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homra aos homens de letras e letrados e se tem valia e se per suas letras vem ser fidallguos e senhores gramdes, diz que na China não há outros fidallguos senão os letrados, e o que mais letras sabe he mais homrrado no reino e estimado del Rei e que por esta causa toda a gemte se lamça apremder, asi gramdes como pequenos, e dizem que he desta maneira: como sabem bem ler e escrever, o moço que há d’’apremder que se vai com hNJm letrado da sua terra, que são os que mandão a terra, e diz: ‘‘Eu quero aprender as leis pera ser letrado’’; emtão este mandarim o manda ensinar com o tal moço, paguar a despesa do comer e vestir, porque o mais o da o Rei, e se, depois de ter idade, sae bõo letrado das leis do reino, mamdamno examinar e, se achão que he soficiemte, emcarregamno em carguos pequenos e depois, se ho faz bem, em carguos gramdes ate que ho fazem gramde e tanto pode sobir que mamda aos outros todos (……)”” (Enformação das Cousas da China, 1989: 60).

O excerto da Enformação que acima se transcreve, da autoria do Pe. Francisco Xavier com base no testemunho de um mercador de Sanchão1, constitui o capítulo XIX do Livro que Trata das Cousas da Índia e do Japão (1548), colectânea quinhentista organizada pelo Governador da Índia Garcia de Sá (1548-1549). Resultado de uma observação pretensamente ““directa”” das sociedades que descrevem, as ““enformações”” satisfazem a curiosidade europeia sobre os ““Chins””, ao mesmo tempo que sugerem aos olhos europeus uma reconfortante imagem de um reino além-islâmico, acenando com a possibilidade de uma aliança cristã na Etiópia, no Sul da Índia e no Cataio. Ao

1 Sanchão (também designada por Shangchuan ou Sancian) é o nome de uma ilha da costa a sul da China, pertencente à província de Guangdong situada a 6 milhas do continente e a 60 de Macau. Foi local de estabelecimento dos portugueses nos meados do século XVI para negociarem com os mercadores chineses de Cantão, antes da organização definitiva da feitoria de Macau, em 1557 (Grande Enciclopédia

retomarem a figuração medieval do Oriente, nos seus aspectos míticos e utópicos, as representações inscritas nas ““enformações”” terão constituído um impulso digno de nota ao projecto dos descobrimentos portugueses (Enformação das Cousas da China, 1989, p. xx). A admiração pela grandeza, riqueza e abundância deste reino não é novidade para os europeus setentrionais, tratando-se de um aspecto bem patente na literatura portuguesa dos Descobrimentos do século XVI: na Relação de Duarte Barbosa (1946) e na Suma Oriental de Tomé Pires (1978); na historiografia de João de Barros e de Fernão Lopes de Castanheda (1928); no Tratado de Frei Gaspar da Cruz (1569) e na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Todos estes textos reflectem a admiração pelos ““Chins”” e projectam neste lugar geográfico a crença no ““mundo perfeito”” descrito na Carta do Preste João, onde a abundância e a riqueza naturais coexistem com a ideia de justiça e felicidade terrena2. Mas os elementos de novidade contidos nas ““enformações”” –– a utilização do relato na primeira pessoa e a ênfase que atribuem aos aspectos antropológico-sociais –– afastam-nas do modelo fantástico medieval, repleto de imagens mirabulantes, antecipando a exaltação chinesa que os Philosophes utilizarão para criticar aspectos das sociedades ocidentais suas contemporâneas (Cardoso, 1991; Voltaire, 1963, Diderot e D’’Alembert 1751-65)3. O prolongamento do mito medieval da existência de um mundo de maravilhas a Oriente coexiste, portanto, com uma tentativa de aproximação às situações do quotidiano fazendo eco da esperança renascentista numa sociedade alternativa. Esta duplicidade corresponde, no jogo do imaginário, à criação de uma alteridade mítica que se projecta num lugar distante e utópico, o que coloca as ““enformações”” a par das construções utopistas de autores como Tommaso Campanella, Francis Bacon ou Tomás Moro.

