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4. A ESPERA DO TEMPO EM ERICO

4.4. O tempo da região

Em Erico Verissimo, a presença do elemento regional se evidencia em sua extensa obra – mesmo em O Prisioneiro, que se passa em uma cidade asiática, ocupada por forças norte- americanas, durante o período da Guerra do Vietnã, há características que identificam uma determinada região. Em vários romances do autor há uma tematização do Rio Grande do Sul, tanto nos livros iniciais (Clarissa e Música ao Longe), como em O resto é silêncio, na trilogia O tempo e o vento e em Incidente em Antares. Em O Continente, abordado nesta dissertação, a presença do regional inscreve-se na própria a tematização do tempo.

A trilogia problematiza a história do Rio Grande do Sul, abarcando um período de 200 anos: a narrativa começa em 1745, nas Missões Jesuíticas, e se estende até 1945, com a queda de Getúlio Vargas. Nos três volumes, o leitor se depara com uma obra em que o autor, segundo o crítico literário Luiz Augusto Fischer, "esculpiu com palavras as figuras identitárias mais sólidas da gauchidade” (FISCHER, 2004, p. 91). Fischer acrescenta:

O fôlego do romance é realmente estarrecedor, não encontrando paralelo na língua portuguesa; mais ainda, Erico teve grande habilidade na composição, justapondo várias épocas e situações, num painel histórico que, no entanto, é realmente centralizado em grandes personagens, que entraram de tal forma na circulação cultural sul-rio-grandense e brasileira, que hoje parece impossível saber como é ser gaúcho sem contar com Ana Terra, capitão Rodrigo, Bibiana, Maria Valéria, o doutor Rodrigo e outros. (Idem, p. 89-90).

Apesar de o regional estar inscrito na trilogia, nenhum dos três volumes pode ser classificado como "literatura regionalista". Verissimo, ao longo de sua vida, rejeitou o rótulo de regionalista, denominação que se refere, de acordo com João Claudio Arendt, às “obras que promovem a cultura da região como programa e paradigma, que se distinguem de outros

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espaços ou se defendem em relação a um centro” (ARENDT, 2011, p. 227). O Continente, apesar de seus personagens marcantes e que hoje, várias décadas após o lançamento, ajudam na construção da identidade no Rio Grande do Sul, não faz apologia do gaúcho herói, aventureiro, mulherengo e livre; a obra, com o seu olhar feminino, é antes uma crítica a essa história oficial. O próprio Verissimo ressalta esse aspecto, em Solos de clarineta, ao abordar a forma como essa história era ensinada na escola. Ao falar dos livros do colégio, ele afirma:

Redigidos em estilo pobre e incolor de relatório municipal, eles nos apresentavam a História do nosso Estado como uma sucessão aborrecível de nomes de heróis e batalhas entre tropas brasileiras e castelhanas. (Ganhávamos todas). Nossos pró-homens pouco mais eram que nomes inexpressivos, debaixo de clichês apagados, em geral de retícula grossa: sisudos generais, quase sempre de longas costeletas, metidos em uniformes cheios de alamares e condecorações; estadistas de cara severa especados em colarinhos altos e engomados. […] Concluí então que a verdade sobre o passado do Rio Grande devia ser mais viva e bela que a sua mitologia. E quanto mais examinava a nossa História, mais convencido ficava da necessidade de desmitificá-la. (VERISSIMO, p. 289).

Essa desmitificação também se dá em relação ao tempo. O romance não fala de um passado em que tudo era melhor, como ocorre com textos com viés regionalista. Pelo contrário, o texto de Verissimo evidencia as dificuldades vividas pelas personagens nos diferentes períodos dos 150 anos que separam o início, nas Missões Jesuítas, e o fim, no cerco ao Sobrado. Essa tematização do tempo, amplamente explorada na parte inicial deste capítulo da dissertação, mostra outro lado: o isolamento dos primeiros habitantes, algo que transparece em “Ana Terra” e “Um certo Capitão Rodrigo”, as constantes guerras, que permeiam toda a história do romance, e as longas esperas de quem fica. Não há saudosismo na inscrição do passado no texto ficcional de Erico, apenas um retrato que traz vários aspectos, bons e ruins. Donaldo Schüler vê, inclusive, uma busca de esquecimento desse passado, ao abordar a questão do tempo:

O passado não é afanosamente buscado. Apesar da insegurança do presente e da incerteza do futuro, as personagens procuram destruir recordações de outros tempos. O passado abriga para todos experiências amargas. Está povoado de guerras, violência, opressão, injustiças, frustrações, amargura. Que interesse haveria de retornar a ele? Está-se longe de uma idealização romântica ou de um engrandecimento épico dos tempos de outrora. As personagens não se aliviam dos fardos que o tempo lhe colocou nos ombros lembrando-os, mas destruindo-os. (SCHÜLER, 1980, p. 161).

Assim, O Continente não se caracteriza, em momento algum, como um texto regionalista, com sentido programático. Mas a região está lá, claramente identificada: o Rio

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Grande do Sul, com seus aspectos geográficos, histórico, social e cultural. A ideia de região, mostram os estudiosos do tema, não se restringe a uma disciplina, mas a várias: Geografia, História, Sociologia, Economia e Cultura. O sociólogo francês Pierre Bourdieu, destaca Pozenato, vê nesse interesse uma disputa pelo “monopólio da definição legítima”. Para o autor:

Em todas as disciplinas, com exceção, é claro, da geografia, o espaço físico passa para um segundo plano, para privilegiarem variáveis e relações do tipo humano ou social, cada uma dentro da sua perspectiva de observação: o custo, para o economista, o dialeto ou os rituais, para o etnólogo, as classes, para o sociólogo, e assim por diante. (POZENATO, 2003, p. 3).

