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5 AFILIAÇÃO SOCIAL: SOCIABILIDADE, ACOLHIMENTO E CONSTITUIÇÃO DE

5.2 O trote

Como discutimos no tópico anterior, a interação entre os estudantes inicia-se virtualmente, através das redes sociais. Nesse canal de comunicação eles buscam informações, tiram dúvidas sobre os processos burocráticos, perfis de professores, disciplinas etc. e também têm a possibilidade de conhecer um pouco dos colegas a partir das postagens deles nas suas respectivas páginas pessoais, como fotos, vídeos, comentários em postagens de outras pessoas etc. Também vimos como a figura do padrinho/madrinha pode desempenhar um papel importante nesse início de experiência de vida acadêmica. Mas o evento que marca a entrada desses estudantes no ensino superior e seu contato com os veteranos é o polêmico trote universitário.

Os rituais de passagem têm como principal função demarcar a aquisição de um novo status no grupo em que está inserido. No caso do trote universitário, marca o ingresso do estudante no ensino superior, mais especificamente na comunidade acadêmica universitária. Desde suas primeiras ocorrências trata-se de um rito essencialmente violento. Ainda na Idade Média, nas primeiras universidades existentes, tem-se registro de ações dos veteranos sobre os calouros, em um primeiro momento a partir de medidas de prevenção à transmissão de doenças, dada a precária higiene da época, como raspar cabelos e queimar roupas. Mas no decorrer do tempo essa relação hierárquica entre calouros e veteranos foi se conformando como prática ritualística de diferenciação entre civilizados (veteranos) e bárbaros (calouros). Segundo Soares Zuin (2011), há registros de trotes na Universidade de Heidelberg, em 1491, que os estudantes eram obrigados a beber vinho misturado com urina, linguiças recheadas de fezes, entre outras formas de humilhação. No final, os calouros deveriam jurar que reproduziriam tais práticas nos próximos calouros. Ainda segundo Soares Zuin, é possível notar nos trotes de Heindelberg a identificação dos calouros como animais irracionais e os veteranos como aqueles que os domesticam. A própria origem da palavra trote – forma de andar entre o galope e o caminhar que o cavalo aprende ao ser adestrado - indica o conteúdo desumanizador, assim também ocorre com o apelido “bixo”, utilizado para se referir ao calouro (SOARES ZUIN,2011; BANDEIRA, 2017).

No Brasil o trote está presente desde as primeiras escolas superiores, também sempre marcado pelo cometimento de atos de violência e humilhação. O primeiro registro de morte foi na escola de Direito de Olinda, em 1831 (SOARES ZUIN, 2011). Há outros tantos registros de violências cometidas ao longo da história, mas um marco é a morte do calouro de Medicina da

Universidade de São Paulo, Edison Tsung-Chi Hsueh, em 1999. No dia seguinte à recepção dos calouros, o corpo de Edison foi encontrado na piscina da universidade. Esse caso ganhou grande repercussão na opinião pública, gerando um grande debate em torno do trote, suas formas e consequências. A partir desse caso, muitas universidades começaram a coibir ou mesmo proibir a prática de trotes nos campi. Apesar disso, ainda hoje surgem denúncias de casos de trotes com ações violentas, humilhantes e/ou preconceituosas, como o caso ocorrido na Universidade Federal de Minas Gerais, em 2014, onde veteranos do curso de Direito foram acusados de racismo e apologia ao nazismo durante o trote (MENEZES, 2014).

Entre os estudantes entrevistados, o trote foi citado entre suas primeiras experiências na vida universitária. Entre os que citaram o trote enquanto uma experiência negativa ou problematizaram a forma como ocorreu, um elemento destacado no evento foi o machismo. Bandeira (2017), no artigo “Trote, assédios e violência sexual nos campi universitários do Brasil”, levanta questões a respeito das estudantes serem alvos dos trotes:

Tem-se observado que, embora as administrações universitárias tenham se movimentado, talvez não o suficiente para erradicar tais práticas, o trote continua acontecendo incessantemente, cujas formas de humilhações, violências e de preconceitos degradam a convivência universitária e inviabilizam uma sociabilidade sadia entre os/as estudantes. Mas o que mais chama atenção é a centralidade na sexualização das jovens. O corpo feminino passa a ser objeto de desejo para o escárnio. (BANDEIRA, 2017, p. 59)

A autora aponta como hipótese para as estudantes serem alvo nesse tipo de situação o fato do crescente número de estudantes do sexo feminino ocupando as cadeiras universitárias, o que ameaçaria a hegemonia profissional dos homens.

