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O TRABALHO E A FAMÍLIA: SIGNIFICADOS PARA AS CLASSES

3 CULTURA POPULAR, HEGEMONIA E CLASSE SOCIAL

3.4 O TRABALHO E A FAMÍLIA: SIGNIFICADOS PARA AS CLASSES

proporções ampliadas no contexto de vida das mulheres da classe popular pelo fato de que o primeiro se constitui como a base de sobrevivência, delas e da família, e esta consiste em um dos principais motivos que as leva a trabalhar, além do desejo pela independência e de convívio social. Estas esferas são primordiais em suas formações identitárias e de posição social que ocupam. Como afirma Almeida (2013, p. 116)6, a partir de diferentes pesquisas realizadas com mulheres de camadas médias e populares,

[...] parece importante destacar como elas [mulheres] revelam os dois grandes valores associados ao feminino: por um lado, a maternidade, por outro o trabalho e independência social [...] Mesmo aquelas [mulheres] de camadas populares, que sempre tiveram que trabalhar e não tinham outra opção, declaravam a importância que sentiam em ter sua parte no dinheiro da família, o que lhes permitia tomar certas decisões.

Entendemos que, de forma geral, mesmo que o Brasil seja um país marcado pela diversidade das mulheres em distintos âmbitos, elas carregam traços em comum, pois são “rostos, corpos e histórias que se distinguem, ao mesmo tempo em que se confundem, no

6 Conforme a autora, o texto utilizado aqui remete aos resultados de duas pesquisas: Telenovela, consumo e gênero: muitas mais coisas (2003); Consumidoras e heroínas: gênero na telenovela (2007), realizadas com base em sua tese de doutoramento Almeida (2001) e em dados de outras pesquisas empíricas realizadas por ela. Além disso, o texto utilizado mescla dados de uma pesquisa empírica da FPA e alguns dados da pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. (ALMEIDA, 2013).

intuito comum de lutar com garra pela sobrevivência e pela dignidade de si mesmas e dos seus” (ABI ABIB; MIRANDA, 2012, p. 13). Integra nosso objetivo apresentar o que realmente importa às classes desfavorecidas, a família e o trabalho, e como estas instâncias ganham relevância e adquirem significado na vida destas classes.

A esfera do trabalho tem recebido constante relevância no decorrer da história do gênero feminino e está intimamente ligada à questão da ascensão social. Apesar da diversidade de representações quanto às ocupações femininas no contexto brasileiro, as mulheres pertencentes à classe popular “foram majoritariamente empregadas domésticas, babás, cozinheiras e tiveram outras funções, como lavar, passar, costurar para fora. O trabalho era muitas vezes uma condição, algo necessário para sustentar a família, e não uma escolha” (ALMEIDA, 2012, p. 111). Mesmo que a autora se refira a um tempo passado7, o trabalho como forma de sobrevivência e não como opção está presente na trajetória das mulheres que constituem nossa amostra, e, em todos os casos, foi devido à necessidade de trabalhar que os estudos foram interrompidos, o que se constitui em um ciclo, já que é a baixa escolaridade que faz com que as mulheres tenham ocupações pouco reconhecidas socialmente e/ou mal remuneradas.

O ingresso das mulheres na esfera pública8, que tem se dado com o passar do tempo, não distancia nossa percepção de que “ainda que a sociedade tenha vivenciado várias mudanças culturais, o aumento da participação da mulher no mercado de trabalho se deve, sobretudo, à necessidade de sobrevivência” (TEMER et al., 2012, p. 32). A dimensão da relevância do trabalho na vida das mulheres de classe popular será mais bem compreendida quando apresentarmos este em combinação com os dados empíricos, quando nos referimos às trajetórias de nossas informantes, a partir da saída de casa, quando crianças ou jovens, até as condições por elas vividas nos dias atuais.

Além da concepção do trabalho feminino ser marcado pela divisão entre o privado e o público e como indispensável pelo viés econômico, pois “a quantidade de rendimentos impõe limites, indo determinar não só o que pode ser comido ou vestido, mas também de que maneira a própria cidade pode ser apropriada; ou seja, é a renda que vai ditar, em boa medida, a maneira de viver” (CALDEIRA, 1984, p. 104), este adquire, entre as classes populares, uma dimensão que ultrapassa este fator e apresenta um valor que se sobressai ao dinheiro. Como nos aponta Sarti (1996), o trabalho para os pobres vai além da concepção econômica, mas se

7 Almeida (2013) se refere a “inúmeras pesquisas na área de história” (2014, p. 111), nas quais se baseou para

escrever sobre os tipos de trabalhos predominantes na vida das mulheres até os anos 70.

