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O Sujeito entre a Dialética e a Estrutura

No documento Tempo e linguagem na psicose da criança (páginas 94-121)

Neste capítulo procuraremos mostrar como o tema do sujeito em Lacan possui uma dupla e problemática extração. Isso decorre basicamente das duas forças teóricas que parecem atravessar este período do pensamento de Lacan, a saber a dialética de Hegel e o estruturalismo linguístico de Saussure. Essa combinação redunda, como pretendemos mostrar, numa concepção não unitária de linguagem. Esta concepção híbrida está repleta de consequências para uma investigação sobre a temporalidade da linguagem. É ainda, neste período, em que a tensão entre dialética e estrutura parece acirrar-se, o fato de que nele Lacan desenvolve sua abordagem mais sistemática do tema da psicose 79.

Lacan inicia o seminário de 1955, dedicado às "estruturas freudianas das psicoses (Seminário III), desvencilhando-se dos compromissos que orientavam a tese de 1932:

"Mito da unidade da personalidade, mito da síntese, mito das funções superiores e inferiores, confusão a respeito do automatismo, todos esses tipos de organização do campo objetivo mostram (...) a negação dos fatos, o desconhecimento da experiência mais imediata" (p.16)

O programa do seminário envolve dois passos: a demonstração de que os conceitos freudianos de recalcamento e foraclusão podem ser lidos dialeticamente e linguisticamente e a demonstração de que os fenômenos elementares da psicose podem ser compreendidos à luz da estrutura formal da linguagem.

O que distingue a neurose da psicose seria o tipo de negação (Verneinung) envolvida. Enquanto na neurose o tipo de negação é homogêneo, na psicose ela é heterogêneo. Na neurose o que é negado no simbólico retorna no simbólico de acordo com o recalcamento (Verdrängung). Na psicose o que é negado no simbólico retorna no real, é a foraclusão (Verwerfung, forclusion) (p.21). Temos num caso, uma negação que incorpora o negado (Aufhebung) e no outro caso, o da psicose, uma negação que não contém o negado.

79 Há ainda uma terceira tematização das psicoses em Lacan no Seminário XXIII, “O Sinthoma” onde a partir do

comentário do “Ulisses” de James Joyce, da teoria dos nós e da lógica, postula-se a chamada “teoria da foraclusão

generalizada”. As perspectivas clínicas que esta terceira leitura oferece são até o momento incipientes. Em função disso não a examinaremos neste trabalho.

Ao analisar o recalcamento do ponto de vista da negação envolvida, Lacan serve-se de um ponto de vista hegeliano 80. Isso significa que o recalcamento é pensado a partir de um sujeito que recusa, expele ou suprime algo que lhe é próprio. No entanto ao analisar os aspectos formais, especialmente no que toca o retorno do recalcado, como é o caso das formações do inconsciente, sua referência é a linguística. Por isso pode-se afirmar que de um ponto de vista o inconsciente se estrutura na e pela fala (parole), que supõe necessariamente um sujeito e de outro ponto de vista o inconsciente se estrutura como uma língua (langue). Ao afirmar que o inconsciente se estrutura como uma linguagem Lacan reúne as duas dimensões: a da fala e a da língua, retomando assim a distinção saussureana.

O domínio da fala encontra sua plena realização na idéia de palavra plena, isto é, aquela que transita entre o sujeito e o Outro. A dialética supõe ainda um ciclo pergunta-resposta, uma “estrutura dialogal” (ou reflexiva) onde se estabelece a dialética do desejo e a subversão do sujeito. A fala, uma vez concebida dialeticamente, implica que o sujeito receba sua própria mensagem de maneira invertida a partir do lugar do Outro (p.147). A mensagem é invertida justamente porque este Outro é reconhecido em sua alteridade, como tal incognoscível. O Outro como inversor da mensagem do sujeito, se opõe assim ao outro como sede do conhecimento paranóico.