Bruna, estudante do curso de Comunicação Social destaca como o trote teve uma conotação sexual e sua reação. Ela relata a recepção dos calouros e o trote como momentos diferentes, o primeiro consistiria na apresentação dos calouros frente aos veteranos e o outro seria a parte das “brincadeiras”, mas observa-se uma percepção pouco clara sobre a ocorrência das ofensas. Em certo momento ela fala como a parte da apresentação teve conteúdo sexual e isso foi horrível, já o trote ela avaliou como tranquilo porque o tema relacionado às opressões já estava mais presente no campus, ainda assim houve brincadeiras que buscaram rebaixar o calouro em relação ao veterano.

Primeiro teve uma entrevista, que acontece na FABICO no primeiro dia de aula. Os veteranos chamam os bichos na frente, fazem perguntas e mandam fazer coisas sexuais. Fica todo mundo rindo. Eu achei aquilo horrível. Saí de lá bem assustada. Depois a gente foi para o trote, daí eu pensei: será que eu vou ou não? Aí eu disse, vou arriscar. Todo mundo diz que é um momento muito legal o trote e que tu tem que participar. O trote foi até tranquilo porque quando eu entrei a galera estava se ligando mais nessas questões de opressão, de abuso, então não rolou muito isso, mas sempre

rola umas brincadeiras de veterano com bichos, que veterano é superior. (Bruna, Comunicação Social)

Ricardo, estudante de Direito, afirma como estava com vontade de participar do trote e por isso buscou se divertir. Entretanto, o comportamento machista em algumas “brincadeiras” o incomodou e ele não quis participar, muitos colegas reclamaram. Ricardo indica assim a desaprovação de parte dos calouros em relação a forma com que o trote foi conduzido.

Eu me diverti pelo fato de estar com muita vontade, aí eu me diverti mesmo, entrei na brincadeira. Só que eu não participei dos trotes mais pesados. Desses trotes mais pesados bastante gente reclamou, principalmente de machismo. (Ricardo, Direito) Outros estudantes apontaram ter uma experiência positiva do trote e alguns não participaram. Entre os que tiveram uma experiência positiva, destaca-se o caso de Gleice, que salienta como o trote do seu curso buscou evitar práticas humilhantes e preconceituosas. Segundo ela, há duas razões para isso: uma foi a experiência do ano anterior, que foi alvo de críticas por seu conteúdo humilhante; a outra razão foi o fato de ter sido conduzido majoritariamente por meninas. Essa postura das estudantes vai ao encontro das observações de Bandeira (2017) sobre a articulação das estudantes em se organizar para combater o caráter machista dos trotes.

O trote foi tranquilo. Teve algumas festinhas, tinta, bebida, gritinho pelo campus. Até porque, a maioria das pessoas que lideraram o trote eram meninas, então o trote já foi mais feminista por isso. Mas os que tinham entrado um ano antes tinham tido um trote horrível, com humilhações. Até por isso que essas meninas resolveram não fazer isso. Eu ouvi comentários que antes da minha turma os trotes eram bem pesados. (Gleice, História)

A estudante Luna também relatou o cuidado dos veteranos do curso de Letras, seu primeiro curso antes de se transferir para Ciências Sociais, em relação à forma do trote e seu distanciamento de práticas humilhantes.

A recepção de calouros foi tranquila porque justamente os veteranos da letras buscam não fazer trotes que humilham. E foi bem depois, ninguém mais nem se lembrava, foi quem quis. (Luna, Ciências Sociais)

Nas experiências relatadas acima percebe-se essa mudança de caráter do trote, deixando de lado as ações que buscam humilhar ou violentar os calouros e os ressignificando por ritos mais humanizados de acolhida, como é o caso dos trotes solidários, aplicados em algumas instituições. Nessa acolhida, as provas aplicadas aos calouros se voltam para execução de alguma ação que ajude uma comunidade ou uma instituição social como pintura de escola, arrecadar alimentos etc. Esse movimento percebido em alguns contextos acadêmicos, mas ainda parecem ser propostas conjunturais protagonizadas por alguns estudantes que identificaram a necessidade de abandonar práticas tradicionais do trote.