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4.2 ATRIBUIÇÃO DA ESCRITURA A UM INDIVÍDUO: A CONSTRUÇÃO DA

4.3.1 O tempo como princípio de submissão da escritura e do autor

A leitura de André Delacour365, crítico literário francês, Camus – Interprete de uma

geração366, publicada em maio de 1949 no Jornal de Notícias, é sintomática desse procedimento de leitura pelo qual o tempo desempenha um papel primordial na interpretação da escritura. Desse modo, logo no primeiro paragrafo de seu artigo Delacour afirma:

A guerra e suas catástrofes mudaram todo o problema da vida, tanto para sua geração como para as seguintes e foi ele, decerto, quem tratou os novos temas com maior rigor e o que lhe deu a mais lúcida, mas também a mais humana das soluções. É assim como que um dos intérpretes de sua época. Ter-se-á que procurar mais tarde em suas obras, senão a fisionomia exterior de nossa época, pelo menos seu pensamento e sensibilidade367.

De acordo com o leitor, portanto, a guerra, uma experiência traumática do tempo, transformara a vida de toda a geração de Camus. Desse modo, o autor franco-argelino e sua escritura carregariam consigo, não somente os temas que ocupam sua geração, mas também o “pensamento e a sensibilidade” desta. O tempo está contido como premissa quando considera- se, a exemplo do leitor, uma geração, esta nada mais é do que um princípio de divisão temporal dos indivíduos a partir de experiências que estes compartilham por serem contemporâneos, mas ela subentende também o princípio de uma forma de sensibilidade e pensamento comum. O indivíduo e sua produção (a escritura), são compreendidos, consequentemente, como expressões de sua época, é o tempo, ou, mais precisamente, a experiência traumática da guerra, o princípio erigido pelo leitor para interpretar a escritura, e, para além dela, “o pensamento” de Camus.

365 André Delacour (1882-1958) foi um poeta, romancista, crítico literário e jornalista francês.

366 DELACOUR, André. Camus – Interprete de uma geração. In: Jornal de Notícias, São Paulo, 29/05/1949,

p.6.

No entanto, esse não é um caso exclusivo. Atenta-se a agora para a leitura de Daniel Rops. Nos dois artigos do leitor ao qual foi possível ter acesso e que foram analisados ao longo deste trabalho, identifica-se entre os motivos para o sucesso da literatura e da filosofia existencialista – dentro qual compreende a obra camusiana - sua adequação ao sentimento mais corrente da época, o desespero. Tratar-se-ia, dessa forma, de uma filosofia do desespero, reflexo das angústias de seu tempo - “a ausência, proveniente da falta de valores superiores e/ou divinos, desencadearia no homem um sentimento que mescla a violência destruidora e ao mesmo tempo o desejo de viver”368, afirma o leitor.

O motivo do sucesso das escrituras camusiana e existencialista, de modo geral, é retratar, ou mais precisamente ser um reflexo do desespero e das angústias que marcam sua época. Novamente a experiência do tempo é tomada pelo leitor como princípio de compreensão e significação da escritura. A leitura de Rops traz, no entanto, uma faceta distinta da submissão ao tempo, já explorada no primeiro capítulo: a inserção da escritura e do autor em uma tradição ou movimento, no caso o existencialismo. Esse procedimento, do qual Rops não é um exemplo exclusivo, implica não somente a inserção de uma obra em um universo de leitura, mas também numa temporalidade, que são as tradições filosóficas ou os sistemas de pensamento. Esse vínculo evidencia portanto, igualmente uma vinculação e uma submissão da leitura à temporalidade, porém, não restrita somente à guerra.

A experiência traumática da Segunda Guerra Mundial, é considerada por José Cesar Borba como período incubatório da própria obra camusiana, ao afirmar em seu artigo que:

Sente-se na obra de Camus o enraizamento da memória nos sofrimentos dos dias anteriores à obra, que cresceu dentro do seu espírito recedendo ao sangue dos sacrificados, à ferida da terra sob os impactos aéreos, à pólvora dos canhões sincronizados ao desespero e ao lamento das privações inumeráveis de populações inteiras subjugadas à violência e à injustiça369.

Nessa acepção, portanto, a escritura camusiana, em especial La Peste, seria uma reflexo da memória do sofrimento vivido pelo autor e seus contemporâneos – entre eles o próprio que leitor lutara na Itália contra os nazistas – durante a guerra. A escrita carregaria consigo, desa forma, uma experiência e mesmo uma memória, não restrita somente a seu

368 ROPS, Daniel. O que é o Existencialismo: moda literária e novo ‘mal do século’. Rio de Janeiro.

20/06/1948, p.2.

produtor, mas coletiva. Ela pinta um quadro que o leitor também reconhece como seu, mas não propriamente por uma apropriação pela leitura, mas pela certeza de que esta escritura carrega consigo uma significação imanente e precisa, atribuída pelo autor, mas que seus contemporâneos, por compartilharem essa experiência comum, conhecem bem.