Para demonstrar esta inversão da mensagem, Lacan utiliza dois exemplos. Num examina-se o enunciado: "Você é minha mulher" (p.63) cuja significação invertida corresponde a "Eu sou seu homem". O outro exemplo é retomado de Freud, trata-se do chiste: "Por que me diz que vais a Cracóvia para que eu pense que vais para Lemberg quando de fato vais para Cracóvia ? " Neste chiste a condição da inversão da mensagem é a suposição de que o Outro pode mentir ou enganar e por isso ele é incognoscível. E incognoscível quer dizer aqui não antecipável, não espacializável e não objetificável pelas vias identificatórias. O sujeito do desejo é um sujeito que está às voltas com um

80 Poderíamos resumir este ponto de vista no comentário de Hyppolite (1989) que aproxima o conceito de denegação em

Freud (1925h) da expressão usada por Hegel para indicar a síntese dialética, ou seja a suprasunção (Hegel, 1992) ou ultrapassagem (Aufhebung): “Apresentar o seu ser num modo de não sê-lo é realmente o de que se trata nesta Aufhebung do recalcamento que não é uma aceitação do recalcado. Aquele que fala diz ‘Eis o que eu não sou’.” Assim como a

consciência, que na Fenomenologia do Espírito caminha assimilando suas sucessivas alteridades, o recalcamento é também processo de aparição e apagamento do sujeito. Daí a tese lacaniana de que o recalque e o retorno do recalcado se

Outro capaz de enganá-lo; o sujeito do conhecimento, pelo contrário, nasce de uma confiança no aspecto não enganador deste Outro 81.

A partir deste reconhecimento do outro (o duplo do ego) como Outro (a alteridade irredutível) a palavra, percorre um desenvolvimento dialético até se realizar plenamente 82. Três etapas são isoladas neste desenvolvimento: o significante, a significação e o discurso.

No plano do significante, o que interessa diretamente o tema das psicoses é a hipótese da instauração, num determinado momento, do que Lacan chama de "significante primitivo". A hipótese do "significante primitivo" apoia-se na releitura do artigo de Freud "A Negação" (192h), releitura que fora realizada por Lacan em parceira com Jean Hyppolite (o tradutor de Hegel para o francês) durante os anos de 1953 e 1955. No artigo em questão Freud fala da constituição do ego a partir da negação (Verneinung) originária de um juízo de tipo existencial, que corresponderia a uma forma de afirmação (Bejahung). Lacan vê nisso motivos para aproximar esta "Bejahung" da idéia de significante, retomando assim o tema hegeliano da palavra como assassinato da coisa. É porque o significante aniquila a coisa que ele é significante e não signo ou sinal.

O que caracterizaria a neurose é o tratamento deste significante pelo recalcamento. No caso da psicose esse significante se veria recusado ou foracluído. Essa foraclusão teria consequências para as etapas subsequentes da palavra: a significação e o discurso.

A significação é a forma de abordar a fala não do ponto de vista do signo (significante/significado) mas da frase no seu duplo sentido de enunciado gramatical e de enunciação . A frase se define pelo encerramento de uma significação e sua remissão a outra significação possível (p.159). Lacan refere-se a duas inflexões fundamentais da significação: o modo em que ao nos referirmos ao Outro recebemos nossa própria mensagem de maneira invertida e o modo onde ao

81 Lacan, especialmente ao referir-se as tese do filósofo da ciência Alexander Koyré, parece dar como condição da

revolução científica a emergência deste outro, ponto fixo e historicamente subvertido. Para a ciência moderna este ponto é o Deus não enganador de Descartes, para a ciência de Aristóteles este ponto é o real, aquilo que volta sempre ao mesmo lugar, para as sociedades indígenas e para as civilizações antigas estes ponto se localiza eventualmente na natureza, que em sua repetição se mostra não enganadora (Seminário III, p.81). Veja-se também Ciência e Verdade (1965, p. 837 e seg.) e Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo (1960, p. 773 -782)

82 Para perceber a proveniência hegeliana desta oposição, atente-se para a seguinte passagem da Fenomenologia do

Espírito: “A consciência de si perdeu-se ela mesma, pois se encontra como sendo outra essência; se encontro um outro eu, estou perdido, já que encontro meu eu como um outro. Mas o duplo sentido está em que a consciência suprimiu por isso mesmo o Outro, pois ela não vê o Outro como essência, mas é ela mesma que ela vê no Outro. “ in Hyppolite (1989, p.65) e Hegel (1992, p.126).

reconhecer o Outro indicamos a existência ou direção do sujeito através da alusão (p.63). Trata-se, num caso, de fechamento da significação e no outro da sua abertura. Ora, o fechamento da significação, no completar da frase, por exemplo, decorre da presença de um significante na função que Lacan chama de "basteamento" ou "point de capitonè". Tal função é representada em termos psicanalíticos pelo conceito de Nome do Pai (p.220) numa clara referência ao agente do recalcamento. Aqui o significante não é apenas a morte da coisa, mas a "morte" de todas as significações possíveis que são perdidas no fechamento e eleição de uma significação. Vemos aqui uma tensão entre o possível e o contingente.

