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3 AFINAL, EDUCAÇÃO É MERCADORIA? O FENÔMENO DAS

3.2 O SURGIMENTO DO MERCADO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR

A economia pós-moderna, fundamentada na acumulação flexível, é marcada, como sustenta Harvey (1992), pelo amplo crescimento do setor de serviços. A educação não seria excluída dessa expansão capitalista. É reflexo do “mercado total”, que Alain Supiot (2014) denuncia ter tomado conta das relações sociais contemporâneas, a tudo transformando em bens.

Esse reflexo se dá em dois planos: o primeiro é o da transformação dos serviços educacionais em mercadoria. Pode ter como marco a criação da Organização Mundial do Comércio, em 1995, quando se estabeleceu, no Acordo Geral de Comércio em Serviços (GATS, na sigla em inglês), que a educação seria um dos 11 serviços, tradicionalmente mantidos e regulamentados pelo Estado, como direitos sociais historicamente conquistados, que passariam a ser objeto de políticas econômicas liberalizantes.

Havia ainda um décimo segundo item na lista de serviços internacionalizáveis: outros serviços não mencionados em qualquer outro lugar. O objetivo era que, paulatinamente, serviços de todos os setores se abrissem cada vez mais ao comércio internacional, ainda que sequer existissem ao tempo de propositura do acordo. Esse ponto se liga tanto ao primeiro plano, quanto ao segundo.

O segundo plano em que se veem os reflexos da existência do mercado total é na conversão do próprio Direito em “produto”. Supiot (2014) denuncia a conversão progressiva do direito em vetor de transformação de valores como natureza e trabalho – para Polanyi (2012), do homem mesmo – em mercadorias.

Uma espécie de “darwinismo normativo” estaria, conforme a crítica de Supiot, colocando em marcha, no plano jurídico-econômico, a doutrina ultraliberal de desmantelamento do Estado-providência, a fim de transferir setores da esfera dos direitos para a esfera do livre mercado. Sobre essa inversão promovida pela captura da esfera jurídico-política pelo capital financeiro internacionalizado, nesse mercado de produtos legislativos, ao qual se refere Supiot (2014). Luiz Belluzzo e Gabriel Galípoli ironizam que “hoje é a lógica da finança globalizada que delimita o território ocupado pelas opções da política democrática” (BELLUZZO; GALÍPOLI, 2017, p. 183).

A pressão externa para que pessoas jurídicas com finalidade lucrativa (inclusive se ligadas ao capital internacional) explorassem atividades educacionais foi forte o suficiente para promover a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases para a

Educação Nacional, em 1996, bem como para incentivar a regulamentação dessa LDB. Foi editada, então, uma série de decretos, a fim de regulamentá-la sempre com o claro objetivo de assegurar, juridicamente, a possibilidade de atuação de sociedades empresárias no setor de serviços educacionais.

Exemplo de regulamentação dotada de tal finalidade é o Decreto 2.207, de 15 de abril de 1997, que foi o primeiro texto normativo a conter, de modo explícito, que entidades educacionais poderiam ter fins lucrativos. Isso estava presente, em especial em seu artigo primeiro, parágrafo único e no artigo 3º:

[Art. 1º] Parágrafo único. As entidades mantenedoras das instituições privadas de ensino superior poderão se constituir sob qualquer das formas de pessoa jurídica, de direito privado previstas nos incisos I e II do art. 16 do Código Civil Brasileiro.

[...]

Art 3º As entidades mantenedoras com fins lucrativos submetem-se à legislação que rege as sociedades mercantis, especialmente na parte relativa aos encargos fiscais, parafiscais e trabalhistas (BRASIL, 1997)

Apesar de não mais em vigor, esse decreto merece ser lembrado, uma vez que simbolizava nova etapa na prestação da educação. Note-se que o Código Civil ao qual o decreto 2.207/97 se referia era o de 1916, ainda vigente àquela época. Em seu artigo 16, ele afirmava serem pessoas jurídicas de direito privado as sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública e as fundações, no inciso I, e, no inciso II, se referia às sociedades mercantis.

Dessa forma, foi instaurada a aparente15 segurança jurídica da possibilidade de exploração da educação com finalidade lucrativa que o mercado internacional tanto pressionara o Brasil para implementar. Aos poucos, a fundação das chamadas “faculdades isoladas”, mantidas por sociedades mercantis criadas exclusivamente para manterem uma instituição de ensino superior que se pretendia criar, passou a ser aceita pelo Ministério da Educação (NASCIMENTO, 2016).