8 Consideramos as casas em que as mulheres trabalham como espaços públicos, pois diferem da organização de

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relaciona também ao âmbito da moral dos pobres trabalhadores que compensa as desigualdades socialmente dadas, na medida em que é construído dentro de outro referencial simbólico, diferente daquele que o “desqualifica” socialmente.

Ao lado da negatividade contida na noção de ser pobre, a noção de ser trabalhador dá ao pobre uma dimensão positiva, inscrita no significado moral atribuído ao trabalho, a partir de uma concepção da ordem do mundo social que requalifica as relações de trabalho sob o capital. Se o trabalhador se localiza como pobre no mundo social, não se considera pobre de espírito, porque tem os valores morais que lhe permitem, quando cair no buraco, se levantar. (SARTI, 1996, p.67).

Percebemos que o trabalho se relaciona também à formação das identidades das classes populares, já que, nos locais de trabalho, além do contato com a família e a televisão, muitas vezes os indivíduos de classes desfavorecidas têm contato com outras realidades, identidades e comportamentos, podendo então formar ou confirmar suas identidades e concepções frente a outras possibilidades, convivências e aprendizados.

Além do trabalho, a família é uma instituição de relevância para as mulheres de classe popular na medida em que é por ela que as mulheres lutam em busca de melhores condições de vida, principalmente quando se trata do marido e dos filhos, forma como são constituídas as unidades familiares das entrevistadas desta pesquisa. Assim, a esfera familiar, além do significado emocional, serve como o estímulo para o trabalho, tendo influência direta neste. É na esfera familiar que as vontades são compartilhadas e onde se inicia o processo de aprendizado de divisão de decisões, como argumenta Durham (1980, p. 207-208 apud CALDEIRA, 1984, p. 105): “a família aparece como núcleo de atividades coletivas [...] e um grupo dentro do qual as pessoas tomam coletivamente decisões que afetam seu destino comum”, decisões estas que perpassam diretamente sobre as opções trazidas pelo trabalho ao seio familiar, como o consumo.

Diante da carência de outras instituições na vida dos indivíduos de classes populares, a família – formada pelos membros com quem se convive diariamente, mas também ressaltamos a relevância dos “parentes”, a parte da família que está para além da porta da casa, principalmente nos casos das mulheres idosas –, se torna um lugar de referência identitária, o que significa dizer que é nela que estas pessoas se formam como indivíduos sociais, onde têm seu primeiro contato com um grupo. É também para ela que estas pessoas recorrem quando necessitam de qualquer tipo de auxílio, seja de ordem emocional ou econômica. Assim, a instituição familiar é como uma referência simbólica e, quando “pensada como uma ordem moral, constitui o espelho que reflete a imagem com a qual os pobres ordenam e dão sentido ao mundo social” (SARTI, 1966, p. 3-4).

De maneira mais geral, a autora supracitada argumenta que

A família não é apenas o elo afetivo mais forte dos pobres, o núcleo da sua sobrevivência material e espiritual, o instrumento através do qual viabilizam seu modo de vida, mas é o próprio substrato de sua identidade social. Em poucas palavras, a família é uma questão ontológica para os pobres. Sua importância não é funcional, seu valor não é meramente instrumental, mas se refere à sua identidade de ser social e constitui o parâmetro simbólico que estrutura sua explicação do mundo (SARTI, 1996, p. 33).

Souza (2012) entende a socialização familiar como primordial no entendimento das classes sociais, já que é na família que as primeiras relações das pessoas são construídas, além de estar diretamente ligada às heranças possíveis de serem passadas de gerações, estas não somente financeiras, mas também ligadas às transmissões afetivas e de comportamentos, principalmente com relação à classe da qual tratamos aqui.

Pensada como instituição de referência para as classes populares, na medida em que serve como apoio de formação dos indivíduos como seres sociais, na relação com a comunicação, a família se torna indispensável, principalmente quando a pensamos como mediação. Como Lopes, Borelli e Resende (2002, p. 140), entendemos que esta esfera é um espaço social (sistema de relações de parentesco), um espaço cultural (história e dinâmica familiares) e um espaço de mediação das mensagens da mídia.

A instituição familiar, neste contexto, é entendida como algo que auxilia a construção dos espaços da experiência dos indivíduos e que se manifesta nos momentos de contato com a esfera midiática além de sua manifestação no contato com outras esferas, como o trabalho e as relações em sociedade de forma geral. Assim, tratamos a família como construtora da formação de opiniões e de representações.

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