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1. O TEMPO

2.5 O TEMPO E O RITMO NA COMPOSIÇÃO DA PAISAGEM SONORA

Até o presente ponto, viemos a discutir sobre a filosofia do tempo, sobre os processos de mensuração do tempo e sobre a sistematização gráfica do tempo na atividade musical. Todas essas formas entendem a música como uma atividade análoga ao tempo, isto é, o tempo como um símbolo coordenador da música. Há, no entanto, um outro aspecto ao qual podemos nos debruçar para traçar uma relação tempo/música ainda mais estreita. Trata-se de uma sinalização dos sons ou da própria música em relação à temporalidade e nossa percepção desta; uma correspondência simbológica recíproca e cíclica: o som ocorrendo no tempo e o tempo sendo sinalizado pelo som.

Como comenta Murray Schafer (1997), o som e a música moderaram e pautaram muitos aspectos da vida cotidiana até a Idade Moderna. Até o século XIX, as paisagens sonoras mais comuns eram constituídas, em sua maioria, pela combinação de sons naturais e sons artesanais. Os sons naturais são aqueles que independem da intervenção humana, como o canto das aves, os cricrilares, os galopes, os latidos, e as águas pluviais e fluviais. Até aquele momento, esses sons não eram excedidos pelos grandes maquinários industriais. Os sons artesanais eram aqueles decorrentes das atividades humanas, como gritos de rua, apitos, martelos e bigornas, colheres e pás, carroças, moinhos, sinos e a própria música. Cada espaço constituía uma paisagem sonora particular ou característica: o campo, a floresta, as caçadas, os centros comerciais urbanos, as congregações, os saraus, as procissões, os festejos. Em quase todos os ambientes, a paisagem sonora era composta

principalmente pela voz humana. Era comum, assim como é até hoje, que a voz falada dominasse os locais mais populares ou menos introspectivos, e se misturasse aos ruídos mais comuns, onde o silêncio não fosse muito apreciado ou significasse um traço intelectual:

Mesmo sozinha, sem nenhum ouvinte, a velha leitora da Bíblia entreabre a boca, move os lábios, oraliza o que lê para poder compreender [figura 4]. Durante muito tempo, os leitores mais humildes e os menos alertas terão necessidade de ler em voz alta ou baixa. [...] ao contrário, a leitura erudita é feita com a boca fechada, em silêncio. Assim, para indicar que o silêncio é virtude de prudência [...], como se ler fosse o ato silencioso por excelência, a mais muda das atividades [figura 5] (ARIÈS e DUBY, 1991, p. 126-127).

Figura 4 – ‘Velha senhora lendo a Bíblia’

Fonte: WIKIMEDIA. DOU, GERRID/GERARD [1613-1675]. Velha senhora lendo a Bíblia. c. 1670.

Figura 5 – Emblèmes d’Alciat de nouveau transletés en français. 1549

Fonte: ALCIAT, André. Emblemes d'Alciat de nouveau transleté en français. Lyon: [S.n.], 1549.

Mammì (1995), em seu ensaio sobre Agostinho, descreve como a atitude do Santo, na leitura silenciosa dos textos sagrados, antecipava os princípios modernos nos quais a quase totalidade das fontes literárias, inclusive poéticas, viriam a ser abstraídas da voz. Paul Zumthor (2001), que escreve sobre a relação entre o texto e a voz, explica o quanto o conceito da leitura de poesia impressa, sem declamação ou até vocalização, é um hábito moderno, inexistente na Idade Média, na qual a poesia era necessariamente cantada e os textos lidos dependiam de pelo menos algum gesto sonoro para que fizessem sentido.

Apesar da relativa multiplicação dos escritos a partir de 1150-1200, o olhar não estava acostumado, como está o nosso, à onipresença da escrita na existência e entre as coisas. A memória dos raros leitores armazenava devagar o que o olho progressivamente decifrara, mas que não deixava mais para trás. A leitura era a ruminação de uma sabedoria. Na decifração, as condições materiais da grafia colocavam quase um problema distinto para cada palavra, percebida ou pelo menos identificada (talvez não sem dificuldade) como uma entidade separada. Apenas a articulação vocal permitia resolvê-lo na prática. A leitura envolvia assim um movimento do aparelho fonador, no mínimo batimentos da glote, um cochicho, mais comumente a vocalização, geralmente em voz alta (ZUMTHOR, 2001, p. 105).

Já a voz cantada, até antes da Revolução Industrial, relacionava-se a uma rítmica cotidiana das atividades de trabalho enquanto elemento coordenador deste. “[...] o trabalho costumava estar associado à canção, pois os ritmos das tarefas eram

sincronizados com o ciclo da respiração humana ou surgiam dos hábitos relacionados com as mãos e pés” (SCHAFER, 2011, p. 99).

Esse aspecto sinalizador do canto, e principalmente entre as atividades cotidianas, nos remete a uma segunda correspondência simbólica, desta vez entre a música e a paisagem sonora: as paisagens sonoras sendo compostas por música e a música assimilando elementos da paisagem sonora. Desde os entornos do século XIV, muitos compositores emularam diferentes paisagens sonoras naturais e artificiais, como F. Landini, C. Janequin, M. Flecha, C. Monteverdi, M. Marais, A. Vivaldi, entre outros. Os gritos de rua dos ofícios e comércios, por exemplo, foram incorporados a madrigais, canções e peças instrumentais, com destaque para as fantasias de Weelkes, Gibbons e Dering na Inglaterra da época de Shakespeare, que juntas contêm “cerca de 150 diferentes gritos e canções de vendedores ambulantes” (Ibid., p. 101).

Um instrumento importante para a composição da paisagem sonora e para a indicação da paisagem do tempo foi o sino, cujo étimo latino também remete a signo (signum). Os sinos, em especial, se destacam nesta relação tempo/música, primeiro por se tratar de instrumentos sonoros; depois, por terem sido utilizados como símbolo de autoridade.

Quando os vilarejos e as cidades eram escuros à noite, os sons do toque de recolher e as vozes dos guardas-noturnos eram importantes sinais acústicos. Em Londres, Guilherme, o Conquistador, decretou que o sino tocasse às oito horas da noite. À primeira batida do sino de St. Martin’s-le-Grand, todas as outras igrejas retomavam o dobre e as portas da cidade se fechavam. Os toques de recolher feitos por sinos perduraram nas cidades inglesas até o século XIX [...] (Ibid., p. 95).

Os sinos foram também objetos de especial inspiração para Marin Marais (1656- 1728), em sua Sonnerie de Ste Geneviève du Mont de Paris, publicada em 1723 –

composição para violino, viola da gamba e baixo contínuo, que emulava em ostinato as badaladas da Abadia de Sainte-Geneviève de Paris. As notas reverberadas pelo sino foram dispostas em na sequência ré-fá-mi, servindo de gênese (inventio) para a composição da sonata (figura 6).

Figura 6 – La Gamme et Autres Morceaux de Symphonie

Fonte: MARAIS, Marin. La Gamme et Autres Morceaux de Symphonie. Paris: Marin Marais, 1723.

O tempo do ostinato, enquanto enredo, é um tempo circular, não linear. Este tempo cíclico remete à música de dança, à música improvisada e à música didática (como baixo ostinato para variações, como as variations upon a ground) – gêneros estes que constituem grande parte do repertório instrumental dos séculos XVII e XVIII. Um aspecto da técnica instrumental que foi elementar para o desenvolvimento destes gêneros foram as diminuições de caráter idiomático instrumental, às quais nos direcionaremos no item 3.3 em uma abordagem analítica sob conceito de tactus.