• Nenhum resultado encontrado

O TEXTO COMO OBJETO FILOLÓGICO, CULTURAL E POLÍTICO

Fabiana Prudente

2 O TEXTO COMO OBJETO FILOLÓGICO, CULTURAL E POLÍTICO

A despeito de a racionalidade científica moderna (que começou a se desenvolver no humanismo quinhentista do século XVI) ter-se estabelecido, no século XIX, a partir de campos disciplinares sólidos e independentes – e de muitas pesquisas ainda defenderem o paradigma da ‘ciência pura’ –, a Filologia tem sustentado uma práxis interdisciplinar, crítica e humanística sobre seu objeto de estudo, o texto.

Considero aqui o lugar da Filologia no campo das humanidades, destacando, para isso, os processos técnicos, sociais e políticos que coordenaram os modos como os textos foram produzidos, e as diferentes etapas de circulação social do texto (ou sua proibição, seja pela censura editorial/comercial, ou política). É a partir desse paradigma que acolho a crítica filológica como sendo uma crítica política, entendendo aqui como político, como o fez Eagleton (2006 [1983], p.268) “a maneira pela qual

organizamos conjuntamente nossa vida social, e as relações de poder que isso implica”.

Parto do legado de Erich Auerbach e Edward Said, como filólogos que resistiram à tendência de fragmentação e especialização dos campos de saber e sustentaram, de modos diferentes, um enfoque humanista e multidisciplinar da Filologia. Esta, segundo Auerbach (1972 [1949]), seria entendida como o “conjunto das atividades que se ocupam metodicamente da linguagem do Homem [sic] e das obras de arte escritas nessa linguagem” (AUERBACH, 1972 [1949], p.11, grifos meus). Note-se que Auerbach (1972 [1949]), como intelectual humanista de seu tempo, compreende o humanismo como um teomorfismo, em que o homem é tomado à semelhança de um deus. Aproximando-se do axioma classicista pré-socrático de que “o Homem é a medida de todas as coisas” (PROTÁGORAS, [4-- a.C.]), a noção de humano em Auerbach é centralizada na ideia de Homem como criador da linguagem e das grandes obras nela produzidas.

Nesse sentido, ao exaltar a erudição, a nobreza, a autenticidade e o caráter clássico da edição crítica de textos como atividade filológica, Auerbach (1972 [1949]) defende uma práxis filológica voltada para uma hermenêutica do cânone ocidental, como ele mesmo o fez em seus diversos estudos, dentre os quais destaco Mimesis – a representação da

realidade na literatura ocidental, em 1946.

Confrontando a noção de Homem partilhada pelo humanismo evidenciado nos estudos de Auerbach (1972 [1949]), Foucault (2013 [1967]), ao buscar compor um corpus geral das técnicas interpretativas, analisa o Homem estabelecido no humanismo quinhentista como centro de poder, isto é, como um lugar estratégico que produz interpretações a partir do reconhecimento e da semelhança. Segundo Foucault (2013

75 Filologia em Diálogo

[1967]), essa noção de Homem, ao atravessar o que Freud, em 1933, denominou tríplice humilhação4, tem sido deslocada sistematicamente,

resultando em um reposicionamento do Homem, que deixa de ser observado como centro estável de poder e passa a ser analisado como um construto histórico. Atravessado por um deslocamento de poder, o homem ao qual se refere Foucault (2013 [1967]) já não seria um centro hegemônico e, como tal, é grafado em minúsculas, diferenciando-se do

Homem referido por Auerbach (1972 [1949]) e por outros teóricos do

humanismo hegemônico.