Pozenato destaca que o conceito de região e a definição de uma determinada região são construções, no sentido de que “são representações simbólicas e não a própria realidade” (Idem, p. 3.). Com base nisso, Pozenato define região não como “realidade natural, mas uma rede de relações, em última instância, estabelecida por um auctor, seja ele um cientista, um governo, um governo, uma coletividade, uma instituição ou um líder separatista” (Idem, p. 4). A região passa a ter um sentido de regionalidade ao referir-se às relações sociais, das quais emerge um determinado sentido. Diz o autor:

Afastando as ideias, ou imagens, de centro e de fronteiras, a região será melhor entendida se vista como simplesmente um feixe de relações a partir do qual se estabelecem outras relações, tanto de proximidade como de distância. O grau, o volume, as características, a complexidade que podem assumir essas relações, tanto as próximas como as distantes, vão depender de diversas variáveis, dentre as quais a mais importante, sem dúvida, é a da existência de canais de comunicação. Com os canais de comunicação hoje existentes e disponíveis, as ideias de centro e de fronteiras perdem cada vez mais o seu sentido. Assim, a própria tecnologia das comunicações nos obriga a pensar a região de acordo com novos parâmetros. Ela deixa de parecer um espaço isolado entre fronteiras e dependente de um centro, para se tornar apenas um complexo de relações inserido numa rede sem fronteiras. (Idem, p. 9)

A ideia de região está presente em O Continente, em seu sentido macro e micro. No primeiro caso, a região aparece como um espaço físico (o Rio Grande do Sul, embora isso mais exclua do que inclua), na história (por buscar retratar personagens que fazem alusão a mitos ou arquétipos) e na cultura (por tratar de costumes próprios dos habitantes do Estado, ou, pelo menos, de parte dele), assim como nas inter-relações construídas ao longo do texto. No sentido micro, destacam-se aspectos de regionalidade, expressados nas nuances das personagens e nas relações entre elas e o espaço cultural; nas interações com o tempo histórico; nas experiências narradas na obra.

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Ao construir um romance histórico, em que o espaço está claramente definido, Verissimo reconstitui o tempo. O Continente abrange um período de 150 anos, em que as referências à história são claras e o espaço é identificado: a trama ficcional, do período das missões até o cerco ao Sobrado, envolve a história. Um mapa, colocado como anexo na edição mais recente da obra, editada pela Companhia das Letras, reforça essa definição do espaço no romance: a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.

Mapa da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, com a localização de Santa Fé, cidade fictícia do romance O Continente, de Erico Verissimo.

O quadro compõe-se com a inscrição do tempo no romance, seja pela tematização, pela espera, pelas vivências das personagens. São experiências muito específicas, que conectam o tempo ao espaço – e, assim, à região. A incorporação do relógio na narrativa se inscreve na própria história da região. Presente em “A Fonte”, ele some no capítulo “Ana Terra” e vai sendo

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inserido aos poucos a partir de “A Teiniaguá”. Isso implica vivência particular do tempo, em que a região exerce um papel preponderante. No capítulo “Ana Terra”, a protagonista e as demais personagens vivenciam um tempo marcado pela ausência de uma medição precisa; em “Ismália Caré”, o sino e os relógios estão lá, impondo uma experiência distinta.

Essa vivência do tempo, que remete à região, manifesta-se também em hábitos culturais. Ao longo da obra, as personagens acordam cedo: o Pe. Alonzo deixa a cama ainda de madrugada; Ana Terra, mesmo nos dias frios de inverno, levanta cedo para fazer o chimarrão; Licurgo acorda às 6h em “Ismália Caré”, com o badalar dos sinos. Essa experiência, um costume cultivado pelo gaúcho, é tematizada em O Retrato, em função do horário de levantar de Rodrigo. Se a tradição, representada por Licurgo, recomenda levantar ao raiar do dia, o filho adota um hábito novo no Sobrado, expondo o conflito entre duas gerações:

Desde que chegara a Santa Fé, de volta do Angico, Rodrigo raramente se erguia da cama antes das nove da manhã. Esse hábito irritava Licurgo que, antes de partir para a estância, advertira:

- Acho que o senhor anda levantando muito tarde. Isso não está direito.

Rodrigo sabia que o levantar da cama cedo era parte importantíssima do ritual daquela ferrenha religião do dever e do trabalho, professada por gente de têmpera de seu pai e de Aderbal Quadros. Achavam esses dois gaúchos ortodoxos que um homem deve trabalhar de sol a sol e que há algo de desonroso e indecente no dormir até tarde, pois isso sugere noite de orgia, vícios condenáveis, vadiagem e falta de força de vontade; é, em suma, um péssimo hábito que atrasava a vida das pessoas ao mesmo tempo que lhes solapa o caráter. (VERISSIMO, 1976, p. 326).

O tempo está inscrito na região e sua vivência se dá a partir das marcas de medições presentes nesse espaço e de costumes culturais específicos que ditam a vida das personagens criadas por Verissimo.

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