Ocorre que na psicose, sob as circunstâncias precisas de seu desencadeamento, este modo de funcionamento da significação a partir do significante não se realiza. Compreende-se assim aquilo que é um traço patognomônico da psicose desde a tese de 32: a significação inefável (p.43) e a interrupção das remissões de significação. O Outro deixa de ser o lugar de inversão da mensagem e o sujeito psicótico se vê às voltas com uma significação que lhe é eminentemente endereçada mas que por não se remeter a nenhuma outra significação e por não se concluir como tal mostra-se incompreensível, estranha e fundamentalmente não articulada. Essa significação inconclusa é então remetida à realidade ou repetida infindavelmente no que Lacan chama de ritornelo 83:

"O Outro considerado como radicalmente estranho, como errante, e que intervém para provocar perto do sujeito na segunda potência uma convergência, uma intencionalização do mundo exterior, que o próprio sujeito, na medida em que se afirma como eu, repele com grande energia" (p.157)

A terceira etapa da palavra, o discurso, pode ser compreendida como uma "cadeia temporal de significantes" (p.175). Em relação ao discurso, Lacan refere-se à noção de "entre-eu" e de sujeito interposto. O discurso é, nesse sentido, a etapa onde a palavra mais se aproxima da língua e por isso, ao contrário do significante (na fala) e da significação não possui uma ordenação dialética mas uma estrutura linguística. O discurso é a dimensão diacrônica da língua. Se o Outro, do significante e da significação, é o lugar onde a fala se constitui (p.303), o Outro na acepção do discurso é o lugar de onde emerge o discurso inconsciente (p.132). O discurso enquanto última etapa da palavra e primeira

83 Preferimos manter o termo ritornelo ao invés de estribilho uma vez que seu uso está consagrado não apenas a partir da

dimensão da estrutura refere-se à incidência do inconsciente, sem necessariamente referir-se à presença do sujeito.

Lacan diz que o sujeito psicótico é falado pelo inconsciente (p.52) mas que, por ignorar a língua em que é falado (p.20) e por não se colocar uma questão sobre ela (p.230), torna-se uma mártir (literalmente uma testemunha) deste inconsciente.

Pois bem, o que liga a estrutura dialética da fala à estrutura não dialética da língua é justamente uma sobreposição de temporalidades entre uma e outra. O que há de comum entre a dialética e a estrutura é a suposição em ambos os casos de uma simultaneidade e de uma sucessão.

"Há, em primeiro lugar, um conjunto sincrônico, que é a língua enquanto sistema simultâneo de grupos de oposições estruturados, há em seguida o que se passa diacronicamente, no tempo, e que é o discurso." (p. 179)

O que Lacan parece ignorar nesta afirmação é a idéia de que a simultaneidade é um dos modos do tempo. Aqui ele nitidamente herda o preconceito freudiano de que o tempo é uma certa seqüência entre passado, presente e futuro e que torna atemporal ou fora do tempo tudo o que não puder ser contado nesta sequência 84. Ora, toda a revalorização que Lacan empreende da noção de retroação (Nachträglichkeit), inclusive pela substantivação do termo que em Freud é geralmente empregado como um adjetivo, aponta para o sentido contrário ao que se nota nesta passagem. Ao aproximar a estrutura sincrônica da língua ao inconsciente e ao ler esta sincronia como algo fora do tempo Lacan se aproxima da posição de Freud que via o inconsciente como algo não sujeito ao tempo. Paradoxo semelhante encontramos na idéia de que o ego se constitui por uma negação primordial e de que o inconsciente não admite a negação ou a contradição.

O paralelo encontrado para mostrar a pertinência freudiana de tal aproximação entre o inconsciente e a estrutura da língua é extraído da carta 52 a Fliess e da teoria do recalcamento nela contida. O recalcamento corresponderia a um erro na transcrição de um a outro tipo de inscrição (Umschrift). A partir disso Lacan lê a inscrição dos traços de percepção (Wahrnehmungzeichen) uso é plenamente conceitual e refere-se às diferenciações temporais que uma determinado sistema etológico possibilita ao repetir-se. Segundo Holanda ritornelo refere-se a cantigas entoadas monotonamente nos madrigais.