Enquanto a crítica foucaultiana conduziu-se ao anti-humanismo e aos estudos das relações de poder, Edward Said resistiu, através da Filologia, propondo, em Humanismo e Crítica Democrática (2007), outro caminho epistemológico para o estabelecimento de um novo humanismo baseado na crítica secular e na contextualização dos objetos estudados, a fim de buscar compreender como eles se construíram como tal (o modo como as coisas foram feitas), de modo que sua problemática do humanismo estaria

[...] aberta às especificidades do mundo contemporâneo, e não como uma forma patrimonialista de salvaguarda de tradições, isolacionismo cultural, exclusivismo ou hierarquização. O que anima o humanismo saidiano é a reintrodução de noções histórico- humanistas, seculares e mundanas, dentro do contexto do recrudescimento de políticas conservadoras e tradicionalistas no campo das humanidades, e do agravamento de conflitos e ideias beligerantes entre culturas tidas como apartadas e rivais (SANTOS, L., 2016, p.113).

4 Foucault (2013 [1967]) aponta três feridas narcísicas, já apresent adas por Freud em 1933, capazes

de confrontar a noção de Homem como centro de poder. A primeira ferida, de ordem cosmológica, foi estabelecida por Copérnico, ao descobrir que a Terra onde habita o homem gira em torno do Sol, estando a ele submetida. A segunda ferida, considerada biológica, foi de responsabilidade de Darwin, quando, ao cunhar a sua teoria de A origem das espécies, propôs que o homem descende do primata. Por fim, ao submeter a consciência humana ao inconsciente, Freud estabeleceu a terceira ferida, de ordem psicológica. Dessa forma, Foucault (2013 [1967]) questiona -se em que medida Nietzsche, Freud e Marx abrem as feridas que, na pós-modernidade, resultam em um reposicionamento do Homem.

Observo, então, que o descentramento da noção de Homem acompanhou uma série de outros descentramentos de hierarquias de poder que suscitaram novas definições de papéis sociais, políticos e científicos. No âmbito filológico, a noção texto – que, na teoria da edição crítica, centrava-se no arquétipo pretendido, idealizado pelo autor e reconstituído pelo filólogo (em Lachmann), ou no testemunho eleito como bom

manuscrito a ser editado (em Bédier) – sofreu uma desestabilização ao longo

do desenvolvimento de estudos aplicados a textos modernos, que culminaram com a diversificação das atividades filológicas, com o desenvolvimento da Crítica Genética e da Sociologia dos Textos, e com uma redefinição do papel público do filólogo como intelectual humanista. Dessa forma, analisar a desconstrução do paradigma científico, social, político e humanista moderno que modificou o lugar do filólogo envolve compreender os deslocamentos de conceitos de texto, autor, obra, edição. Mesmo tendo sofrido modificações em seu campo de trabalho ao longo dos séculos, a Filologia sempre tomou como objeto de estudo o texto, tendo como objetivo último preservar e transmitir a memória (seja ela literária, histórica, linguística, cultural). A noção de texto, por sua vez, bem como as tarefas filológicas, sofreram alterações ao longo da história de modo que o texto não é, para o filólogo, um fim em si mesmo. Ele é tomado para estudo como testemunho da sociedade e da cultura de uma época; para o estabelecimento de edições que busquem recuperar o patrimônio cultural escrito da humanidade; como fonte de dados linguísticos de diferentes períodos; ou como registros documentais necessários à construção de uma história literária. É em função da diversificação da noção de texto – admitido como testemunho da cultura pessoal ou social em um determinado contexto sócio-histórico – que se

77 Filologia em Diálogo

diversifica a práxis filológica, situada na interface com diversos estudos para a compreensão do seu objeto.

A Filologia hoje pode, então – seguindo as transformações sociais, históricas e culturais que resultaram em um deslocamento das noções de humano, humanismo, texto e edição –, ser entendida como “constelación de habilidades académicas orientadas a ocuparse del cuidado de textos históricos”5 (GUMBRECHT, 2007 [2003], p.14). Essa perspectiva teórica

posiciona a Filologia no campo das práticas multidisciplinares e incorpora a perspectiva histórica do trabalho do crítico.

