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CAPÍTULO I A PESQUISA E O CAMPO NUM SERVIÇO DE ATENDIMENTO A

1.2. O trabalho de campo e o percurso de análise dos dados

A minha estratégia de inserção em campo para a construção do trabalho foi, a princípio, sentir o lugar. Eu busquei estar aberta para que o ambiente se mostrasse e florescesse, e com isso, aos poucos pude identificar aspectos importantes para pensar o objeto de pesquisa. Essa concomitante imersão em campo e elaboração do texto de Dissertação, ou seja, a inter-relação campo / leitura bibliográfica / escrita, tem um aspecto singular e intrínseco de cada imersão que é possibilitar uma maior clareza com relação ao percurso metodológico utilizado, ao modo de se situar no campo e ao desenvolvimento da pesquisa. O como chegar, como falar, como intervir, quando se calar, são ações que foram, por exemplo, configurando-se a partir do processo de ambientação e de conhecimento do campo.

No início do trabalho de campo fui ao CAPS ad uma ou duas vezes por semana. Nesse período de ambientação, além das conversas informais com os interlocutores, fiz a observação de variadas atividades desenvolvidas pelo serviço. No entanto, visando atender às delimitações da pesquisa, precisei estabelecer um foco nas observações e optar pelo acompanhamento de algumas atividades. Após a fase de ambientação e a construção dos objetivos, do problema e das questões de pesquisa, as visitas para o trabalho de campo foram intensificadas e as observações mais planejadas e direcionadas. Focalizei, então, os espaços em que, de algum modo, as percepções sobre a droga, sobre o uso e o usuário eram manifestadas, e os discursos explícitos e implícitos empreendidos pelos instrumentos legais, difundidos. Como o quantitativo de informações presentes nas diferentes atividades não contribuía com o direcionamento da pesquisa, optei por centrar as observações nas reuniões técnicas dos profissionais e nas assembleias dos usuários, pois tais espaços forneciam riquíssimas reflexões para as análises e interpretações.

Por conseguinte, para aprofundar os elementos discursivos relacionados com os temas estudados optei por realizar entrevistas com alguns usuários e profissionais do serviço. Para isso, foram elaborados roteiros semiestruturados (apêndice), no intuito de promover um diálogo sobre aspectos críticos e essenciais que nos permitissem problematizar as questões de pesquisa a partir da visão dos interlocutores. Os roteiros (um roteiro para as entrevistas com os usuários; e um para as entrevistas com os profissionais) foram formados por perguntas abertas, construídas por intermédio das leituras temáticas, dos objetivos traçados e das observações diretas. As entrevistas ocorreram no último mês do trabalho de campo.

Para a realização das entrevistas com os profissionais, fiz um convite informal e todos aceitaram. Entrevistei seis profissionais20, todas as entrevistas foram realizadas com a utilização do gravador e ocorreram nas salas de trabalho e na sala de descanso. Com os usuários foram realizadas quinze entrevistas, sendo que em catorze foi utilizado o gravador, e em uma entrevista o seu uso não foi autorizado. Algumas pessoas foram convidadas a participar (alguns convites foram feitos antecipadamente e outros de modo espontâneo durante conversas) e outras pessoas manifestaram o interesse em contribuir. Treze entrevistas foram realizadas em salas de atendimento individuais e duas ocorreram no pátio do CAPS.

Antes de iniciar as entrevistas eu solicitava ao participante a autorização para o uso do gravador, explicitando a sua importância para o arquivamento das informações. Com o consentimento do entrevistado, eu ligava o gravador e o agradecia por aceitar o convite e por autorizar a gravação, assegurando-o de que, a qualquer momento, ele poderia pedir que eu parasse a gravação, e esclarecendo que ele não precisaria responder às perguntas, caso não quisesse ou não se

20 Os profissionais que colaboraram com a entrevista são da área da psicologia, medicina, assistência social e enfermagem; um técnico trabalha como apoiador institucional e o outro na recepção e área administrativa.

sentisse à vontade para assim proceder. Também comuniquei que não divulgaria o nome verdadeiro para garantir o sigilo, e assim, dei início à entrevista, buscando contemplar os princípios da pesquisa ética21.