84 Também em Saussure (1975) podemos notar esta identificação da temporalidade com a duração como o atesta a seguinte

passagem: “(1) O eixo das simultaneidades, concernente as relações entre coisas coexistentes, de onde toda intervenção do tempo se exclui, e (2) o eixo das sucessões, sobre qual não se pode considerar mais de uma coisa por vez, mas onde estão situadas todas as coisas do primeiro eixo com suas respectivas transformações. “(p.95) A afirmação de Saussure de que há

como a inscrição significante e encontra aí a organização por simultaneidade 85: "O nascimento do significante é a sua simultaneidade e também sua existência é uma existência sincrônica."(p.207).

A "falha" na transcrição passa a ser então a aparição de processos estruturados como uma língua na esfera das relações entre sujeito e Outro. Trata-se da desarticulação entre a linguagem na sua forma de sistema de signos e a linguagem na sua forma de enunciação, o que vai de encontro a nossa hipótese da multiestratificação linguística.

Freud precisava de motivos para explicar o fracasso da transcrição e procurava estes motivos na intensidade ou força da excitação apensa aos signos, isto é, procurava soluções extra linguísticas para um problema linguístico (na perspectiva de leitura que estamos propondo aqui). Lacan, por sua vez parece postular como agente da resistência tradutiva algo interno a linguagem: o nome. O nome próprio, e o Nome-do-Pai é um caso especial na função dos nomes próprios, não se traduz, não se metaforiza e justamente por isso funciona como instância metaforizadora.

Podemos agora acrescentar que esta multiestratificação deve ser considerada em termos temporais e não em termos espaciais, isto é, as formas de linguagem se cruzam no tempo (por sucessão e simultaneidade) e não no espaço. O teste imediato para nossa hipótese de leitura pode ser feito sobre própria teoria do recalcamento.

Freud oscila em tratá-lo como um processo onde as representações mudam de lugar (do PrC./Cs. para o Incs.) e um processo onde haveria uma dupla inscrição permanente e simultânea das representações. A dificuldade em trabalhar a segunda hipótese, que é a mais claramente correta segundo Freud, decorre, como agora podemos sugerir, do predomínio do raciocínio espacializante e da recusa em conferir ao tempo uma dignidade semelhante ao espaço. Para tal bastaria notar que a hipótese da dupla inscrição supõe de saída a tese da simultaneidade dos processos psíquicos . No capítulo IV do artigo "O Inconsciente" (1915e) Freud discute essas duas hipóteses, opta pela da dupla inscrição e no entando não lhe dá a continuidade esperada. A hipótese da dupla inscrição diz que a representação não muda de estado mas apenas fica sujeita a outro tipo de configuração. A hipótese algo sujeito a transformação mas não sujeito ao tempo é bastante problemática e provavelmente refere-se a negação de uma forma específica de temporalidade.

funcional (dinâmica) explica melhor o recalcamento propriamente dito enquanto a hipótese da dupla inscrição explica melhor o retorno do recalcado 86.

Lacan ao afirmar que o recalcado e o retorno do recalcado são o avesso e o direito do mesmo processo (p.21) acaba por manter as duas versões sobre o recalcamento já presentes em Freud. Se o retorno do recalcado surge ao neurótico como uma "outra língua" (p.74) o recalcado propriamente dito surge como uma outra fala, como a fala do Outro.

Na psicose a diferença essencial residiria no modo de articulação desta outra língua ou desta outra fala ao nível do sujeito. Tudo se passa como se a outra língua fosse uma língua necessária e como se a outra fala fosse uma fala impossível. Daí a afirmação de que "... o neurótico habita a língua o psicótico é habitado por ela" (p.284). Não há na psicose o elemento híbrido capaz de conjugar de modo simultâneo os diferentes planos da linguagem. Daí a necessidade de especificar o processo foraclusivo como formalmente diferente do recalcamento. Isso significaria dizer que neste caso a temporalidade da linguagem se encontraria alterada. Aquilo ao qual foi recusado tradução não retorna como novo mas como algo intraduzível ou algo capaz de uma tradução sem falhas, uma tradução total. Esse compromisso entre língua e fala, acusado pelo recalcamento, traduz também a articulação entre imaginário e simbólico. A fala tem uma dimensão simbólica (entre o Sujeito e o Outro) e uma dimensão imaginária (entre o ego e o objeto). A língua tem uma dimensão simbólica (a sincrônica) e uma dimensão imaginária (a diacrônica). Na psicose, em função da foraclusão do significante primitivo, ocorreria o fracasso da dimensão simbólica da fala. Surge, em função disso, ao invés de um significante entre o imaginário e o simbólico, um significante no real: a alucinação. É o caso que denominamos de emergência do intraduzível.

