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O tempo: inimigo vigilante e funesto

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2 A PASSAGEM PARA O POÉTICO

2.3 O tempo: inimigo vigilante e funesto

O poeta, como representante da humanidade, continua fazendo seus questionamentos existenciais, expressando seus sentimentos e enigmas, dentro dos quais, alguns já foram decifrados e outros, ainda aguardam a experiência humana do leitor. Segundo Langer (2006, p. 271), “[...] a forma retórica é um meio de criar uma subjetividade impessoal, que é a ilusão vivencial peculiar de um gênero que não cria nenhuma personagem e nenhum evento público.” Vejamos o poema fragmentos, p. 47:

fragmentos

impassível e aleatória corroendo em traços desbastados lentamente

a ferrugem dos anos erodindo o inconsútil tecido sobre o abismo

de nós dois agora separados.

a porosa memória a tudo escapa na duração das coisas e minúcias

no gesto cruel do imponderado uma paisagem ali já esquecida entre as folhas prensadas de algum livro

dos muitos dos jazigos das estantes o que fora fogo e força, rosa e resplendor.

Neste poema, composto em dois blocos, as etapas do processo criador são registradas em linguagem dissimulada que, aos poucos, o sujeito lírico revela o lado laborioso do poeta. O ser lírico deseja atravessar o abismo da limitação humana para apossar-se da plenitude do estado poético. O abismo está ligado ao mundo das profundezas ou das alturas indefinidas e para fazer essa passagem, ele usa a imagem do tecido com a trama de seus fios simbolizando a linha da vida.. O trabalho de tecelagem é um trabalho de criação, é um símbolo do destino.

À primeira leitura, a estrofe inicial parece referir-se a um tema erótico. Essa idéia é reforçada pela própria ambiguidade que se observa nas palavras “nós dois agora separados”, que Langer chama de “ilusão de vida”. Termo utilizado para a ilusão primária de toda arte poética. Este verso poderia ser a expressão do sentimento do poeta ao separar-se de alguém que muito amou. Disse poderia porque a poesia da obliquidade é a que não enuncia suas ideias mais importantes; apenas as sugere. Entretanto, por ser a poesia formada por uma teia de plurissignificações, entre as várias possibilidades vislumbradas, temos a separação do ser lírico da palavra poética, que é seu verdadeiro amor. Para resgatá-la e acontecer o encontro do ser poético, o sujeito lírico se empenha em uma verdadeira batalha para superar os limites da linguagem e expressar o mundo das emoções e dos sentimentos. “O tempo é, para Baudelaire, o inimigo vigilante e funesto, o obscuro inimigo que nos corrói o coração” citação de Chevalier e Gheerbrant (1982, p.876).

O sujeito lírico registra suas emoções como se fosse uma colcha de retalhos, trabalho manual que costura fragmentos de tecidos de várias cores formando um desenho pré-estabelecido pela costureira. O termo inconsútil, que no sentido dicionarizado significa tecido sem costura e muito bem ligado, pode no levar à antiguidade, período em que as peças, sem costura e produzidas artesanalmente, possuíam maior valor. Um exemplo conhecido é a túnica que Jesus usava quando foi crucificado. Historiadores apontam que era confeccionada sem costura, daí o seu valor que provocou a disputa pela sua posse entre os soldados romanos.

Assim, como uma boa artesã reúne os fragmentos de tecidos em uma costura invisível, o eu lírico vai reunindo as emoções e sentimentos num artístico arranjo para fazer a “travessia” valendo-se da linguagem opaca da criação poética. A vida virtual, apresentada pela literatura, é uma forma auto suficiente, em que os elementos estão organicamente relacionados com cada um dos outros. Tal percepção não é possível na experiência real. Porém, de acordo com Langer (2006, p. 274) há uma condição familiar para enformar a experiência de uma maneira diferenciada, sob o qual ela pode ser compreendida e avaliada: trata-se da memória. Ela é a responsável pela organização da consciência:

A experiência passada, à medida que a rememoramos, assume forma e caráter, mostra-nos pessoas em vez de vagas presenças e seus pronunciamentos, e modifica nossas impressões pelo conhecimento de coisas que vieram depois, coisas que modificam a avaliação espontânea da pessoa. A memória é o grande organizador da consciência.

