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O trabalho e as comunidades rurais do Mundo Antigo

No documento Aristóteles e a metafísica do dinheiro (páginas 79-81)

6. MARX E O DINHEIRO

6.3 O trabalho e as comunidades rurais do Mundo Antigo

Para as pequenas comunidades rurais do Mundo Antigo, habituadas a trocar seus produtos excedentes por outros produtos consumíveis, o ouro trazido do estrangeiro aparecia como um ente estranho à vida humana. Para essas comunidades, onde dominava o trabalho em suas formas concretas e naturalmente úteis, o ouro aparecia como uma figura maravilhosa e muito superior aos poderes da comunidade. Por não surgir do trabalho dessas comunidades com a terra e por parecer não exigir esforço e fadiga em sua aquisição, como exigem os trabalhos da terra, o ouro aparecia como um ente destituído de valor moral. Esse ente imoral, produto da escravidão e do trabalho embrutecedor da mineração, aparecia misteriosamente dotado do poder de ser trocado por qualquer produto da comunidade.

Como na mente religiosa, o dinheiro aparecia para essas comunidades rurais como um ente situado fora do universo da natureza e da comunidade. Como um ente dotado de poderes universais e transcendentes, as comunidades rurais ora o combatiam e ora o idolatravam, sempre temendo o risco de esse ser supremo destruir seus valores e hábitos tradicionais. O grande temor dessas pequenas comunidades rurais antigas, baseadas no valor-de-uso do produto e no trabalho concreto, era o temor de que o deus

Ploutos suplantasse e subordinasse todos os outros deuses naturais da comunidade.

Desse modo, diferentemente de todas as formas equivalentes naturais adotadas pelas pequenas comunidades rurais do mundo antigo, como o gado e o sal, o dinheiro aparecia na relação de troca dessas comunidades com comunidades estranhas como uma espécie de deus ex machina e como um ente completa e absolutamente estranho à mente dessas comunidades. Para essas comunidades, o dinheiro possuía a estranha capacidade de tornar forte o fraco e virtuoso o medíocre.

Como guardiões do dinheiro, os indivíduos, sempre mais fracos e impotentes que a comunidade, passavam a ter poderes muito superiores aos poderes dessa comunidade. Ao potencializar as forças do indivíduo para além das forças da comunidade, o dinheiro aparecia dotado de uma força demoníaca, desmedida e imoral, por isso, para se preservar os poderes das comunidades e evitar sua corrupção moral, era preciso combater esses guardiões e evitar sua influência sobre a juventude.

Desse modo, para essas pequenas comunidades rurais do mundo antigo, o dinheiro e seus guardiões apareciam como elementos estranhos às medidas da physis e como membros desagregadores do ethos da comunidade. Por isso, será comum para essas pequenas comunidades rurais antigas, a recusa em aceitar como membros de sua comunidade homens estrangeiros e amigos do dinheiro – os chamados φιλοχρήματοι. Para proteger as tradições rurais e o ethos dessas comunidades era fundamental proteger-se dos φιλάργυροι – os guardiões e amantes da prata.

Para as comunidades rurais do mundo antigo, a magia do dinheiro surgia exatamente da circunstância de que ele não tinha origem numa forma concreta e útil de trabalho. Ou melhor: para essas comunidades, o ouro não tinha origem no trabalho. Para o mundo antigo, o trabalho era uma atividade sagrada e moral, especialmente o trabalho rural, realizada exclusivamente por homens livres. A atividade escrava não pertencia à categoria trabalho para essas comunidades rurais, exatamente porque não era uma atividade de homens livres – mas de homens submetidos ao domínio de outros homens.

Diferentemente do mundo moderno, para quem o trabalhador, ao lado da terra, é um agente moral da produção, para o mundo antigo, especialmente em sua fase clássica, o trabalhador escravo não passava de mero instrumento de produção. O trabalho da mineração, por isso, não aparecia para as

diferentes comunidades que cambiavam seus produtos com ouro como trabalho, pois uma atividade tão degradante e destruidora da vida humana como o trabalho escravo da mineração, jamais poderia ser comparado com o trabalho livre sobre a terra dessas comunidades camponesas.

Assim, ainda que no princípio as trocas entre os diferentes indivíduos e comunidades pudessem ser concebidas como trocas entre diferentes trabalhos úteis (M-M), no período em que o ouro passa a dominar essas relações, as trocas começam a aparecer embaralhadas sob a forma de produtos por dinheiro (M-D). O ouro apagava assim, da memória e dos sentidos dessas comunidades, o fato elementar de que a troca de seus produtos por ele não passava das mesmas trocas diretas entre produtos praticadas por suas gerações passadas. A magia do dinheiro, tanto para o mundo antigo quanto para o mundo moderno, vem dessa capacidade de o ouro-dinheiro poder apagar todas as suas relações com o mundo do trabalho e da physis, vem dessa capacidade de ele esconder de nossos sentidos, de apagar de nossa memória e nos fazer esquecer o princípio mais básico e original de toda riqueza e da existência humana, o princípio eterno, necessário e universal do trabalho e da interação metabólica entre Homem e Natureza.

Como dizia Marx, o ouro parece sair das entranhas da terra como encarnação direta de trabalho humano em sua forma geral e sem nenhuma relação com a physis e o trabalho comum da sociedade. O ouro aparece, paradoxalmente, como encarnação geral do trabalho da comunidade, mas sem nenhuma relação com esse mesmo trabalho. Como no mito religioso, o dinheiro na forma ouro parece descer ao solo como a figura diretamente encarnada de Deus. Assim como o Deus cristão habita uma região sagrada e celestial, uma região separada que paira acima do submundo humano e da physis, da mesma maneira parece o dinheiro nascer, crescer e se desenvolver numa mesma região sagrada e celestial situada acima da physis e do trabalho geral da sociedade, mantendo com estes uma relação meramente passageira, quando se deixa ocasionalmente trocar por mercadorias sem, contudo, deixar de desejar apenas a si próprio e sua acumulação sem fim e sem pausas.

No documento Aristóteles e a metafísica do dinheiro (páginas 79-81)