Com o fracasso da dimensão simbólica da fala ocorre uma inflação da sua dimensão imaginária, atestada pelo delírio. Encontramos aqui o que denominamos de excesso de tradutibilidade.

85 A mesma interpretação aparece oito anos depois no Seminário XI. Neste texto acrescenta-se uma identificação entre o

significante e o que Freud chamava de representante da representação (Vorstellungrepräsentanz), isto é o ponto de anelamento ou de junção entre o pulsional e o psíquico..

86 Ver para isso o comentário de Laplanche (1992, p. 42 - 94) cuja crítica da concepção algébrica da metáfora e do

Os demais fenômenos elementares seriam comandados pela presença de estruturas puramente linguísticas (isto é, sem sujeito) 87. Essas estruturas são de dois tipos: as metonímicas e as metafóricas.

Lacan baseia-se aqui num estudo de Jackobson (1969) sobre as afasias. No artigo em questão, são descritas duas formas de afasia que possuem sintomas complementares. Na afasia sensorial, a estrutura sintática da frase se encontra preservada e a semântica comprometida. O sujeito é incapaz de estabelecer sinônimos ou de traduzir o que disse com outras palavras. No caso da afasia motora o sujeito é capaz de nomear e renomear algo mas a estrutura posicional da língua se encontra comprometida. O distúrbio gramatical reflete portanto a incapacidade de operar sucessões ou contiguidades. O distúrbio semântico reflete, por outro lado, a incapacidade de ordenar simultaneidades, a sincronia. Daí se depreendem duas formas elementares da estrutura da linguagem: a metáfora (onde predomina a simultaneidade) e a metonímia (onde predomina a sucessão) 88. Vimos que, na raiz da psicose, encontra-se justamente uma não realização de uma simultaneidade (a negação dialética). Isso explicaria porque há uma predominância dos fenômenos de dominância menonímica na psicose.

A dialética da fala e a estrutura da língua, pensadas nesses termos, serão as referências para a leitura do caso Schreber. Assim o desencadeamento da psicose se dá quando Schreber se encontra com uma idéia inconciliável: "como seria bom ser copulado como uma mulher". A resposta recalcante teria sido negar esta idéia e vê-la retornar de forma modificada sob forma de um sintoma ou um sonho, por exemplo. No caso de Schreber esta significação fica inconclusa o que se mostra pelo estado meditativo que se seguiu:

"... alguma coisa aparece no mundo exterior que não foi primitivamente simbolizada, o sujeito se vê desarvorado, incapaz de fazer dar certo a Verneinung em relação ao acontecimento" (p.104)

Segue-se a este momento de incerteza meditativa (Unglauben) ou de irrealização da significação, a irrupção dos primeiros fenômenos elementares:

87 Isso parece combinar com a tese freudiana presente no texto sobre o Inconsciente (1915e) de que na psicose haveria um

sobreinvestimento da representação-palavra e um concomitante desinvestimento da representação-coisa.

88 Segundo Barthes (1979) seria possível falar em discursos de dominância metafórica (onde predomina o sistema) e

discursos de dominância metonímica (onde predomina o sintagma). Exemplos do primeiro caso seriam o Romantismo, o Simbolismo, a pintura surrealista, os filmes de Chaplin e os símbolos freudianos. Exemplos do segundo caso seriam as epopéias heróicas, as narrativas realistas e os filmes de Griffith. (p.65)

a) O milagre do uivo: onde se mostra a função a-significante do retorno no real. É porque a alucinação mostra o significante fora de seu estatuto próprio que ela contem a reunião de toda significação possível. De acordo com o vocabulário que acompanha a edição das memórias do presidente Schreber (Schreber, 1985), o milagre dos urros:

"...consiste na emissão por Schreber de fortes ruídos inarticulados, também chamados de vociferações, que se verificam de modo automático e compulsivo, como um fenômeno comandado por forças alheias à sua vontade. Os urros ocorrem sempre nas pausas da atividade de pensar ou da volúpia da alma. Um dos objetivos perseguidos é dar a impressão de um homem tão imbecilizado que chega a urrar como um animal. É um dos milagres

No documento Tempo e linguagem na psicose da criança (páginas 94-121)