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3. Escolhas estéticas e políticas

3.1 Escolhas estéticas

3.1.1 O trabalho da performer

Assim como a relação ficção-realidade, também a linha tênue entre a atriz Roberta e a personagem Paloma, em Abstinência de Purpurina , já havia sido revelada ao público mesmo antes da estreia do espetáculo. A divulgação consistia em dar a ver o caráter ambíguo, dual e vacilante, que seria posto em palco. Também nesse sentido, a sinopse trazia as seguintes palavras:

Paloma. Roberta. / Roberta. Paloma. A mesma pessoa, a mesma personagem ou uma versão polida entre as duas? / Paloma quer falar acerca da mãe. / Paloma quer falar acerca do SEF. / Paloma quer falar acerca de castings. / Paloma quer falar acerca do nu. / Paloma quer morrer. / Paloma surge para contar histórias - verdadeiras ou não – da atriz brasileira Roberta, que “sofre” de abstinência de purpurina desde que trocou o Rio de Janeiro por Lisboa. Ou será que é Roberta quem conta as histórias de Paloma? Num constante regresso às memórias, Paloma cria uma espécie de jogo consigo própria, tentando reencontrar-se ou redescobrir-se através das suas vivências. Entre o movimento compassado da ficção e/ou realidade, o espectador é convidado a descobrir a verdade por detrás das palavras. (Sinopse do espetáculo Abstinência de Purpurina )

Assim como o próprio texto da peça, a sinopse foi igualmente fragmentada em versos, o que ajudou a ditar o ritmo da leitura, revelando a marca principal do espetáculo - a alternância. Essa característica também está presente na forma como se descreveu o que seria visto, deixando claro ao espectador que ele veria em cena um duplo da atriz e/ou da personagem, que ora contaria suas histórias, ora traria invencionices, desafiando o público a entrar no jogo de adivinhação e especulação.

Já o teaser “Queres Conhecer a Paloma?” , divulgado um mês antes da estreia e também 37 projetado na parede enquanto o público chegava à Galeria Monumental, contou com a participação de amigos e conhecidos reais da atriz, que diziam conhecer Paloma. Para a realização do vídeo, criou-se um texto que trazia elementos existentes no espetáculo, como fragmentos de histórias ou características que supostamente indicavam a personalidade da personagem, além de algumas informações alheias à peça. Com o teaser, alcançou-se o objetivo esperado: estimular a curiosidade do público para descobrir quem era a personagem Paloma e perceber o que dali poderia ser inventado. Efetivamente, ao longo de todo o espetáculo, o público é provocado a sentir o mesmo que sentiu ao ver o vídeo: curiosidade e incerteza.

Em Abstinência de Purpurina , buscou-se converter a “irrupção do real” (LEHMANN, 2017: 142) na coluna vertebral do trabalho, transformando, como sugere Lehmann, “explicitamente o real em co-actor - ao nível prático e não apenas teórico” (ibidem). Sendo assim, foram feitos todos os esforços para que a estética do espetáculo estivesse baseada na correlação entre ficção e realidade. Deste modo, é importante analisar como o trabalho da performer influi na percepção e recepção dessa dupla relação. Primeiramente, não se nega a lógica de que o corpo da atriz, ora rabiscado, ora desnudo, ora besuntado de purpurina é um corpo real; ela tem uma dificuldade real em enrolar o cigarro em cena, cigarro esse que ela realmente fuma; também a bebida que ela bebe é uma bebida real e o prazer que ela sente ao degustar vagarosamente uma grande fatia de bolo também é real. Portanto, o que o público vê em cena é um corpo físico que se torna “uma realidade autónoma, que (...) por meio da sua presença, se ‘manifesta’ como o local onde se inscreve a história coletiva” (LEHMANN, 2017: 139). Sendo assim, o que se destaca no trabalho e o que guia a performance da atriz é a revelação, desde o primeiro momento, de que não haverá, em nenhuma instância, distanciamento entre o que é a Paloma e o que é a Roberta.

Esse jogo limpo com o público é reforçado, principalmente, nos momentos em que há uma quebra da ação, para que seja feito um comentário ou seja dada alguma informação importante ao público. A primeira quebra, por exemplo, quando a performer pergunta se “alguém tem fogo” na plateia, é quando fica claro ao público como se dará a relação palco-plateia, ficção-realidade.

Nas três noites de apresentação, os espectadores demoraram a perceber que a atriz estava mesmo a pedir um isqueiro emprestado. Já em outra ocasião, na transição do bloco 8 para o bloco 9, uma situação oposta ocorre, confundindo uma parte dos espectadores, uma vez que já conhece a dinâmica do espetáculo e reage como se o que estivesse a ser posto em cena fosse verdade: a atriz diz sentir-se mal, solicita que acendam as luzes, pede desculpas aos espectadores e aos demais integrantes do coletivo que estão na régie , diz que vai precisar de um minuto para que se recomponha, afirma que isso nunca havia acontecido antes; os colegas auxiliam-na na ação, compreendendo completamente e demonstrando estarem preocupados e constrangidos. Em uma das noites, grande parte do público compadeceu-se da atriz: houve os que disfarçaram mexendo no celular, os que pegaram no programa do espetáculo mais uma vez e fingiram que estavam a ler e ainda houve os que disseram a ela que não se preocupasse. No entanto, tal ação não passava de uma marcação da peça, funcionando justamente como provocador.

É nítido perceber que a performer está se divertindo ao jogar com o público, o que é prazeroso de ver. Esse jogo é possível e sincero, pois não há um trabalho de criação de personagem, mas sim uma preparação da atriz para estar disponível para jogar com esses momentos reais e ficcionais. O momento presente é o único fator que rege o espetáculo, e é por isso que é preciso uma liberdade para experimentar-se, a cada dia, diante da plateia. Esse é o fator básico da

performance art , assim definido por Schechner:

A performance se resume a esse ato de nudez espiritual, uma des/coberta que não é construção de personagem, no sentido convencional do termo, mas também não é muito diferente. É um ato que acontece naquela região difícil, entre o personagem e o trabalho que o performer faz sobre si mesmo. A ação da peça é construída através de um processo cíclico, e a base desse trabalho são as reações do performer. A sua própria identidade é exteriorizada, e se transforma nos elementos cênicos da produção. A encenação é constituída desses elementos, que são em certo sentido o personagem. Entretanto, a reação do performer a cada elemento pode, a qualquer momento, evocar um novo elemento, que de novo transforma a encenação. O processo é impiedoso e interminável. (SCHECHNER, 2009: 334)

Esse processo cíclico, mencionado por Schechner, em que o ator sempre retorna a si mesmo, está no cerne da pesquisa de Abstinência de Purpurina, em que se buscou no trabalho da atriz “remover resistências e bloqueios” que poderiam impedir-lhe de “atuar de uma maneira inteira, seguindo completamente seus impulsos interiores em resposta às ações de um papel” (idem: 335).