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O tabagismo como problema de saúde pública

O aumento do número de fumantes doentes chama atenção dos pesquisadores, que começam a fazer associações entre o fumo e diversas doenças. John Hill, em 1761, na Inglaterra, adverte os usuários de tabaco para o risco de desenvolver câncer de nariz e, em 1795, o pesquisador alemão Sammuel Thomas Von Soemmering relata casos de câncer de lábio em fumantes56.

Entretanto, os primeiros estudos a comprovar que fumar causa câncer de pulmão e aumenta o risco de desenvolver doenças cardíacas foram realizados pelos epidemiologistas britânicos Richard Doll e Austin Bradford Hill, sendo publicados em 1950 e 1954 na British Medical Journal30,31. Essas publicações deram bases à luta anti-tabagista contemporânea e

foram as primeiras de muitas que vieram a transformar as representações do tabagismo. O fumo, que antes era representado como símbolo de vitalidade, modernidade e independência, passou a ser visto ambiguamente como sinônimo de morbidade e morte, e essas representações antagônicas serão marcantes a partir daqui.

Com o desenvolvimento das sociedades modernas e a ascensão do Capitalismo, os órgãos sociais começam a se interessar pelos perigos que ameaçam a vida, buscando a manutenção de um prazer saudável e produtivo, e o fim dos hábitos perigosos, na perspectiva do controle preventivo dos riscos de determinadas populações se desviarem das normalidades esperadas para um cidadão, caracterizando o início da “sociedade do risco” ou “sociedade de controle”. O objetivo passa a ser a gestão do risco, pelo controle do estilo de vida, passando a redução e eliminação do tabagismo a ser um desses objetivos62.

Dentro dessa linha de pensamento, o conceito de risco passa a envolver a sofisticação estatística e sua utilização a ser objeto do Estado, na ciência sanitária do Estado de Bem-Estar-Social e logo os riscos deixam de ser pessoais para se transformarem em perigos globais que ameaçam toda a humanidade95.

Conseqüentemente, é necessário projetar o futuro a fim de organizar as ações do presente, monitorando constantemente a saúde, através de indicadores de qualidade e diagnósticos preventivos. A sociedade enquanto povo, suas características e estatísticas, foi

transformada em objeto de estudo, necessitando esse povo de ser rastreado, cartografado e analisado para que padrões de comportamentos repetitivos possam ser percebidos.

E como ciência, a Medicina tem papel fundamental neste processo. Impulsionada nos séculos XVIII e XIX, pela incorporação da tecnologia e os avanços nas pesquisas científicas, participa dessas relações de poder, caracterizando o fenômeno denominado “medicalização da sociedade”. A Medicina passou a ser um instrumento de controle social, que tem como objetivo o desaparecimento dos grandes surtos epidêmicos, a baixa taxa de morbidade e o aumento da duração média de vida, considerados problemas de saúde pública33.

A ascensão dessa ciência baseada na prevenção torna todos potencialmente doentes. O adiamento da doença tem como preço a constante vigilância e gera discussões éticas sobre a perda da individualidade. O desenvolvimento da Biotecnologia e da Engenharia Genética tem nos mostrado os riscos a que estamos sujeitos por nossas características hereditárias, o que exige um esforço redobrado e constante para minimizá-los, a fim de evitar ou adiar uma doença e o surgimento veloz de novas tecnologias estimula a medicalização crescente. Logo, o tabagismo passa a ser um grande inimigo.

Entretanto, essa discussão só foi ampliada e tornou-se central, na história do tabaco, no início do século XX. Podemos destacar, durante esse século, três períodos diferentes do interesse da ciência pelo tabagismo.

No primeiro período, de 1850 – 1930, a principal preocupação era com a alegação da associação entre tabagismo e enfermidades gerais, tais como insanidade, paralisias, raquitismo, dentre outras, e o debate envolvia as questões de moderação e adulteração, além da moralidade em torno do fumo juvenil. Porém, alguns benefícios do fumo à saúde também eram destacados, como o alívio do stress.

A era clássica de 1930-1980 se caracteriza pelo estabelecimento das primeiras associações entre cigarro e o câncer, e a partir daqui esse tema permaneceu importante para o futuro dos fumantes e os futuros fumantes.