Relacionando Filologia à história política, destaco o estudo Uma

Filologia Política: os tempos e as manobras das palavras (Florença, 1494-1530), de

Jean-Claude Zancarini (2008). Ao analisar textos que remetem à escritura da política e da história de Florença, do fim do século XV até a queda da república em 1530 (período caracterizado pelas guerras da Itália), Zancarini (2008) define seu trabalho como uma Filologia Política, e explica:

[...] “filologia” porque partimos de uma leitura (às vezes de uma tradução, forma particularmente rigorosa da leitura!) lenta e minuciosa que procura restabelecer os laços, os ecos, os distanciamentos no interior de uma obra ou entre uma obra e outra; “política”, não somente porque nós escolhemos estudar um corpus de textos ligados a uma conjuntura política e militar precisa mas também porque, para nós, a abordagem crítica dos textos e a reflexão sobre o sentido das palavras utilizadas na linguagem têm um valor eminentemente político, qualquer que seja o período utilizado (ZANCARINI, 2008, p.11).

Partindo da ideia de Filologia como leitura, a inovação de Zancarini consiste em reconstruir relações semânticas entre termos presentes nos textos, entendendo essas relações como relações políticas. Um dos termos estudados, considerado central na tradição florentina, é libertà, a respeito

5 Tradução livre: “uma constelação de habilidades acadêmicas orientadas a ocupar-se do cuidado

do qual Zancarini propõe-se a avaliar “o que se ganha e o que se perde do sentido de uma palavra” (ZANCARINI, 2008, p.13). Dessa forma, avalia que o termo, cuja tradição remonta à transição do século XII ao século XIII, “mistura a ideia de independência da cidade e a de uma forma de governo pelos cidadãos, forma que se opõe ao senhorio de um só” (ZANCARINI, 2008, p.13).

Nessa perspectiva de estudo, situo a Crítica Filológica, entendida como uma “atitude crítica de leitura concebida como um espaço de produção histórica, linguística, sócio-cultural e política” (BORGES; SOUZA, 2012, p.47). Esse posicionamento crítico da leitura é considerado por Said (2004) como marca da práxis filológica dentro da perspectiva humanista, pois, para ele,

[o] humanismo diz respeito à leitura, diz respeito à perspectiva e, em nosso trabalho como humanistas, diz respeito às transições de

um domínio, de uma área da experiência humana para outra. Diz

também respeito à prática de outras identidades que não as dadas pela bandeira ou pela guerra nacional do momento. O desenvolvimento de uma identidade alternativa é o que fazemos quando lemos e quando ligamos partes do texto a outras partes, bem como quando passamos a expandir a área de atenção para incluir o

alargamento de círculos de pertinência (SAID, 2004, p.105,

grifos meus).

Seguindo essa abordagem, Said (2004) recupera a ideia de Filologia como forma de ler textos, ou, na definição nietzschiana, a arte de ler lentamente. A partir dessa perspectiva, a crítica filológica busca “compreender as inter-relações entre os conteúdos produzidos historicamente no texto e os mecanismos (linguístico-discursivos) produtores de significados no texto, ou melhor, pensar a leitura do texto por meio das coordenadas linguístico-discursivas, culturais, sócio- históricas e políticas nas quais o texto foi (re)inscrito e inseminado” (BORGES; SOUZA, 2012, p.48).

79 Filologia em Diálogo

Dessa exposição, entendo que a crítica filológica objetiva redefinir as relações dos sujeitos com a história a partir do estudo de textos. Nas práticas filológicas desenvolvidas na Bahia, temos falado muito do texto como evento social e histórico, mas pouco o caracterizamos como evento político que tem relação com instituições, organizações, movimentos sociais e sujeitos enquanto categoria política. Compreender a produção literária (no caso específico, de textos teatrais) e a mediação editorial como gestos públicos que instituem a formação de uma comunidade interpretativa e de uma instância de legitimação literária que determinam quais e como os textos são produzidos, lidos, editados e transmitidos socialmente, implica reconhecimento da dimensão política da produção literária e da práxis filológica para propor uma Filologia engajada e um enfoque crítico que se evidenciam na escolha de textos a editar que se encontrem às margens do cânone literário e de modalidades de edição que evidenciem o contexto documental, histórico, político e literário de produção e transmissão do texto.

3 EXERCÍCIO DE CRÍTICA FILOLÓGICA: UM CASO

Documentos relacionados