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3 UM OLHAR SOBRE O TEXTO

3.1. O texto e as suas versões

Da comparação entre a versão original do texto, publicada no Brasil, e a versão que saíra no jornal português em 60, podemos concluir que as modificações efectuadas pela Censura incidiram fundamentalmente sobre a linguagem do texto e em cortes de palavras isoladas ou mesmo de parágrafos inteiros.

Para além das alterações do título, já referidas, saliente-se logo no primeiro parágrafo do texto a substituição de adjectivos por sinónimos e a sua troca de posição na frase:

345 Versão A, p. 154. 346 Versão A, p. 154.

347 Gaspar Simões reitera em 1957 esta ideia de que, se no presente Pessoa é alvo de um culto, no tempo da

presença só ele e Régio o reconheciam como génio: «Quando assistimos, hoje em dia, ao espectáculo edificante que nos oferecem os convertidos ao culto da obra do grande poeta, numa hora em que é geral o reconhecimento do seu génio, lembramo-nos, contristados, daquela época em que éramos só nós – José Régio e o autor destas linhas – a sustentar, perante uma nação cega, surda e muda, que Fernando Pessoa era um dos mais altos poetas portugueses de todos os tempos», in «Prefácio da 1ª edição», Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões, pp. 12-13.

«momentos decisivos da nossa vida espiritual»348 foi modificado na versão do jornal para «grandes momentos da nossa vida espiritual».349 Ao longo do ensaio, a troca de posição do nome e do adjectivo será frequente, como acontece no caso da expressão original, «da imemorial distância entre o poema e a realidade por ele aludida»,350 que foi substituída no jornal por «a distância imemorial entre o poema e a realidade por ele aludida».351 Estas trocas

nãomodificam substancialmente o significado, considerando-se refinamentos estilísticos, tal como também acontece com a substituição de vocábulos isolados por sinónimos: «Admiramo-los», em vez de «Venerámo-los», «contemplaram», em vez de «viram», e outros.

Mas se há alterações que não modificam o sentido do texto, outras existem, mais gravosas, que o alteram substancialmente, como sejam os cortes intencionais de todas as referências a Casais Monteiro, a quem Lourenço não poupa elogios, quer na criação poética, quer na visão crítica. Repare-se na diferença entre as duas passagens, sendo a primeira a original, e a segunda a censurada:

Ninguém tirará a Régio a glória de ter compreendido, primeiro do que outros, a singular aventura poética de “Orpheu”, nem a Gaspar Simões e mais tarde a Casais Monteiro o mérito de terem tentado as explicações historiográficas e exegéticas de todos conhecidas. (Versão A) / Ninguém poderá tirar a Régio a glória de ter compreendido que “Orpheu” era uma singular aventura poética nem a Gaspar Simões o

mérito de ter querido dar dela uma explicação sistemática. (Versão B) 352

Ainda no mesmo parágrafo, Lourenço verá o seu ensaio novamente censurado, ao destacar Monteiro dos outros presencistas. Veja-se o que o ensaísta escreve na versão original e compare-se com a versão publicada no jornal:

Nela participam, embora de muito diversa maneira, todos os “presencistas”. Para sermos justos diremos que também o tempo, isto é a presença dos outros e a remeditação de velhas posições, alterou para cada um deles o psicologismo de base. Régio e, sobretudo, Casais Monteiro, tomaram ao longo dos anos uma consciência cada vez mais nítida das dificuldades insuperáveis dessa atitude mental. (Versão A) / Nela participam, é verdade que de maneira e graus muito diversos, Régio, Gaspar Simões, embora haja na crítica de Régio uma consciência cada vez mais nítida das dificuldades

insuperáveis dessa atitude mental. (Versão B) 353

348 Versão A, p. 131.

349 Versão B, 14 de Junho 1960, p. 6. 350 Versão A, p. 133.

351 Versão B, 14 de Junho 1960, p. 6.

352 Versão A, p. 133 e Versão B, 14 de Junho 1960, p. 6, respectivamente. 353 Versão A, p. 134 e Versão B, 14 de Junho de 1960, p. 6.