O terceiro período, a partir de 1980 até os dias atuais, pode ser caracterizado como a era do não-fumante, em que além da preocupação com os fumantes, ganha destaque a capacidade do tabagismo prejudicar aqueles que não fumam. E este passa a ser o mais forte

argumento das atuais campanhas antitabagistas, que se baseiam na proibição do hábito em áreas coletivas, sejam elas públicas ou privadas36.

Por conseguinte, o tabagismo passou a ser visto como um fator de risco para diversas doenças, tanto para fumantes como não-fumantes, como o câncer de pulmão, de esôfago, de boca, tuberculose pulmonar, hipertensão arterial, degeneração miocárdica, dentre outras doenças que o colocam hoje como um problema de saúde pública. Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde, o tabagismo provocará 4,9 milhões de mortes por ano, sendo a maior causa de morte prematura e evitável do mundo, em 2020109. Para essa organização, a síndrome da tabaco-dependência constitui doença, incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID). O combate tem sido prioridade na maioria dos países desenvolvidos, através dos mais diversos programas de intervenção, que visam à redução da prevalência de fumantes e à prevenção a iniciação do hábito. As estratégias utilizadas para o controle do tabagismo se baseiam na propagação, que buscam modificar as representações sobre o tabagismo, através dos meios de comunicação.

Desde o início das sociedades modernas, os meios de comunicação contribuíram para a construção das representações sociais. Sempre em sintonia com o surgimento e consolidação das sociedades capitalistas modernas, esses meios desenvolveram-se de forma espantosa. Um dos traços do mundo contemporâneo é o fluxo de imagens e de conteúdos simbólicos, disponibilizados pelos meios de comunicação a um número cada vez maior de pessoas, e que, de certa maneira, contribuem para as relações sociais e a construção das representações.

Falar de representações sociais implica necessariamente falar de comunicação, pois é no processo de comunicação que as representações sociais são geradas e expressas. Segundo Moscovici67, nós não podemos comunicar sem que partilhemos determinadas representações, e uma representação é compartilhada e entra na nossa herança social quando ela se torna objeto de interesse e de comunicação.

Há diferentes sistemas de comunicação que irão moldar diferenciadamente o pensamento social: a difusão, a propagação e a propaganda. A difusão é um processo no decurso do qual a transmissão das informações é feita do cientista (minoria) para uma maioria. Seu objetivo é criar um saber comum, dando margem para o surgimento de opiniões diversas. A propagação tem como característica a produção organizada da informação, feita

pelos membros do grupo, no sentido de propagar uma idéia, buscando acomodar o novo saber a princípios já estabelecidos, provocando atitudes precisas. E a propaganda é uma forma de comunicação que se insere em relações conflituosas, onde cada partido ou instituição busca impor a sua idéia através de estratégias de persuasão, manipulando o saber e formando estereótipo, com vistas a estabelecer a identidade do grupo.

Como podemos ver, o conhecimento das representações sociais veiculadas pelos meios de comunicação é de fundamental importância, tendo em vista que nos possibilita ter acesso a um conjunto de sentidos e significados que servem de referência para os indivíduos e grupos no seu processo de apreensão da realidade e nas suas práticas sociais.

Nos últimos tempos, as representações sociais do tabagismo sofreram grande influência da publicidade. As empresas do tabaco conhecem o valor da mídia e o controle que os meios de comunicação exercem sobre as pessoas, e estão sempre publicando novas campanhas associando o hábito à vitalidade, à prática de esportes, ao desejo sexual e à beleza, criando um estereótipo de fumante. Esta foi e é a principal estratégia utilizada pelas indústrias para aumentar a prevalência de fumantes.

Porém, recentemente, as instituições responsáveis pela saúde contra-atacaram, propagando os malefícios provocados pelo hábito. Em 1965, os Estados Unidos colocaram advertências nos maços de cigarro. Começaram a surgir locais onde o fumo passou a ser limitado às áreas restritas ou até proibido, como aconteceu em 1987, nos vôos com menos de duas horas das linhas aéreas americanas. Essas foram decisões legalizadas e copiadas em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, e hoje, recomendadas pela Organização Mundial de Saúde, contribuem para que o tabagismo seja representado atualmente, pelo senso comum, como doença e um problema de saúde pública, como no estudo de Soares e colaboradores92.