É necessário dizer-se, contudo, que o conhecimento da área que hoje se designa por próximo Oriente tem início alguns séculos antes, com as grandes cruzadas e com a expansão do comércio, no século XII, em resultado das quais nos chegam as primeiras

2 A popularidade do nome e da lenda veio sobretudo com uma carta apócrifa que circulou a partir de 1165, supostamente escrita pelo Preste João, em que se relata o reino do mais poderoso monarca da terra, suserano de dezenas de reis, senhor das três índias, rodeadas e atravessadas pelos rios que nascem no paraíso terreno. O Preste, dono de fabulosos tesouros, habita um palácio fabuloso ornado de ébano, pedras preciosas e ouro, ainda que a todos os pobres e alheios dê de comer. Apesar da lenda sugerir a sua localização em diversas regiões (na Índia, na Tartária e na Abissínia), a partir do século XV a localização adoptada por Portugal para a localização do reino do sacerdote-rei foi na África Oriental (Godinho, 1968).

3 De referir que a corrente sinólifa que atravessou todo o século XVII e se prolongou até à Enciclopédia teve como principais inspiradores os jesuítas e, entre os filósofos, Leibniz, principal responsável pelo deslocamento de perspectiva sobre o outro, construído, não como objecto, mas como ponto de partida do seu espaço de diálogo filosófico.

observações sobre os grandes espaços civilizacionais que a tradição literária greco- romana tinha vulgarizado junto dos europeus. São delas exemplo os relatos de viagens dos missionários Frei Giovanni Carpine (1182-1252) (Historia Mongolorum, 1247) e Willelm de Rubruck (1220-1290) (De moribus Tartarorum. Itinerarium Orientis, 1256) ao Império Mongol, do mercador Marco Pólo (1254-1324) à China, ou do historiador árabe Ibn Khaldoun (1332-1406) no seu périplo pelo Islão. Estes primeiros contactos que acompanham a intensificação da actividade mercantil, das viagens de exploração e do trabalho missionário, multiplicam os relatos e as compilações etnográficas e tornam possível difundir pela Europa um manancial de informações reveladoras de uma imagem do mundo até aí praticamente inacessível.

Trabalhos recentes no âmbito dos cultural studies, perspectiva de investigação que tem sido central na renovação dos estudos histórico-antropológicos, vêm contestando a utilização de uma abordagem historicista-essencialista relativamente à análise deste tipo de narrativas4. Esta crítica faz todo o sentido se nos situarmos no

campo da história da educação. Apesar de se tratar de um conjunto de textos pertencentes a um mesmo género, o contributo de um Ibn Khaldoun5 dificilmente poderá considerar-se a par de obras de vulgarização centradas na aventura, como é o caso das Viagens de João de Mandeville (1300-1372), pseudónimo de um autor inglês anónimo que se socorreu dos mais diversos escritos em circulação no Ocidente para compilar a sua obra, ou mesmo da Orbis terrae concordia de um Guillaume Postel (1510-1581) cujo interesse pelo Médio Oriente não pretendia senão anunciar ao mundo a sua posição visionária sobre o futuro da humanidade. A questão do estatuto do autor, ou mesmo a do género literário, são importantes para a análise histórico-sociológica do personagem ““autor””, mas pouco relevantes para a análise do discurso. Para esta última, ““o ‘‘autor’’ deve ser entendido, não como o indivíduo que pronuncia, escreve ou inventa um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem das suas significações e como foco da sua coerência””. O autor que escreve, continua Foucault, é ““aquele que dá à linguagem da ficção as suas unidades, os seus nós de coerência e a sua inserção no real”” (Foucault, 1977 [1971]: 22-23). Por consequência, o indivíduo que escreve produz um conjunto de enunciados intimamente

4 Ver, a propósito, o trabalho de Pratt (1992); para o universo francófono, ver Defert (1982); de salientar ainda o trabalho de Rama (1982).

5 Cabe aqui referir que o conceito de ““sociologia”” e o termo árabe que o designa (ilm al-ijtimâ: ciência da sociedade ou da associação) foram termos inventados por Ibn Khaldoun cinco séculos antes de Auguste Comte. O próprio Ibn Khaldoun se apresentava como fundador de uma ““ciência da civilização e da sociedade humana”” (Achcar, 1999; Ibn Khaldoun, 1997).

relacionados –– uma estrutura autónoma com leis de construção próprias –– de acordo, não com a sua biografia individual, mas com as condições de possibilidade da sua época e com a sua inserção numa configuração epistemológica própria. Ainda que o sujeito esteja presente na obra através da escrita, ele fá-lo num horizonte de possibilidades (epistemológicas) e segundo configurações (ideológicas, filosóficas e religiosas) determinadas (Foucault, 2001e [1971])

