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O surgimento da Lei do Ventre Livre em debate

3 O FRACASSO NA ESTABILIZAÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA

3.4 O surgimento da Lei do Ventre Livre em debate

Antes de entrar propriamente nas discussões do Conselho de Estado sobre os projetos que desembocaram na Lei do Ventre Livre, mostra-se importante trazer breve debate historiográfico sobre os motivos do seu surgimento.

A nota enviada por D. Pedro II a Zacarias de Góes e Vasconcelos que iniciou este capítulo é indício significativo da importância que o resultado da guerra civil norte-americana teve para os desdobramentos políticos no Brasil, inclusive para a elaboração dos projetos que viriam a dar origem à Lei do Ventre Livre. Essa importância é destacada com profundidade por Marquese (2015, p. 37-60), Parron (2011, p. 345-346) e Salles (2008, p. 79-110), além de ter sido sugerida sucintamente por Barman (2012, p. 282-284) e Chalhoub (2003, p. 139-142). Sidney Chalhoub, em “Visões da Liberdade”, obra originalmente publicada em 1990, formulara outra hipótese, segundo a qual os escravos foram protagonistas no processo da Lei do Ventre Livre:

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Mostra-se relevante consignar que, nos preparativos da Lei do Ventre Livre, D. Pedro II exerceu papel significativo para propor e encaminhar o debate, conforme é descrito por Barman (2012, 281-342). No entanto, é um equívoco colocar todo o protagonismo no imperador. Não só muitos conselheiros compartilhavam de sua opinião quanto à necessidade de encaminhamento de uma reforma, como as extensas reuniões do Conselho e os projetos elaborados por alguns conselheiros – que iam além da libertação do ventre sugerida por D. Pedro II, indicam que não se pode colocar todo o protagonismo nele, conforme ficará mais claro quando da análise das discussões realizadas em 1867-1868 mais à frente.

O texto final da lei de 28 de setembro foi o reconhecimento legal de uma série de direitos que os escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitação de alguns objetivos das lutas dos negros. Isso é verdade não só em relação ao pecúlio e à indenização forçada, como também no que diz respeito à ideia mestra do projeto, isto é, a liberdade do ventre [...]. Na verdade, a lei de 28 de setembro pode ser interpretada como exemplo de uma lei cujas disposições mais importantes foram ‘arrancadas’ pelos escravos às classes proprietárias (2011, p. 199).

Esta formulação seria amenizada pelo próprio autor em “Machado de Assis Historiador”, de 2003, quando afirmou que “o isolamento internacional do país foi, portanto, fator crucial para o início do debate político sobre a emancipação” (p. 142).

A mobilização escrava na década de 1860 ainda está para ser melhor desenvolvida e descoberta pela historiografia; entretanto, afigura-se um excesso afirmar que as disposições mais importantes foram “arrancadas” pelos escravos. Inúmeros dispositivos previstos nos projetos da Lei do Ventre Livre, sobretudo o direito ao pecúlio, eram direitos costumeiros cujos escravos conquistaram. Contudo, o nascimento da legislação parece estar mais relacionado a outros fatores importantes como a Guerra Civil norte-americana, a Questão Christie e a própria tentativa do Estado imperial de se antecipar à história, controlando o processo de emancipação.

Não há episódios de revoltas escravas significativas no período. As insurreições escravas estiveram sempre no horizonte político dos estadistas, conforme se lerá nas discussões dos projetos formulados no Conselho de Estado no tópico seguinte. Nesse aspecto, especificamente, mostra-se importante a ponderação de Parron (2011, p. 102)93:

A historiografia tem articulado insurreições escravas com política nacional, mas, às vezes sem fazer crítica de fonte, outras sem levar em conta interesses escravistas, tem concluído que os escravos foram os principais agentes responsáveis pelo fim do tráfico negreiro e da escravidão no Brasil. Não há menor dúvida de que cativos e setores populares contribuíram para o debate sobre a escravidão no país. Pode-se apenas perguntar se toda ação por eles feita ganhou o mesmo peso e o mesmo sentido ao longo do período imperial.