Logo, procurar impedir a regulamentação das proibições à publicidade do tabagismo é uma prioridade das indústrias, pois essa medida é uma ameaça às vendas, apesar das companhias negarem publicamente a relação entre publicidade e prevalência do tabagismo. Além do mais, a indústria confunde a população, questionando fatos que a comunidade científica aborda como razões para o controle do tabagismo, como a relação do fumo com diversas doenças, a dependência provocada pela nicotina e o tabagismo passivo76.

Contudo, vimos que os europeus tiveram o primeiro contato com o tabaco no descobrimento da América e, não muitos anos depois do descobrimento, riquezas mil nasceriam das folhas do tabaco. E no Novo e no Velho Mundo, gastaram-se fortunas com a sua compra, só para vê-lo transformar-se em fumaça.

Assim, paradoxalmente, ao mesmo tempo que o tabaco dissolveu barreiras sociais, ele também as respeitou, pois cada povo incorporou o hábito dentro da sua cultura, assumindo funções conforme os rituais e tradições locais. E, em um mundo largamente dividido por distâncias geográficas, costumes, status social e religiões, o fumo tornou-se uma prática comum e estimulou as interações sociais, configurando um dos maiores fenômenos de transculturação da história.

A princípio, o tabaco era representado como um instrumento importante para tratar diversos tipos de doenças, como malária, sífilis, gengivites, fístulas, além de ser usado também para inalações e limpeza dos dentes. Por essas propriedades, foi chamado de “Erva Santa” ou “Planta Sagrada”, representando a cura para todos os males.

Entretanto, com as descobertas científicas que associaram várias doenças ao hábito de fumar e, a partir da divulgação científica e da propagação dos malefícios provocados pelo tabagismo à saúde, as representações sociais se modificaram e atualmente este é sinônimo de morbidade e morte.

Por fim, destacamos as limitações de estudos dessa natureza, cujo desafio de se chegar às representações do tabagismo através dos (des)caminhos de sua história, sem poder, todavia, reviver essa realidade, consiste em se reconstituir a lógica, através da qual, tais representações foram produzidas e socializadas. No entanto, são estudos baseados na historicidade que poderão ajudar a reconhecer os antecedentes das atuais representações, e, por conseguinte, ajudar as ciências médicas a melhor realizar seu trabalho de prevenção, tratamento e cura de doenças.

“ Nã o há fa to s e te rno s, c o mo nã o há ve rd a d e s a b so luta s.”

Frie dric h Nie tszc he

Capítulo 3

Pontuando aspectos sobre o tabagismo:

as diversas faces de um problema de

saúde pública

E dga r D e ga s “ Nã o há fa to s e te rno s, c o mo nã o há ve rd a d e s a b so luta s.”

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Capítulo 3

Pontuando aspectos sobre o tabagismo:

as diversas faces de um problema de

saúde pública

E dga r D e ga s

Capítulo 3

Pontuando aspectos sobre o tabagismo: as diversas faces de um problema

de saúde pública

O tabagismo, ato de aspirar fumaça oriunda da queima da planta conhecida como fumo ou tabaco, a Nicotiana tabacum, é hoje um polêmico problema social e representa uma preocupação em diversos setores da sociedade, por se tratar de um hábito que está além de uma simples adição de nicotina, pois representa uma prática tradicional nas relações humanas, concretizada como cultura, e que envolve aspectos políticos, sociais e econômicos.

Assim, destacamos que a complexidade dos fatores envolvidos na problemática do tabagismo está muito além daqueles que serão abordados aqui, e seria impossível analisá-los em sua totalidade. Limitaremos a discutir alguns pontos que nortearão essa investigação. A princípio, através da discussão de alguns dados epidemiológicos, dos efeitos do tabagismo na saúde das pessoas, em especial na saúde bucal, vamos delinear as razões que levaram o tabagismo a ser considerado um problema de saúde pública. Em seguida, apresentaremos a ligação desse problema de saúde pública com as relações de poder, importante para compreender a dimensão e as implicações do controle do tabagismo.