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O triunfo da ordem: Nós, os modernos; eles, os arcaicos

II. INTINERÁRIOS MODERNOS DA ERA VARGAS

3. O triunfo da ordem: Nós, os modernos; eles, os arcaicos

Definidas as bases jurídicas do novo regime político, suas lideranças voltaram as atenções para questões sociais. Mereceu atenção especial as manifestações do operariado urbano, anteriormente vistas “como caso de polícia”, na conhecida expressão atribuída a Washington Luís, o presidente deposto em 1930. Nessa concepção, greves e protestos realizados pelos trabalhadores contra as condições adversas de trabalho eram meros casos de polícia, cabendo ao Estado reprimi-los com meios coercitivos, sem intervir diretamente na relação entre patrões e empregados. Essa questão foi deslocada e o trabalhador ganhou centralidade na construção discursiva do Estado Novo98.

De fato, se as questões sociais deixaram de ser consideradas somente “casos de polícia”, o sentido fortemente hierarquizado da sociedade e a restrição à participação democrática aos menos favorecidos continuavam evidentes. Como se falou anteriormente, as concepções modernas discutidas desde os anos 1920 propunham melhorias sociais, mas concebiam o povo como paciente da história. Aos intelectuais, aos técnicos e aos chefes políticos competia executar mudanças na sociedade.

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Talvez o principal deslocamento tenha uma perspectiva cultural, em face da busca da brasilidade ideal, presente desde os movimentos dos anos 1920, como podemos ver numa carta de Mário de Andrade.

Problema atual. Problema de ser alguma coisa. E só se pode ser, sendo nacional. Nós temos o problema atual, nacional, moralizante, humano de brasileirar o Brasil. Problema atual, modernismo, repara bem porque hoje só valem artes nacionais... E nós só seremos universais o dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer para riqueza universal99.

Nesse texto, o modernista defende que a cultura brasileira só seria maximizada quando se inscrevesse no bojo das culturas universais. Esse esforço foi levado a cabo pelo governo de Vargas, a partir de uma série de ações com a finalidade de valorizar a cultura nacional, promover o reconhecimento do Brasil como múltiplos “Brasis”, fundar e revelar a nacionalidade até então negligenciada. Contudo, as ações tiveram em seu escopo uma dimensão marcada pelo autoritarismo. Valorizavam “retratos do país”, mas pautados na manutenção de privilégios para as elites, omitindo as contradições, os conteúdos autoritários e a violência que os novos tempos anunciavam ao país100. Nesse contexto, quem estava à frente do Estado deveria tomar para si a responsabilidade de identificar e promover as aspirações de determinados setores da sociedade.

As aspirações modernas foram assumidas parcialmente pelos partícipes do Estado Novo, que buscaram promover a diferenciação entre o velho e o novo. Em especial, no combate discursivo e prático às políticas identificadas como liberais e ao estrangeirismo que, na visão de altos expoentes do governo, promovia o divórcio do Brasil como o ser brasileiro e com suas reais potencialidades.

O estatuto de remissão dos pecados atribuído ao novo regime político foi amplo e passou por diversos setores da vida nacional. De acordo com Ângela de Castro Gomes101, uma série de debates, convergências e deslocamentos gestam a ideia de redescobrimento do país. A cultura nacional deveria buscar o que era intrínseco ao país, que desde muito tempo teria sido negligenciado pelas lideranças, acusadas de cometerem o erro de exagerar no liberalismo e no estrangeirismo.

Até então a identidade nacional teria valorizado o mau regionalismo, por vezes bairrista e fratricida. A propalada redescoberta do país daria à nação e aos seus habitantes a real noção de brasilidade, a qual deveria convergir para o bem comum, o bem do povo e do

99 ANDREDE, Mário Apud OLIVEN, 2001, p. 5.

100 HERSCHMANN; MASSEDER PEREIRA, 1994, p. 26. 101 GOMES, 1982, p. 125.

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Estado, na recém-criada “democracia autoritária”, como era denominado o Estado Novo por seus integrantes.