O poeta tem consciência da fugacidade da vida e, como se lembrasse do conselho de Mallarmé: “[...] poemas se fazem com palavras”, sabe que é preciso registrar sua criação poética, mesmo sabendo que poderá ficar esquecida em alguma estante. Ele sabe que é preciso aprisionar a poesia e transformá-la em poema. Esse é o momento da grande batalha do poeta. Momento em que busca a forma ideal para suas ideias. Procura as palavras com a capacidade de dizer o indizível. Langer (2006, p. 303) diz que para produzir essa ilusão de vida, o sujeito lírico empregou o truque de fingir escrever uma história ou memória real. “Se você puder fazer com que as pessoas tomem sua ficção como fato, parece que ‘o ar de realidade’ deve ter sido atingido.”

No quarto e quinto verso da segunda estrofe, está registrado o final dessa luta: “uma paisagem ali já esquecida entre as folhas prensadas de algum livro”. O livro é símbolo do universo. Contém a revelação e, portanto, por extensão, a manifestação da mensagem divina. A imagem poética, aqui, está simbolizada pelo resplendor da rosa, foi escrita no livro dando-lhe vida. É a própria vida à espera de futuros leitores que poderão tirá-la de seu jazigo da estante para decifrar seu enigma e reacender o fogo da paixão pela poesia.

Segundo Langer (2006, p. 274), a memória seleciona e compõe nossas percepções em unidades de conhecimento pessoal e cria a história. Não a história registrada, mas a história da percepção da história em si e do conhecimento do passado como uma sequência de eventos estabelecida, contínua, no tempo e no espaço. “Relembrar um evento é experimentá-lo novamente, mas não da mesma maneira que da primeira vez”.

O poema encerra com o verbo ser – fora – (ou verbo ir – fora? Pois, a voz poética fala de um passado presentificado que ainda está sendo/indo), no pretérito mais-que-perfeito, seguido das palavras fogo e rosa. Essa memória referida no início da estrofe é uma memória singular, com um toque especial de obliquidade. Qualquer eco do passado, no sentido concreto, não teria forma e, muito menos, essa forma seria porosa. O ser lírico, na sua construção poética e ao grafar os vocábulos memória porosa, segue dois caminhos distintos: o cérebro, localização dos neurônios com sua massa leve e porosa; e o sentido subjetivo: a memória é porosa porque está se desintegrando e formando ocas crateras nas recordações. Langer (2006, p. 275) diz que “nossa história pessoal, como a concebemos, é, então, uma construção feita de nossas próprias memórias, relatos de memórias de outras pessoas, e suposições de vínculos causais entre os itens assim fornecidos.”

Essa memória aludida pelo ser lírico está integrada na segunda acepção e pertence, de maneira peculiar, à arte poética. É o que Langer chama de ilusão primária. Langer diz que o leitor é confrontado imediatamente com uma ordem virtual de experiências. Os eventos ilusórios não possuem sustentação de realidade. Eles possuem somente os aspectos que lhe são atribuídos na composição poética. Sendo assim, a forma de expressar “a

porosa memória” torna as recordações tão frágeis quanto um objeto poroso,

capaz de ser esfacelado ao menor toque. Essa ilusão primária da arte poética é reforçada com a imagem das folhas envelhecidas aprisionadas em um livro, dentro de outro invólucro: a estante. A estante é comparada com um túmulo, pois, a poesia somente possui vida nas mãos de um leitor capaz de decifrar seus enigmas. O sujeito lírico não teme o passar do tempo, nem o esquecimento, pois, a recriação do mundo pela sua arte poética permanecerá

em seus poemas construídos com palavras que são aliadas do ser lírico e instrumento de libertação do sentir.

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