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Capítulo I: Estratégias da Comisión de la Verdad y Reconciliación para elaborar

1.1. O que são as Comissões da Verdade

1.1.2. O testemunho como fonte para as Comissões da Verdade

O testemunho é o principal instrumento para a construção do Informe Final. A narrativa do testemunho também possui a dimensão de contribuir para o resgate da dignidade das pessoas que sofreram violência. Por meio dele, sua história passa a compor a história oficial e se torna reconhecida. Para além dos testemunhos, são investigados também os documentos oficiais que contribuem na construção do “grande relato”. Porém, o foco da narrativa é o testemunho:

[...] a presença de testemunhos de sobreviventes não só define parte da legitimidade que uma comissão deve ter, na medida em que demonstre uma abertura para a experiência de outros seres humanos, senão que esta demonstração só é possível através de sua articulação dentro de uma matriz teórica e interpretativa.38

Neste processo de escuta, relato e interpretação dos testemunhos, reside também um dos desafios do trabalho desenvolvido pelas CVs. Até que ponto é possível captar a “verdade” histórica que se tornará oficial, a partir da escuta, leitura e interpretação do relato do testemunhante? Sendo o testemunho o ponto central do relato oficial, as CVs

37 Ibidem, p. 43.

38 CUÉLLER CASTILLEJO, Alejandro. La globalización del testimonio: historia, silencio endémico y los

usos de la palabra. Revista de Antropologia y Arqueologia, n. 4, enero-junio, 2007, p. 78. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=81400405. Acesso em: 30/06/2013.

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também lidam, neste caso, com tal desafio: a construção da “verdade” por meio dos testemunhos. Cabe aqui trazer para o debate a definição de testemunho/testemunha. Segundo Elizabeth Jelin

Existe dois sentidos da palavra “testemunha” que entram em jogo. Primeiro, é testemunha quem viveu uma experiência e pode, em um momento posterior, narrá-la, “dar testemunho”. Trata-se do testemunho em primeira pessoa, por ter vivenciado o que se tenta narrar. A noção de “testemunha” também se refere a um observador, quem presenciou um acontecimento desde o lugar do terceiro, a quem viu algo ainda que não tenha tido participação direta ou pessoal no mesmo. Seu testemunho serve para assegurar ou verificar a existência de certo feito.39

O testemunho constitui, assim, a matéria-prima principal para a construção dos relatórios das CVs. Sem ele, o trabalho se organizaria em outra esfera, versaria apenas em documentos e não atingiria um de seus pontos mais importantes: a escuta da vítima e a valorização de suas histórias para a construção da versão oficial do Estado sobre os fatos. Assim, os relatos finais das CVs baseiam-se fundamentalmente em testemunhos.

Problematizar essa construção da versão oficial do Estado ou da “verdade” oficial do Estado a partir dessa metodologia e do trabalho das CVs é fundamental. O trabalho de Silvia Maeso sobre a Comisíon de la Verdad y Reconciliacíon del Perú traz dois aspectos importantes a serem considerados ao se trabalhar com os Informes Finais ou Relato Final produzidos pelas CVs. Assim dirá a autora:

[...] concentro-me em dois aspectos inter-relacionados do trabalho das CVs: o primeiro, os testemunhos como elemento central das CVs tanto do ponto de vista de sua legitimidade éticopolítica como do seu trabalho na determinação das violações dos direitos humanos; e o segundo, o trabalho dos profissionais do direito e das ciências sociais nas CVs como peritos que trazem legitimidade científica a esses processos e que são, também, testemunhas privilegiadas da produção da verdade, nessa duplicação do ato de testemunhar que as comissões propiciam.40

A perspectiva do trabalho com testemunhos, na construção do relato por parte das CVs, pode gerar, assim, algumas discordâncias. Por um lado, o testemunho traz em si a fortaleza de se poder elaborar a construção oficial dos fatos, a partir de quem vivenciou de perto todo o contexto de violência, gerando, assim, uma riqueza para a história, dada

39 JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. 2ª. ed., Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2012.

(Estudios sobre Memoria y Violencia, 1), p. 110.

40 MAESO, Silvia Rodriguez. O contexto da denúncia na Comissão da Verdade e Reconciliação peruana:

a política do testemunho e o conhecimento científico. Meritum: Belo Horizonte – v. 6 – nº. 2 – jul./dez. 2011, p. 352.

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a proximidade do testemunhante com os fatos. Os testemunhos são recolhidos de pessoas que sofreram em vida a violação de seus direitos e/ou tiveram os rumos de suas vidas mudados devido a esse processo de violência. Neste caso, é importante considerar que a pessoa que testemunha nunca traz somente uma história individualizada do sujeito, mas, também, articula-se com a história de sua família, a história da comunidade e com a história do seu próprio país. Essa abordagem precisa ser considerada para não se cair no equívoco de acreditar que a história desse sujeito diz respeito somente a ele. Se a considerarmos assim, ela se torna excessivamente subjetiva, não trazendo contribuições para um relato mais amplo, que é a história do país. Desconsiderar esse elemento do testemunho significa não compreender no testemunho a dimensão da memória social ou memória coletiva. A construção do testemunho articulará histórias de pessoas que já foram silenciadas durante o processo de violência e já não terão mais o direito de fala, o direito de serem ouvidas. Somente a fala de outrem poderá, de certa maneira, contribuir para que a história dos silenciados, dos mortos e desaparecidos não caiam no esquecimento. Além disso, serão os vários testemunhos, articulados em uma rede maior de informações, que contribuirão para a construção do informe final/relato final das CVs e, sobretudo, para as políticas de reparação de danos, construção de lugares de memória e reconciliação final.

Por outro lado, não se pode desconsiderar a fragilidade que carrega também os testemunhos. Se, por um lado, ele traz uma riqueza na construção da história, não podemos negar o caráter subjetivo das narrativas e a intencionalidade da fala na construção do discurso. O testemunhante, em muitos casos, terá versões diferentes de seu discurso para as pessoas, órgãos e instituições de acordo com a demanda, abordagem e objetivos que se propõe. Assim, essa construção discursiva que se tornará história oficial é feita também por escolhas. Desde a escolha que o testemunhante faz, até as escolhas que os membros das CVs também fazem ao analisar o testemunho e compor o relato final. É nesta perspectiva que os termos Testemunho/Testemunhante e “Verdade” devem ser compreendidos, de tal maneira que possibilite uma análise do Informe Final dentro dos objetivos de trabalho que as CVs se propõem. Mas é preciso estar consciente de que essa versão terá objetivos que devem estar contemplados nos mandatos que lhes foram outorgados.