Recuperando a distinção feita por Clifford Geertz (1996)6 entre a função de ““escrevedor”” e ““escritor””, conceitos que ele próprio toma de empréstimo a Roland Barthes (1964) para diferenciar aquele que escreve daquele que descreve, diríamos que as narrativas de viagem constituem, pela sua riqueza, um género de autor multiforme e compósito em que os ““viajantes-escrevedores”” e os ““viajantes-escritores”” se constituem principalmente como ““viajantes-mediadores”” entre diversos mundos. Segundo este entendimento, a literatura de viagens oferece pontos de entrada privilegiados acerca do olhar e dos juízos de valor que são formulados sobre o outro acerca das concepções filosóficas e ideológicas de alteridade, no tempo e no espaço e, em particular, sobre as condições sociais de produção dessa relação. Na realidade, muito do que era descrito na literatura de viagens correspondia, não ao que os viajantes viam mas às expectativas do público ocidental, respeitando um estilo que ia ao encontro de uma realidade tal qual este a imaginava.

Poderíamos então dizer que as ““representações”” inscritas nos textos dos viajantes eram a expressão, não da realidade, mas de uma realidade apercebida e construída com base numa realidade observada (ou imaginada) segundo a perspectiva de autor. As narrativas de viagem constituem-se, por isso mesmo, como um lugar de expressão privilegiado sobre as percepções sobre o outro e, por isso mesmo, de si próprio, um jogo de espelhos onde o reflexo de um reflecte o reflexo do outro. É neste sentido que Gohard-Radenkovic defende que ““les récits de voyage sont donc une expérience de l’’alterité qui en dit plus long sur soi que sur l’’autre”” (Gohard-Radenkovic, 1999: 94).

A par do saber que se encontra inscrito nas narrativas de viagem e da relação de continuidade que é estabelecida entre géneros muito diferentes (o romance geográfico, a crónica de viagem, as ““enformações””, os relatos, as cartas, etc.) importa analisar estes factos do discurso relativamente às suas próprias condições de existência. Neste plano, a construção da alteridade mítica como figura central das narrativas de viagem é

indissociável de uma cartografia coeva que não permitia identificar com precisão a localização dos vários povos. A sobrevivência da lenda do Preste João nos países setentrionais da Europa até ao século XV mostra até que ponto o desenvolvimento do conhecimento geográfico, náutico ou cartográfico se articula com as concepções filosóficas e ideológicas prevalecentes, com consequências na manutenção (ou substituição) de géneros literários uns pelos outros e, igualmente, na conservação (ou transformação) de lendas e mitos há muito consagrados7.

De qualquer das formas, se é facto que o alargamento das rotas terrestres ao Islão, ao Mediterrâneo e ao Extremo-Oriente, até ao século XIII, constituiu um contexto favorável para uma intensificação dos contactos com outras civilizações, a ascensão do domínio islâmico no mar Roxo, da Síria ao Egipto, entre os séculos XI e XIV, torna cada vez mais vago o conhecimento da Abissínia, tornando-o um território isolado e inacessível (Braudel, 1999). Na ausência de um contacto directo e de experiências sistemáticas com a vida dos povos orientais, dominavam as representações que a tradição literária grega vinha divulgando desde o século XI e, nessa circunstância, as imagens sobre os confins do mundo reproduziam um imaginário herdado da Antiguidade Clássica. De facto, a circulação dos textos gregos na Europa durante o período medieval –– e talvez porque estes se demonstrassem tão úteis à construção da identidade cristã quanto o haviam sido para a identidade grega –– revelam uma imagem do mundo construída com base em inversões e contrastes bipolares, organizando o tempo e o espaço com base em oposições simétricas dividindo, no topoi do imaginário humano, a identidade civilizada da alteridade selvagem.