Mas as grandes passagens em que surge o nome de Casais Monteiro são também retiradas do texto original, como por exemplo aquela em que Lourenço explica a diferença entre a concepção poética de Monteiro e a dos presencistas Régio e Torga, fundamental para a compreensão que tem dos modernistas:

Só na poesia de Casais Monteiro essa referência é pouco visível, mas por isso mesmo ela não alcançou na perspectiva puramente “presencista” o estatuto mítico que assinala a poesia de Régio e de Torga. De todos os “presencistas” Casais Monteiro é o único que assimila no plano da criação poética e da teoria o espírito “modernista” e com ele convive e luta. Também se perfila no seu horizonte poético um elemento antagonista – sob a forma de uma Sociedade política e humanamente hostil – mas a sua interferência permanece discreta ou assume uma generalidade que não permite ver nela um elemento mítico, catalisador, à maneira de Deus para José Régio ou da Terra para Miguel Torga. Quanto a nós, a mais importante das suas obras poéticas, “Voo sem pássaro dentro” exprime, desde o título até à profunda meditação do acto poético que nela tem lugar, um mundo igualmente sem mediação dramática à maneira “presencista”. O facto de ter saído à luz muito depois de terminada a época da vigência poética especificamente “presencista” (década de 30 a 40) assinala já por si a inserção como que colateral desta

poesia na mitologia própria do “presencismo.”354

Lourenço voltará a referir-se a Monteiro, a propósito da escolha da designação mais apropriada para o período que se segue ao revolucionário “Orfeu”, acabando por sugerir o de

Contra-Revolução do Modernismo. Efectivamente, esta passagem afigura-se-nos decisiva por

três razões essenciais: esclarece a posição de Lourenço face aos presencistas, salvaguarda que a leitura feita no ensaio respeita à poesia e não à crítica ou à prosa presencistas, e recusa a designação de Segundo Modernismo para a “Presença”:

Nada faz ao caso a longa e permanente história da “incompreensão”, por parte de um Régio, de tudo quanto em “Orpheu” é propriamente “modernista” ou da sua não velada reticência em relação a um Pessoa, para já não falar do gosto conservador e classicizante cada vez mais acentuado do mesmo poeta. Quanto a Gaspar Simões a sua atitude oscilou do ditirambo à pura denegação de seriedade literária à poesia de Pessoa. Somente Casais Monteiro, como poeta e como crítico guardou uma relação não ressentida com o clima e os valores típicos do Modernismo. Mas uma andorinha não faz a primavera. Quando muito o seu caso provará que a obra de cada “presencista” se inscreve em horizontes dificilmente redutíveis a qualquer elemento comum. A história interna do “presencismo”, as irredutibilidades, os conflitos entre os seus protagonistas inclinam a pensar que a categoria histórico-literária “Presença” não tem verdadeira essência. Que o mais prolífico dos seus críticos e panegiristas se dê conta, não sem coragem, passados vinte anos sobre as suas apologias que a poesia dos seus camaradas de geração “ignorou” fenómenos tão consideráveis para a definição e perfil da poesia “moderna” como Rimbaud ou Mallarmé, não ajuda muito, nem a admitir uma coerência interna do movimento resumida pelo mesmo crítico no slogan “Nós, a Presença”, nem, sobretudo, a endossar como evidente o seu carácter de “modernista”.

Não exageremos, porém, nem tomemos como norma opiniões que tiveram sempre em conta de preferência o simples perfil sociológico de um grupo literário e as necessidades da estratégia cultural que lhe foram próprias, do que a natureza das criações que lhe deram corpo. A referência ao Modernismo é para “Presença” mais do que vinculação anedótica e passageira. Mas convém assinalá-la de maneira tal que se possam entrever relações de conteúdo entre Modernismo e “Presença” e não meras afinidades, aproximações exteriores ou identidades, como as que a associação crítica “Orpheu”-“Presença” institui. O recurso à designação de Segundo Modernismo introduz a ideia de uma diferença numa continuidade e por isso mesmo não é mais satisfatório. O acento é colocado na cronologia, não na natureza dos dois fenómenos culturais.355

Possivelmente algumas das críticas que viriam a ser feitas ao ensaio poderiam ter sido evitadas, se este excerto tivesse integrado o texto publicado em O Comércio do Porto, nomeadamente em relação à tese da contra-revolução enunciada no título. Também a crítica que viria a acusar o autor de ter alegadamente aliado as vertentes da criação poética e da crítica presencistas teria sido escusada, caso a nomeação de «críticos-poetas» e «poetas- críticos», na versão original, não tivesse sido sistematicamente substituída pela de «críticos», designação mais simplista e inequívoca.

A linguagem usada pelo ensaísta no texto original é mais agressiva, hiperbólica e enfática, do que a que será utilizada no texto do jornal, reflectindo uma posição mais inflexível que será atenuada com os cortes realizados com vista à publicação no periódico. Por outro lado, o facto de o texto original ser mais extenso possibilita um aperfeiçoamento contínuo do raciocínio do desenrolar das ideias do autor, realizando assim plenamente a sua vertente ensaística.