Para a criação do mito do novo Brasil, os intelectuais estado-novistas preocuparam-se em construir uma narrativa lógica e coerente acerca do processo político nacional recente. Era vital divulgar a versão de que os eventos contestatórios à Republica Liberal foram construídos de forma teleológica, com o fito no Estado Novo. Os eventos de 1930, o interstício de sete anos até a imposição do Estado Novo eram vistos como mera preparação para o novo regime político. Porém, para Aspásia Camargo102, existiu um enclave modernizante implantado à força em 1930 e 1937, mas as duas datas não remetem a continuidades homogêneas.

As lideranças do Estado Novo, reunidas em torno de Getúlio Vargas, posicionavam-se como executores de um processo contínuo e inexorável para a tessitura da história nacional. Para elas, os políticos e os intelectuais seriam os autores da verdadeira história do país, que reunia os brasileiros em torno de um governo, de um projeto e de uma ideia de nação. O papel de demiurgo acessado por essas lideranças marca esse período muito associado à figura maior do líder autoritário e carismático, Getúlio Vargas.

A construção da imagem do presidente (em âmbito nacional) e a dos interventores (nos estados) foi fundamental para a manutenção desse projeto político realizado com muitas ferramentas: atos cívicos – semelhantes ao te deum monárquico, emissões radiofônicas, publicações do eficiente e onipresente Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), tutela cultural e legislativa da educação reformulada pelo Ministério da Educação e Saúde. Distintas ferramentas visando incutir nas mentes e corações a admiração e obediência ao líder da nova e redescoberta República. Objetivo alcançado com êxito, haja vista a imagem clássica de Vargas como pai dos pobres, cristalizada na memória coletiva brasileira por muito tempo103.

O resgate da cultura nacional constituiu-se, portanto, um elemento fundamental na construção do paradigma da denominada “democracia autoritária” e da política voltada para as questões sociais no Estado Novo. Um resgate sem uma vinculação propriamente histórica, pois o pretendido redescobrimento não se referia a uma data em si nem à ancestralidade do país, marcada pelo lusitanismo e pela escravidão. Apontava para questões novas, a fim de promover a aproximação do regime com o povo. Esse novo conceito de democracia, conforme Ângela de Castro Gomes, centrava-se no caráter “realista e humano do novo Estado, que fecunda a natureza e a cultura brasileiras com o esforço do trabalho, protegido e

102 CAMARGO, 1999, p. 39. 103 LEVINE, 2001, p. 81.

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amparado pelo governo”104. O trabalho, nessa concepção, tinha função central na medida em as atividades laborais eram vistas como o maior critério formador da cidadania.

No plano econômico, a perspectiva estado-novista buscou promover o convívio, ainda que relativizado, com o liberalismo econômico. Os políticos apresentavam-se discursivamente contrários a ele, mas direcionavam as ações estatais de maneira a não restringir a relativa liberdade que o empresariado – um dos fiadores do regime – possuía no mundo dos negócios. Essa democracia assimétrica caracteriza-se pela relativa participação popular, na medida em que se concebia que os trabalhadores e a sociedade como um todo estavam representados pelos chefes políticos. Aqui vale lembrar a visão demiúrgica dos intelectuais, que entendiam o bem-estar do povo como uma elaboração dos condutores, que saberiam ver as reais necessidades da sociedade de forma ampla. À vontade e a ação popular se encontravam praticamente limitadas aos sindicatos tutelados pelo corporativismo estatal. Desse modo, os trabalhadores deveriam manter-se coesos e disciplinados no mundo do trabalho e as transformações sociais ficavam tuteladas aos interesses do Estado.