A condução dessa técnica, apesar de estar orientada por um roteiro semiestruturado, teve como principal guia o participante. Tentei mediar a entrevista da forma mais livre possível, iniciando a pergunta seguinte a partir do gancho deixado pelo entrevistado. Assim, não segui a ordem estruturada pelo roteiro, a ordem prezada era aquela dirigida pelas reflexões e práticas discursivas do interlocutor. De modo geral, 90% das entrevistas foram conduzidas de forma mais fluida, contando com uma participação mais ativa dos interlocutores; e em 10% dos casos, diante de curtas respostas e narrativas, precisei assumir um papel mais influente, na tentativa de estimular a participação do entrevistado. Durante a entrevista com os usuários, em alguns momentos precisei desligar o gravador por diligência deles, devido a conteúdos muito confidenciais. Uns, após a pausa, relataram-me o caso; já outros, disseram que sobre esse assunto não poderiam falar. Todas as manifestações foram aceitas abertamente, sem julgamentos e insistências. O importante era que eles ficassem à vontade e relatassem aquilo que presumissem ser necessário e relevante.

No decorrer das conversas informais com os usuários, percebi um aspecto interessante com relação à adequação da linguagem acadêmica ao campo de pesquisa, que me fez questionar até que ponto, o modo como o pesquisador relata e expõe a sua pesquisa, provoca certo afastamento ou aproximação dos participantes. Neste caso, como uma das metodologias imbricadas foi a entrevista semiestruturada, com a identificação de potenciais colaboradores durante as observações, eu questionava sobre a possibilidade de entrevistá-lo.

A palavra entrevista assustou alguns usuários do serviço. Uma pessoa perguntou “como era isso”, se outros teriam acesso; outra alegou que isso talvez seria um problema caso alguns traficantes soubessem do conteúdo; e outra perguntou: “mas, entrevista?”, e eu imediatamente expliquei que seria uma conversa como aquela que estávamos tendo, porém, gravada. Falei da importância da gravação para o estudo e ela se tranquilizou, alegando que estaria disposta a contribuir no que fosse possível. Diante dessas experiências, optei por não falar em entrevista, mas, em conversa ou um bate-papo com a utilização de um gravador de voz; entretanto, mesmo sendo descritores diferentes, as estratégias foram bem semelhantes, pois tive como apoio um roteiro semiestruturado e gravei as conversas com o consentimento dos colaboradores.

21 A pesquisa ética percebe a pesquisa como uma prática social e pensa a relação entre pesquisador e participantes com base em princípios construcionistas. Ela emprega a indispensabilidade do detalhamento e da visibilização dos procedimentos de coleta de dados; e no tocante à relação com os interlocutores, que os consentimentos sejam informados, prezando “a proteção do anonimato e o resguardo do uso abusivo do poder na relação entre pesquisador e participantes”. A ideia de pesquisa ética se distingue da ética na pesquisa, por problematizar os processos internos de trabalhos, superando “as prescrições e normatizações – algo que vem de fora” (SPINK & MENEGON, 2004, p. 90-91).

Outra mudança terminológica foi a própria palavra observação. Achei que falar em acompanhamento ou participação das atividades seria mais aceito que o termo observação, pois numa reunião dos profissionais, por exemplo, ele poderia soar como uma avaliação do comportamento e interferir na dinâmica das reuniões. Assim, para a realização do trabalho de campo, os percursos metodológicos centrais foram: a observação e a entrevista, porém, para evitar entraves durante a pesquisa, optei por utilizar as nomenclaturas “acompanhamento da atividade” e “conversa”, respectivamente.

Logo, como pode ser percebido, algumas minúcias metodológicas, especialmente as pertencentes ao processo de vinculação com os interlocutores, foram identificadas mediante a inserção e contato direto com o campo de pesquisa. Porém, há algumas estratégias orientadoras que foram pré-definidas e tais vias metodológicas se dividem no que aqui qualificarei como metodologia de coleta e metodologia de análise. Assim, o trabalho de campo, de base etnográfica, compôs o seguinte conjunto de estratégias implicadas na metodologia de coleta de dados: o estudo dos instrumentos legais, a observação direta e as entrevistas semiestruturadas. O processo que consiste na configuração e no desenvolvimento da metodologia de coleta dos dados pode ser observado no seguinte esquema:

Para dar seguimento às análises dos dados coletados, ou seja, dos documentos oficiais, dos diários de campo e das gravações das entrevistas, duas táticas foram empreendidas na metodologia de análise: a construção de “Mapas” para a análise das entrevistas, e a interpretação (GEERTZ, 1973) para a análise das observações. Ao final, fiz um cruzamento entre tais dados e a leitura/análise dos princípios norteadores, das leis e das políticas sobre drogas, o que possibilitou a minha interpretação. Esta interpretação é oriunda tanto do trabalho de campo quanto das interpretações e construções dos participantes -colhidas em entrevistas, em conversas informais e em atividades como assembleias e reuniões-, pois como bem pontua Geertz (1973), nós observamos, registramos e analisamos a partir daquilo que os interlocutores nos fornecem acesso, pois “what we describe (or try to) is not raw social discourse (…), we are not actors, we do not have direct acess” (p. 20).

