impeçam de entrar em relação com o usuário”. (SILVEIRA e MORAES, 2018, p. 149)