Os interpretes do regime viam as experiências autoritárias então vigentes na Europa, mas defendiam que o governo Vargas era diferente, que ele era o “ditador amável”105,

comandando com maestria o regime autoritário democrático, assegurando um Estado forte que prescindia da participação política. De acordo com Ângela de Castro Gomes:

Sua fórmula de resolução da questão social é capaz de integrar o povo à política, afastando a ameaça anarquizante de pressões sociais que podem deixar fora de controle estes novos participantes do desenvolvimento socioeconômico do país. Assim é constituído um novo sujeito social, definido com o cidadão de uma nova espécie de democracia: o trabalhador brasileiro é o cidadão da democracia e homem da nova comunidade nacional106.

A construção discursiva desse redescobrimento do Brasil incluía a superação de amarras que impediam seu desenvolvimento natural, os males que proporcionavam o atraso político, social e material do país, numa clara concepção evolucionista/naturalista da histórica nacional, expresso por Azevedo Amaral107, entre outros.

Tomando algumas das premissas do pensamento modernista, o Estado Novo pôs em prática uma visão tanto moderna quanto autoritária. A produção intelectual no Brasil na década 1930 tinha o fim primordial de interpretar o país, em sua plenitude continental. A unidade brasileira e a superação do pensamento liberal – tido como fratricida – foram

104 GOMES, 1982, p. 115. 105 COSTA, 1938. 106 GOMES, 1982, p. 143. 107 OLIVEIRA, 1982, p. 50.

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intensamente debatidas. Para um dos contemporâneos, Oliveira Viana108, homogeneidade e unidade nacional eram conceitos limitados pelas características híbridas do Brasil. Sua observação aponta para as dificuldades de conformar a diversidade nacional na formação de um país homogêneo e moderno, a fim de fundar a modernidade autoritária amparada no conhecimento "positivo", científico e isento de todo e qualquer preconceito ou de ideias apriorísticas.

Oliveira Viana considerava que a história do Brasil sempre estivera intimamente ligada à europeia, sobretudo nos últimos dois séculos, com a forte influência das correntes modernistas do século XIX e da “belle époque”. Entendia, assim, ser obrigação dos intelectuais e dos políticos a busca pela valorização da nacionalidade e a construção do país novo como meio de superar o atraso perante as nações europeias. Seu pensamento converteu- se numa das bases do Estado Novo, umbilicalmente ligado à concepção pedagógica de formação de uma brasilidade e de uma noção de civilismo com aspectos autóctones.

De acordo com Sérgio Miceli, a carreira dos intelectuais estado-novistas foi construída através da proximidade deles com o poder. Muitos, ainda no pré-30, atuando nas mais diversas áreas da produção e difusão do conhecimento vinculados, na maioria dos casos, a perspectivas eminentemente conservadoras, que se fundiram ao ideário estatista e centralizador da década de 1930, ajudou a concretizar a experiência autoritária do Estado Novo.109 Esses pensadores, ainda segundo Miceli,

falavam em nome de uma elite burocrática, na crença de que a organização do poder em mãos do Estado viria substituir-se ao entrechoque de interesses privados, habilitando seus representantes a auscultar os reclamos do conjunto da sociedade. Os escritos desses pensadores propunham uma solução alternativa à crise do poder oligárquico, ou melhor, um projeto substitutivo à falência do liberalismo inscrito na carta de 1891110.

Muitos se integraram com bastante desenvoltura ao regime autoritário que, a despeito das reformas executadas, mantinha inalterado os privilégios das classes dirigentes. Serviram ao novo regime, propondo rearranjos no sentido de manter a estrutura social. O modernismo desses intelectuais tinha um viés iluminista, vertical e centralizador, que atribuía a primazia das reformas aos condutores da experiência moderna. A modernidade estado-novista apregoada por esses intelectuais se urdiu de forma vertical e autoritária; restava à sociedade e

108 ODÁLIA, 1997, p. 150. 109 MICELI, 2001, p. 215. 110 Ibid., p. 220.

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aos grupos refratários a esse receituário se enquadrar aos ditames varguistas ou resistir na medida do possível e do permitido.