Do ponto de vista comparativo o pensamento grego organizava-se em torno de uma entidade essencial, a pólis grega, em face da qual se construíam todas as estruturas de polaridade: o humano e o animal, a ordem e o caos, o civilizado e o selvagem, a cultura e a natureza, etc. Este modelo antropocêntrico deixava antever a relação dos gregos com o outro, os povos imaginados para além dos cítias a Norte (os europeus) e dos egípcios a Sul (dos líbios aos persas), correspondentes a dois trópicos equidistantes do eixo central (o mediterrâneo helénico). Os gregos, assim como os romanos, não pareciam sensíveis às diferenças no tempo, como também o não eram, de resto, em relação às diferenças no espaço. O único tempo percebido como radicalmente diferente

7 No Atlas Catalão de 1375-80, entre as palavras África e Núbia, pode observar-se a figura de um imperador coroado como sendo o imperador da Etiópia ““de la terra de preste Johan””, o mesmo sucedendo na carta de Meciá de Viladestes, de 1413, em que a figura do sacerdote-rei aparece localizada na Abissínia (Godinho, 1968).

era o tempo mítico, em que o exótico era sempre empurrado para fronteira extrema do contacto: para os gregos, ““selvagens”” eram todos os povos sem acesso à razão, porque viviam fora da cidade e do contacto com uma sociedade governada por leis justas. Para além dos mundos ““conhecidos”” estava o exótico radical, um selvagem mítico que ocupava em proporção directa com a distância o lugar do fantástico, transformando a ““imaginação mitológica”” num ““imaginário etnográfico”” (Wootmann, 2000: 51). Assim, o selvagem tem de ser inventado antes de ser ““encontrado””, razão pela qual os limites da mitologia se confundem com um espaço geográfico que demarca o que é conhecido do desconhecido.

Se quisermos estabelecer um paralelo entre a comparação etnográfica do mundo antigo e a educação comparada dos teólogos-historiadores medievais e, mesmo até, dos filósofos cientistas do século XVIII-XIX, não nos será difícil constatar que a contraposição de aspectos educativos ligados aos grandes espaços civilizacionais do mundo antigo precede a comparação tradicional obrigada a confrontar a diversidade cultural com os princípios de homogeneidade primordial da tradição judaico-cristã. De facto, para a história da educação comparada, o grande inventário do mundo inicia-se na Antiguidade. A construção desta narrativa de fundação encontra-se amplamente expressa nos relatos dos historiadores e filósofos gregos, destinados a contrastar aspectos relacionados com a educação da nobreza, dos militares e das classes dirigentes ou a tecer considerações sobre a cultura de determinados povos. Os gregos são pioneiros nesta empresa: Heródoto (484-485 a.C.) comparou as culturas dos persas, partos, egípcios, assírios e babilónios; Xenofonte (430-355 a.C.) analisou a educação dos persas, permitindo aos leitores gregos contrastá-la com a escola espartana; o historiador Políbio (205-122 a.C.) notabilizou-se pelo detalhe com que analisou as culturas de diversos povos. Quanto aos romanos, concluída a anexação da Macedónia e da Grécia, em 146 a.C., a civilização grega que Roma acaba de descobrir é a civilização cosmopolita da era helenística, em nenhum domínio mais notável que no da cultura do espírito e, por conseguinte, no da educação (Marrou, 1966; Mialaret & Vial, 1981). Sob o efeito de uma cultura progressivamente helenizada, os romanos souberam adaptar esta influência às suas necessidades estratégicas, desenvolvendo comparações associadas ao domínio político dos povos situados nos confins do império (Monroe, 1958). É nesse contexto que Júlio César (102-44 a.C.) estabelece comparações entre as culturas dos povos gauleses, destacando as características educativas dos druidas, enquanto que Tácito (- 116 d.C.) se concentra na cultura dos judeus, bretões e gauleses. Os mais

avisados dentre os romanos descobriram igualmente, na escola dos gregos, quanto o conhecimento permitia acrescer a eficácia de um político, razão pela qual Cícero (106- 43 a.C.), na República e em Brutus, estabeleceu inúmeras comparações entre a política educativa grega e a romana8.

O reconhecimento dos elementos culturais semelhantes à sua própria cultura nas descrições de povos e terras longínquas é uma matriz que percorre o legado da Antiguidade Clássica e atravessa toda a Idade Média. Até ao século XVI, a reflexão sobre as similitudes e a confrontação com os Antigos assentava num jogo instável de interpretação entre o interstício do texto primitivo e o gosto pelo maravilhoso, constituindo todo um património cultural de que a redescoberta dos textos multiplicava a autoridade. De tal forma que é ainda segundo esta tradição escolástica, volvidos quase quinze séculos, que os humanistas Francesco Bracciolini (1380-1459) e Lippo Brandolini (-1490) comparam o estado da educação florentina à situação na Inglaterra e na Hungria. São ainda os exemplos inspirados na filosofia greco-romana que habitam nos Ensaios de Montaigne (1533-1592) entre as críticas ao ensino na França e as comparações entre a situação da educação na Alemanha, na Itália e na Suíça (Montaigne, 1993).

