• Nenhum resultado encontrado

3.3 O universo simbólico e o sagrado nas ruas

No documento Download/Open (páginas 90-93)

Ainda analisando o símbolo, segundo o pensamento de Rocher (1998), defini- lo seria o mesmo que pensar qualquer coisa que toma o lugar de outra coisa, ou que substitui e evoca uma outra coisa. O simbolismo confere o poder ao indivíduo, sobre o mundo. Tem as funções de servir de transmissor de mensagens entre as pessoas e de favorecer o sentimento de pertença a determinados grupos ou coletividades.

“Considerado como construção cognoscitiva, o universo simbólico é teórico. Tem origem em processos de reflexão subjetiva, os quais, depois da objetivação social,

conduzem ao estabelecimento de ligações explícitas entre os temas significativos que têm suas raízes nas várias instituições” (Berger e Luckmann, 1985, p. 142).

Portanto é, para o adulto de rua, difícil desfazer-se de todos os valores concebidos durante sua conformação de ser, enquanto ser, e despir-se dos modelos

simbólicos que lhe foram conferidos anteriormente quando em seu grupo ou coletividade, durante sua socialização primária (Berger e Luckmann, 1985).

Foi observado durante as entrevistas a diversidade de identidade religiosa cultural entre a população adulta de rua em Goiânia. Aspecto já observado anteriormente durante atendimento despendido a eles no HUGO - Hospital de Urgências de Goiânia - durante os últimos nove anos. É visto que o resultado das entrevistas reforça a verificação anterior de que Deus sempre está presente entre eles, mesmo que de variadas formas, na construção da identidade cultural e representação social de cada indivíduo de rua. Podendo ser observado durante suas respostas quando reportam-se a Ele:

“É tudo na vida do ser humano. É o Espírito Santo, é Jesus” (A A O S).

Depende do como você entende Deus. Para mim é soberano. Você não está falando de Jesus Cristo, não né? É Deus. Super importante na vida de todo mundo. Devemos seguir, e sempre agradecer e nunca pedir” (A C F).

Dentre a população adulta de rua e seus elementos culturais religiosos em sua diversidade, até hoje não se tem conhecimento de uma organização para celebração de rituais ou festas que representassem essa diversidade de crenças entre ela. Há, porém, os que costumam ir a Centros Espíritas, Igrejas Católicas ou Evangélicas e participam de celebrações ou rituais. Às vezes não se satisfazem e se sentem excluídos por não haver identificação com o simbólico. As normas, valores e exigências socioeconômicas dessas instituições tornam-se barreiras intransponíveis:

“A religião é boa. Hoje em dia os políticos tão dominando e na própria Igreja de crente somos excluídos. Eles dão dinheiro para Igreja e não pensam em ajudar ninguém. A religião virou comércio. Peço um prato de comida. De cem, dez dá. Pensam que somos

vagabundos, que dormimos a noite toda, mas não é assim. Alguns que tão na rua são vagabundos mesmo. Matam e fogem. Mas não são todos. São gente do mesmo jeito. Não é lixo. Em Brasília, soltaram quatrocentas pessoas do presídio para viver nas ruas. Vou na Assembléia de Deus, Católica. Gosto de ouvir o culto de crente, mas eles viraram comércio” (M S S).

“A gente tem que buscar e alguém tem que ajudar. Os ricos tão cercando Deus e não dá [espaço] pra gente” (M SS) .

As características mentais de construção de mundo religioso fazem parte de cada indivíduo, mas na rua não há o espaço para o coletivo. O espaço sagrado criado por eles ou entre eles, embora já tenha sido levado até eles, em celebrações eucarísticas da Igreja Católica, iniciativa da Pastoral dos Migrantes e cultos evangélicos, como a história do casamento em praça pública - Praça do Trabalhador - entre um casal de ex-adultos de rua, que pode ser conferido em anexo M.

O espaço sagrado, por não fazer parte de seu mundo dos adultos de rua, movidos pelo instinto religioso, crença, fé e devoção em Deus o buscam por vezes na instituição religiosa. O intuito parece o de reviver no seu interior os aspectos do sagrado. E comum ouvir das pessoas que estão nas ruas a importância de crer em algo e mesmo a importância de se ter alguma religião, embora demonstrem não criar laços duradouros com nenhuma:

“É necessário. A gente tem que ter alguma religião. Tem que crer em alguma coisa, né? Eu vou sempre lá no Lar de Jesus, Espírita. [Setor Bueno]” (S C S).

“Acho boa. A palavra de Deus é boa. Freqüentava Casa de Recuperação Metamorfose24, lá rezava três vezes ao dia. Antes de ontem entrei em uma Igreja. É a intuição que me fez entrar. Sair do ruim e entrar no bom” (C N R ).

24 Casa de Recuperação Metamorfose – Casa evangélica coordenada pela Pastora Sônia, que já

viveu muitos anos na rua. Hoje se dedica a receber e a recuperar dependentes químicos que fazem parte da população adulta de rua de Goiânia.

Sair do ruim - profano - entrar no bom - sagrado - é analisado em Eliade (1992) ao afirmar que o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo. O sagrado se manifesta na hierofania, que é a revelação de uma realidade que não faz parte do mundo natural, profano.

Há uma busca constante no homem religioso das sociedades arcaicas em manter-se em um universo sagrado. E, nesta busca, em permanecer nesta atmosfera sagrada, o homem religioso define que o espaço não é homogêneo e, para distinguir o local sagrado do profano, ocorre a teofania, que é a consagração de um determinado local que organiza e estabelece a ordem cósmica (cosmogonia). No local sagrado o mundo profano é transcendido (Eliade, 1992).

O sistema de mundo das sociedades tradicionais constitui a socialização de um tempo e espaço sagrados no qual há comunicação entre a terra e o céu. Essa terra, por sua vez, torna-se santa pois está mais próxima ao céu. Seria este local o centro do mundo (Eliade, 1992).

O homem, na ânsia de viver mais tempo em uma atmosfera sagrada, organiza sua vida o mais perto possível do centro do mundo, organizando sua vida neste contexto de mundo (cosmos) mais organizado (Eliade, 1992).

No documento Download/Open (páginas 90-93)