A partir da publicação desse decreto, considerou-se alterado o marco normativo da educação. Com isso, não apenas sociedades empresarias começaram a surgir tendo por objeto a mantença de estabelecimentos de ensino, como também, houve transferência de mantença, de modo que IES cujas mantenedoras, até então não tinham finalidade lucrativa, passaram a ser mantidas por sociedades mercantis.

15Dizemos que essa segurança jurídica é aparente porque, embora seja explícita em normas

infraconstitucionais, sua constitucionalidade é questionável. Nascimento (2010, 2016), por exemplo, afirma que essas mudanças nas políticas educacionais violam os princípios constitucionais do pluralismo pedagógico e da evolução tecnológica, dentre outros.

Em 1999, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas educacionais (INEP), pela primeira vez, no Censo Nacional da Educação Superior (CNES), subdividiu os dados relativos à educação privada entre “particular” em sentido estrito, sendo assim designadas as IES com finalidade lucrativa, e “comunitária, confessional e filantrópica”. Na apresentação do CNES daquele ano, a presidenta do INEP, Maria Helena Guimarães de Castro16, se mostrava entusiasmada com os avanços alçados pelo ensino superior no Brasil, entre 1994 e 1999 (INEP, 2000a).

Newtinho, em entrevista a Grossi (2014), ponderou que, se por um lado, algumas dentre as muitas instituições abertas nessa época tivessem a qualidade e as condições de operação questionáveis, por outro, esse aumento no número de instituições de ensino, tanto básico, quanto superior, provocado pela possibilidade jurídica de se auferir lucro com a atividade, provocou também a expansão do mercado de trabalho do professor para o setor privado, o crescimento da categoria.

No mesmo ano, o Instituto divulgou a análise da série histórica de pesquisas sobre a graduação no Brasil, entre 1980 e 1998. A pesquisa revelara que o crescimento de 28% das matrículas entre 1994 e 1998 havia sido maior do que o registrado ao longo dos 14 anos anteriores (de 1980 a 1994) e não passara dos 20,6% (INEP, 2000b). A saída dessa fase de estagnação no Ensino superior se tratava, de acordo com Maria Helena Guimarães de Castro (INEP, 2000a), de uma nova dinâmica de desenvolvimento do sistema nacional de educação superior, caracterizada pelo acelerado processo de expansão do ensino superior, tanto nas capitais como nas cidades do interior, pela melhoria dos indicadores de eficiência e de produtividade, pela melhoria da qualificação do corpo docente, pela diferenciação do perfil das instituições por dependência administrativa e pela diversificação e flexibilização da oferta.

A preocupação demonstrada por Helena Castro dizia respeito, dada a velocidade da pulverização das IES, a uma provável dificuldade de se manter e elevar a qualificação dos professores de terceiro grau. Essa barreira à majoração do padrão de ensino estava sendo combatida, na visão da presidenta do INEP, com políticas de incentivo à qualificação dos professores, implementadas como eixo estratégico da

16 Maria Helena Guimarães de Castro ocupa cargos no alto escalão do MEC, desde 1995, e, no Governo de Michel Temer, foi substituta do Ministro da Educação, Mendonça Filho. A ela é creditada a idealização e aprovação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a implementação de políticas de cunho neoliberais.

atuação do MEC. No processo de avaliação dos cursos e das IES, atribuiu-se grande importância à qualificação docente; além disso, implementaram-se o Provão e a Avaliação das Condições de Oferta, que seriam supostamente motivadores para que as instituições continuassem investindo na melhoria do perfil de seu quadro de professores (INEP, 2000a).

Três anos após a manifesta permissão de que se explorasse lucrativamente a educação, no ensino superior, já existiam 526 instituições com esse novo perfil, contra apenas 379 instituições privadas com as conformações jurídicas classicamente adotadas, sem finalidade lucrativa. Mais da metade dessas IES particulares se encontravam no Sudeste. Nesta região, eram 290 IES particulares e 268 comunitárias, confessionais ou filantrópicas (INEP, 2000a).

Em Minas Gerais, contudo, a inversão ainda não havia ocorrido. Em 1999, havia no Estado 135 IES, 21 públicas e 114 privadas, sendo 48 particulares e 66 sem finalidade lucrativa. No ano seguinte, o Estado seguia contando com 135 IES. Caíra, porém, o número de públicas, com o fechamento de 3 faculdades municipais e de 1 faculdade estadual. Ademais, outra rápida mudança acontecera. As IES privadas, que agora eram 118, passaram a ser compostas por 71 particulares e apenas 47 filantrópicas, comunitárias ou confessionais. As IES particulares, e apenas elas, cresceram quase 48% de um ano para o outro, com decréscimo no número de instituições com as demais categorias administrativas. O forte crescimento do novo setor privado (particular), concomitantemente à queda do antigo setor privado, pode significar, na análise de Nascimento (2016), que tenha havido transferência da mantença.