O diagnóstico feito por Ricardo Salles (2008, p. 81) sobre a percepção dos estadistas imperiais de que a crise do sistema escravista era irreversível, afigura-se consistente,

93 Crítica semelhante e especificamente voltada à Lei do Ventre Livre é formulada por Marquese e Salles (2016,

p. 147): “O temor da rebelião escrava, como quer a nova historiografia da escravidão, não foi um fator de peso para a proposição e aprovação da lei (a não ser, enquanto perigo hipotético de desdobramento do quadro histórico e, assim mesmo, não enquanto ameaça principal). Não há evidências que esse fosse um temor imediato dos estadistas que batalharam pela aprovação da lei. Pelo contrário, seus opositores é que denunciavam a possível instabilidade e agitação que esta poderia acarretar no seio da população cativa. Tampouco há evidências de que a década de 1860 tenha conhecido um incremento significativo das ações de resistência e, muito menos, de rebeliões escravas”.

considerando o cenário internacional já retratado acima. Essa percepção, todavia, era oposta à dos fazendeiros do Vale do Paraíba, que viam a estabilização da sua mão de obra, com controle da mortalidade e aumento da natalidade94. A discussão dos projetos da Lei do Ventre Livre, assim, é a primeira disjunção importante entre os estadistas e os fazendeiros que, até aquele período, ainda eram hegemônicos na política nacional:

Para os estadistas, por sua vez, havia a percepção de que a instituição estava fadada ao desaparecimento lento e natural decorrente da preponderância do número de mortes sobre o de nascimentos entre os cativos. Mesmo assim, diante da experiência histórica da abolição no Caribe e do quadro internacional marcado pela Guerra do Paraguai e pela derrota dos Estados Confederados na guerra civil norte-americana, este desaparecimento lento da escravidão não era seguro, no sentido de impedir maiores ameaças à ordem imperial. Isto na medida em que haveria, ou poderia haver, uma tendência, diante do novo quadro político, à incrementação de uma oposição ativa à escravidão [...] Dessa maneira, argumentarei que, diferentemente do que ocorreu na conjuntura que resultou na extinção do tráfico internacional de escravos em 1850, houve, entre 1867-71, uma disjunção entre as percepções que fazendeiros e estadistas tinham da situação.

Terminada a Guerra Civil nos Estados Unidos, o imperador e os conselheiros de Estado viam na história três alternativas para o término da escravidão: (i) a ação violenta, seja por uma revolução escrava, como em São Domingos, seja pela guerra civil, como a norte- americana; (ii) a abolição pela ação parlamentar, como nas colônias inglesas e francesas, sobretudo com previsão de indenização; e (iii) as soluções emancipacionistas, sem extinção imediata da escravidão, de libertação do ventre escravo, consideradas menos traumáticas, como ocorrera em alguns estados do Norte dos Estados Unidos e em algumas Repúblicas da América Latina pós-independência (Parron, 2011; Salles, 2008, p. 90).

D. Pedro II e alguns conselheiros, com receio de que o processo histórico trouxesse uma ação violenta no futuro, escolheram a terceira opção, com discussões sucessivas em 1867-1868 no âmbito do Conselho de Estado dos projetos que seriam a base da Lei do Ventre Livre95.

94 O trabalho de Ricardo Salles (2008) sobre a região de Vassouras, coração do Vale do Paraíba, é notável ao

mostrar como os fazendeiros dessa área conseguiram, aos poucos, reverter o processo de alta taxa de mortalidade e baixa natalidade, estabilizando a mão de obra escrava. Para o período em que se discutiam os projetos da Lei do Ventre Livre, Salles explica que se delineava uma tendência de crescimento da mão de obra escrava na região do Vale. Esse crescimento estaria relacionado à sobreposição da taxa de natalidade sobre a de mortalidade, e não sobre o tráfico interprovincial. Nesse sentido, a perspectiva para os fazendeiros do Vale do Paraíba era de crescimento e manutenção da escravidão, e não de sua destruição. Isto também é um fator que explica a resistência virulenta dos representantes do eixo Rio-Minas-São Paulo quando da discussão no Parlamento do projeto definitivo da Lei do Ventre Livre em 1871.

95 A interpretação de Ricardo Salles (2008) quanto à estratégia do imperador e da maioria do Conselho de Estado

de se antecipar uma reforma para evitar uma crise maior no futuro coincide com a tese de José Murilo de Carvalho sobre a Lei do Ventre Livre. Segundo este autor, a atuação dos conselheiros favoráveis à Lei devem ser creditadas “à tática de reform-mongering” (2013, p. 307). O policy mongering consiste na antecipação de