Assim, com a finalidade de organizar as temáticas abordadas em cada capítulo desta Dissertação, a partir dos objetivos, dos questionamentos mobilizadores e do roteiro semiestruturado, construí 11 blocos de análise, intitulados: 1. A categoria usuário; 2. Vertentes e práticas discursivas proibicionistas; 3. Vertentes e práticas discursivas vinculadas à redução de danos; 4. O sujeito que é alvo da criminalização; 5. A mudança de leis e políticas; 6. Percepções dos usuários sobre eles; 7. Percepções dos profissionais sobre os usuários; 8. Como os usuários se sentem percebidos; 9. O CAPS ad para os usuários e para os profissionais; 10. Autonomia versus dependência; e 11. O acolhimento em outros serviços. A análise dos diários de campo e as transcrições das entrevistas também contribuíram para a determinação das temáticas dos blocos de análise.

O material coletado com as entrevistas também foi sistematizado a partir de tais blocos. Antes de ordenar os conteúdos temáticos, tomei como base um dos métodos de análise da teoria das “práticas discursivas e produções de sentido no cotidiano”, chamado “Mapas”. Segundo Spink (2010), “o Mapa é uma tabela onde as colunas são definidas tematicamente”, sendo que os temas são um reflexo do roteiro de entrevista, e o roteiro, por sua vez, é reflexo dos objetivos da pesquisa. Para a autora, “a definição das colunas que sistematizam a entrevista (ou o material discursivo) está relacionada a esse processo de organização de conteúdos de uma interação discursiva muito peculiar gerada pelo procedimento de pesquisa” (SPINK, 2010, p. 39), sendo que tais colunas são formadas pelas temáticas advindas dos objetivos pré-definidos, e pelas que são definidas posteriormente, durante o processo de análise. Por fim, a delimitação das temáticas que organizam e orientam os Mapas de cada entrevista já compõe o processo de interpretação.

Antes da construção dos Mapas, foram feitas as transcrições das 20 entrevistas realizadas (no total foram realizadas 21 entrevistas, mas umanão foi gravada). A partir das proeminências e relevâncias dos conteúdos discursivos para as finalidades da pesquisa, foram selecionadas temáticas, que também nortearam a construção das colunas e dos blocos de análise. É importante

enfatizar que as colunas e os blocos abrangem os mesmos conteúdos temáticos. Assim, na construção dos Mapas de cada entrevista transcrita, as falas de um entrevistado foram descoladas para cada coluna específica. Após a finalização das transcrições e ordenação das falas em Mapas, cada coluna foi transformada em um bloco de análise. Isso significa que as falas de todos os entrevistados correspondentes à mesma coluna são transferidas e reunidas em um único bloco, sendo possível observar, como um todo, as práticas discursivas referentes a cada temática, de modo a facilitar a articulação com os dados oriundos das observações e, assim, a análise e a interpretação de cada temática específica. Esse processo de análise dos dados, que culminou na construção dos três capítulos, pode ser visualizado a seguir:

Figura 2: Fluxograma do método de análise dos dados

Por fim, após apresentar o CAPS ad, as pessoas que colaboraram com a pesquisa, o processo de negociação e incursão em campo, e o percurso metodológico de coleta e de análise de dados, discutirei, nos capítulos seguintes, a influência das bases que fundamentam as leis e políticas públicas sobre drogas no modo como o usuário de substâncias psicoativas se percebe e é percebido

socialmente. Para prosseguir com as análises e interpretações, iniciarei o segundo capítulo problematizando a categoria usuário, contextualizando-a a partir do campo em que a pesquisa foi desenvolvida, do proibicionismo, da redução de danos e das leis e políticas públicas sobre drogas. Busco, assim, compreender o modo como a categoria tem sido constituída por tais perspectivas, e como os usuários são posicionados e se posicionam na rede discursiva construída pelos instrumentos legais e pelo CAPS ad.