Testemunha, eis a palavra pela qual muitos leitores interpretam os escritos de Camus da década de 1940. Nesse sentido, segundo a leitura de Jacques Madaule, é justamente o caráter testemunhal que garantiria a Camus, e principalmente ao romance La Peste, um lugar de destaque entre as obras e os autores de sua época. Afirma o leitor:

Camus viveu, como nós a tragédia de nosso tempo, e ei-lo a atingi-la senão no coração, pelo menos muito perto do coração, tão perto que um livro como La Peste, ficará por todos os séculos como um testemunho da nossa época, da mesma maneira que o “Werther”, o “René” ou o “Adolphe” sobre as outras370.

A leitura de Madaule identifica no romance, portanto, o testemunho do contexto ou da época da escritura. Sua compreensão, consequente, não pode dissociar-se dessa experiência comum da “tragédia de nosso tempo”, conforme atesta. O leitor indica, dessa forma, que compreender a intencionalidade da obra é fundamentalmente conhecer essa tragédia que é testemunhada. A noção de testemunha, que perpassa muitas leituras dos escritos de Camus, é sintomática também de uma forma específica de ralação com a época. Madaule é, nesse sentido, mais uma vez exemplar, quando afirma que “Camus viveu, como nós a tragédia do nosso tempo”. Esse excerto indica precisamente o sentido no qual muitos leitores empregam a noção de testemunho, que marca sua escrita e a de outros autores que lhe são contemporâneos. A figura da testemunha como imagem do literato dos anos 1940 e de sua escritura, distancia- se, desse modo, profundamente da noção de flâneur, pela qual Walter Benjamim, caracterizava a experiência do tempo na obra de Charles Baudelaire371. A imagem do flâneur, que percorre a cidade moderna – suas bulevares, feiras, multidões, tipos, etc. – e observa seus fenômenos, singularidades, nuances e mazelas, caracterizaria, aos olhos de Benjamim, o literato e o poeta da segunda metade do século XIX, em especial Baudelaire. O sentido empregado ao termo flâneur por Benjamin evidencia uma experiência do tempo marcada, de certa forma, pela distância, o escritor percorre a cidade e observa-a para inspirar-se, mas ele não é, sob essa perspectiva, o protagonista da experiência retratada em sua escritura. O

370 MADAULE, Jacques. “A peste” de Albert Camus. In: Letras e Artes. Rio de Janeiro, 18/01/1948, p.3. 371 BENJAMIN,Walter. Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo, Brasiliense, 1994.

testemunho, que caracterizaria a experiência temporal do literato de meados do século XX, em especial no caso de Camus, pelo contrário, minimiza ou anula as distâncias entre o literato e os fenômenos que lhe inspiram. O literato é sob essa perspectiva, presente entre muitos leitores, o próprio protagonista da experiência temporal que busca retratar em sua escritura. A testemunha, não disseca uma paisagem (urbana e social) observada à distância e à transpõe para o texto, ela disseca sua própria experiência, seu sentimento e memória – que podem ou não serem considerados coletivos, de acordo com cada leitura. É sob esse aspecto que essa literatura pode ser considerada uma “inquirição interior”, como destacou Adonias Filho372.

Lúcia Miguel Pereira, em sua leitura, Uma testemunha, publicada no jornal Correio da

Manhã em 1948, indica uma compreensão semelhante à de Madaule, ao afirmar que:

Essa mutilação do homem moderno ninguém a desvendou como Albert Camus. Certo, é sempre arriscado predizer a duração das obras contemporâneas, mas se, mais tarde, alguém quiser saber como era o homem da era da bomba atômica bastar- lhe-á ler a obra desse escritor conciso e seco. E terá a visão de indivíduos sem ternura, sem vida interior, sem meios de sair de si373.

Perreira, não identifica a escritura camusiana somente como um testemunho desse tempo recente ou imediato – da “tragédia do nosso tempo”, ou seja, experiência da guerra, da morte e da resistência a ocupação nazista – mas também o testemunho de um tempo mais longo e contínuo, que na classificação braudeliana seria o tempo conjuntural, trata-se do tempo da crise do espírito europeu, desencadeada desde a Primeira Guerra, conforme a própria leitora salienta374.

Há portanto, na associação de uma escritura e de um autor ao tempo, em especial no tocante as leituras da escritura camusiana, a concorrência de uma pluralidade de tempos. Desse modo, há, por um lado, um tempo imediato, que traduz-se na experiência da guerra, dos campos de concentração, da resistência à ocupação alemã. Mas há também, por outro, um tempo marcado por uma duração maior, que traduz-se pela inserção de uma escritura numa tradição de pensamento ou numa escola literária, como no caso o existencialismo, e pela inserção no contexto de uma crise cultural e de valores, ou seja, a crise do espírito europeu. Esse procedimento de inserção da escritura no tempo de sua feitura, que é o tempo do autor,

372 FILHO, Adonias. Albert Camus. In Letras e Artes, Rio de Janeiro, 19/09/1948, p. 4. 373 PEREIRA, Lúcia Miguel. Uma testemunha. In: Correio da Manhã, 16/05/1948.