É entre os séculos XV e XVI, com as grandes descobertas que abrem à Europa o conhecimento e a exploração das Índias do Oriente e do Ocidente, que o espaço e a estrutura do mundo estabelecido se revolucionam. A par das narrativas escritas, os contactos proporcionam outro tipo de registos, nomeadamente cartográficos, consolidando uma nova representação da diversidade de povos e culturas que se iam abrindo ao confronto do olhar. A cartografia portuguesa dos séculos XV e XVI, conhecida pela sua qualidade técnica e artística, notabilizou-se pelas repercussões na maneira de ver esses mundos ao ““assinalar a novidade, o imprevisto e até o insólito”” (Albuquerque, et al., 1991: 34). No século XV, com as novas técnicas de marear –– a navegação astronómica, a bússola e as escalas de latitudes –– as cartas passaram a divulgar com maior precisão a distribuição da massa terrestre, tornando-se documentos de referência para a navegação a Ocidente e, inclusivamente, a Oriente9. Elas introduziram, entretanto, uma outra novidade tornando possível imaginar com outro

8 Veja-se, a propósito dos contributos para o período greco-romano, os trabalhos de W. W. Brickman (1960 e 1966).

9 Luís de Albuquerque refere que no final do século XVI se encontraram cartas japonesas decalcadas de cartas portuguesas, ao mesmo tempo que os nautas portugueses aproveitaram as cartas de navegadores malaios, guzarates e árabes, contribuindo esta permuta técnica e cultural para transmitir pela Europa a configuração do mundo tornado acessível pelos descobrimentos portugueses (Albuquerque, et al, 1991).

realismo o mundo que a experiência vivida pelos nautas tornava acessível ao olhar do europeu: enquanto que até quatrocentos a iconografia cartográfica acompanhava as representações míticas, os cartógrafos do século XVI passaram a incluir nas suas cartas, ricamente iluminadas, detalhes sobre o habitat local, designadamente elementos relativos à flora e à fauna, assim como informações de carácter ““etnográfico””10.

Apesar dos aspectos inovadores introduzidos pela cartografia portuguesa, a tendência dos cronistas é ainda a de comparar o que viam com o que lhes era conhecido, como é o caso da Relação da primeira Viagem de Vasco da Gama, atribuída a Álvaro Velho, em que o autor compara Melinde a Alcochete. A tendência para comparar o que é visto com o que é conhecido, procurando descobrir nesse confronto semelhanças, não é uma atitude exclusiva das narrativas de viagem portuguesas senão um elemento comum em toda a literatura dos viajantes do renascimento. A maioria dos textos de viagens deste período, quer se tenham referido ao Novo Mundo ou à Índia, confirmam a ligação filosófica e o condicionamento da narrativa à influência central da educação clássica sobre a erudição do narrador, quase sempre guiada pela preocupação evidente em ““confirmar”” descrições anteriores ou buscar o familiar num ambiente exótico. Os trabalhos de Carmen Radulet (1991 e 1978) sobre os viajantes renascentistas italianos confirmam, justamente, esta ligação da literatura de viagens ao apelo constante à experiência pessoal e à autoridade do testemunho aliado ao desejo de domesticar o exótico. São estes traços de permanência que as obras Paesi nuovamente retrovati de Fracanzio de Montalboddo11 e Navigationi e Viaggi de Giovanni Battista Ramusio12 permitem confirmar: a importância crucial da viagem para compreender o mundo, e a preocupação em ““confirmar”” o que outros –– tanto os autores clássicos, como os viajantes medievais –– haviam já descrito. A comparação que emerge do confronto resulta, por isso mesmo, deste modo de exercer a experiência pessoal, ligada à autoridade e ao testemunho, em que o autor, como afirma Michel de Certeau, fabrica e sanciona ““o texto como uma testemunha do outro”” (Certeau, 1984).

Uma análise histórica que tome por unidade as narrativas de viagens e por objecto

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