De fato, a organização das instituições de Ensino Superior brasileiras tem uma idiossincrasia que facilita a modificação de suas estruturas administrativas (além das já comuns transações envolvendo IES). Trata-se de seu caráter bipartido, mais notável nos estabelecimentos particulares, mas também presente nos públicos. Tendo em vista a existência de duas órbitas de atuação conectadas, mas diversas e apartadas, intrínsecas a uma instituição de ensino – uma acadêmica e uma econômica – a legislação brasileira estabeleceu que seriam duas as estruturas organizacionais que comporiam cada instituição de ensino. São elas: as figuras da mantenedora e da mantida (NASCIMENTO, 2010).

Assim, ao autorizar o funcionamento de uma instituição de ensino, autoriza-se, na verdade, a existência de dois entes jurídicos: a instituição de ensino (mantida), ente

jurídico autônomo, mesmo que sem personalidade jurídica própria; e a entidade mantenedora, dotada de personalidade jurídica.

À mantenedora incumbe constituir patrimônio e rendimentos hábeis a fornecer instalações físicas e recursos humanos propícios ao funcionamento da mantida. É também a ela que cabe gerir tais insumos de modo a garantir que a mantida siga funcionando e desenvolvendo suas atividades. A existência da mantenedora, perante o MEC, apenas é averiguada para conferir a capacidade de se manter o funcionamento da mantida (ZIMMER, 2002).

Por essa razão, como é a mantenedora que pratica, na ordem jurídica, os fatos da “vida civil” da IES, atuando, eminentemente, no campo econômico, de natureza jurídica obrigacional e patrimonial, tem-se, por decorrência lógica, que a mantenedora seja dotada de personalidade. E é dessa personalidade jurídica que decorre a capacidade de contrair obrigações e adquirir direitos, tanto como dispõe o Código Civil de 2002 como dispunha o Código Civil de 1916, em seus artigos primeiros.

Já à mantida, cabe cumprir os objetivos centrais da mantenedora, quais sejam: a implementação e o funcionamento de um estabelecimento de ensino superior, que deve promover o ensino, a pesquisa e a extensão em nível superior, conforme os artigos 205 a 214 da Constituição da República de 1988, e a LDB de 1996, nos termos de seu artigo 43, que, com a inclusão do inciso VIII em 2015, estabelece as finalidades da educação superior:

Art. 43. A educação superior tem por finalidade:

I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo;

II - formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua;

III - incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive;

IV - promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação;

V - suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração;

VI - estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade;

VII - promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição.

VIII - atuar em favor da universalização e do aprimoramento da educação básica, mediante a formação e a capacitação de profissionais, a realização de pesquisas pedagógicas e o desenvolvimento de atividades de extensão que aproximem os dois níveis escolares (BRASIL, 1996).

É graças a essa característica dual das IES e às flexibilizações legislativas que as operações empresariais, de fusões e aquisições entre IES – na verdade, entre suas mantenedoras – passaram a ser corriqueiramente praticadas ao longo das últimas duas décadas. Ao se “vender uma IES”, não é a mantida que tem a titularidade transferida, mas sua mantenedora. Trata-se de ato econômico, controlado pelos órgãos de defesa da concorrência, não pelo MEC.

A ironia apontada por Nascimento (2016) é que, “no mercado do ensino superior brasileiro, as operações de compra e venda já deixaram de ser apenas de serviço, e os principais negócios passaram a ser de aquisição entre as próprias empresas, de umas pelas outras” (NASCIMENTO, 2016, p. 67).

Em verdade, a mensagem que se lê assim que se abre o site de Relações com Investidores da Kroton Educacional, a maior organização educacional privada do mundo, cuja origem remete ao “Cursinho Pitágoras”, surgido em 1966, em Belo Horizonte, é esta:

HISTÓRICO DE CRESCIMENTO BASEADO EM ESTRATÉGIAS BEM SUCEDIDAS DE M&A E GANHOS DE EFICIÊNCIA (KROTON, 2018a).

Essa mensagem aparece, logo em seguida, também em inglês. A sigla “M&A” que nela aparece se refere à expressão inglesa mergers and acquisitions, utilizada, na linguagem corporativa, para se referir a fusões e aquisições. De fato, a história da Kroton é marcada pela internacionalização e pelo crescimento embasado em sua incorporação de outras instituições. “Ganhos de eficiência”, por sua vez, são os “resultados esperados” pela liofilização de uma empresa (ANTUNES, 1999), ou seja, pela aplicação a ela dos preceitos da acumulação flexível, tornando-a uma empresa enxuta.