374 PEREIRA, Lúcia Miguel. Crise da Europa ou crise do espírito? In: A leitora e seus personagens. Rio de

não garante, como é possível observar ao longo deste trabalho, uma unidade ou um controle efetivo sobre a interpretação, pelo contrário, o próprio tempo da escritura é uma construção tributária, em grande medida, da própria leitura.

No entanto, as leituras apresentadas nesse subtítulo compartilham entre si uma forma de compreensão que submete o escrito e consequentemente seu autor e sua suposta intencionalidade à experiência do tempo. Nessas interpretações é o tempo que, em última instância, determina o sentido que o escrito carrega, ou seu testemunho e também o pensamento e a intencionalidade atribuídas ao autor.

Esse primado do tempo como princípio de explicação da produção intelectual – e não somente dela, mas das diversas práticas sociais –, seus postulados e implicações, ao menos no campo historiográfico, foram problematizados precisamente por Jacques Rancière, que oferece, desse modo, uma compreensão rigorosa desse procedimento comum aos leitores. Ao analisar a função do conceito de anacronismo no estabelecimento da verdade do discurso historiográfico dos Annales375, Rancière atenta-se, na obra de Lucien Febvre sobre Rabelais e o problema da incredulidade no século XV376, para a associação da verdade ao tempo, ou mais precisamente para “o tempo como princípio de imanência subsumindo todos os fenômenos numa lei de interioridade”377. O tempo, segundo Rancière, subsistiria assim na forma de uma crença, a crença de uma época, o que posteriormente receberia a nomenclatura de mentalidade, a partir da terceira geração do Annales. Essa mentalidade comum assumiria, dessa forma, uma dupla função, por um lado, ela consistiria num princípio de coopresença, ou de pertencimento ao tempo, assim, pertencer ao tempo equivaleria a pertencer a crença, a ser um crente378. Por outro lado, o indivíduo ignoraria a crença de seu tempo e caberia ao historiador apreendê-la, justificando assim seu discurso379. A verdade contida no tempo: a crença, portanto, estaria presente em todas as práticas – inclusive na escrita – do crente, mas só estaria disponível, enquanto crença, ao historiador. Essa compreensão teórica dos Annales, afirma Rancière, condenaria o indivíduo a assemelhar-se a seu tempo, e assumiria, dessa

375 RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon

(Org.). História, verdade e tempo. Chapecó, SC, Argos, 2011, p.21-49.

376 FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. Companhia das

Letras, São Paulo, 2014.

377 RANCIÈRE, 2011, p. 28. 378 Idem, ibid. p. 35. 379 Idem, p. 38.

forma, um caráter determinista sobre o indivíduo380. Essa postura, transferida para uma historiografia das ideias, implicaria, portanto, além do argumento de que o ser seria definido por seu tempo381, a presunção de que a escrita conservaria um sentido, sentido esse imprimido pelo autor, mas que deveria ser buscado na crença de seu tempo.

Nesse sentido, embora não seja possível afirmar que os leitores de Camus tenham tido contato com a historiografia dos Annales ou com a obra de Lucien Febvre, ambos compartilhem em essência o mesmo argumento, ou seja, a escritura submete-se ao tempo, ele a perpassa, e ela o carrega consigo, pois pressupõe a permanência do sentido. Esses leitores de Camus, assim como Febvre, compreendem o tempo como princípio explicativo. No entanto, os leitores não tomam o tempo somente em sua dimensão sociológica, que reveste-se na associação a tradições filosóficas, escolas literárias ou contextos conjunturais, mas consideram também, e talvez sobretudo, a dimensão traumática e trágica que marca a experiência do tempo das gerações que vivenciaram a guerra.

A postura criticada por Rancière na leitura que Febvre faz da obra e da personalidade de Rabelais fica nítida, novamente, no exemplo de Roland Corbisier, quando este afirma que Camus: “em vão negará suas afinidades e relações com a filosofia chamada existencialista. A sua vida e os seus livros seriam inexplicáveis fora dessa órbita que fascinou e atormentou os melhores espíritos do Ocidente, de Blaise Pascal à Franz Kafka”382. Há, implícita nessa leitura, a submissão do autor a seu tempo, e mais diretamente a uma tradição de pensamento, que embora distinta da noção de crença dos Annales indica o possível, o pensável e o dizível a um sujeito e a uma escritura em um determinado tempo. Isso conduz a pensar, não somente, a História das ideias e mais precisamente da Filosofia como uma linearidade, como um diálogo contínuo ao longo do tempo, que associa autores a tradições e conecta as próprias tradições, mas também as interdições à significação supostamente anacrônicas em relação às possibilidades do tempo, que pressupõe essa verdade do tempo contida no objeto e que limita seu sentido. Entretanto, a relação com a temporalidade pode assumir outras formas que não a de submissão, na sequência atenta-se a elas.

380 Idem, p.43. 381 Idem, p.45.

382 CORBISIER, Roland. Albert Camus e a filosofia do absurdo. In:Letras e Artes. Rio de Janeiro, 04/09/1949,

4.3.2 Ser contemporâneo a seu tempo também significa estranhá-lo: a escritura como