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2 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.815: UM APANHADO

2.2. As fundamentações jurídico-ideológicas invocadas na ADI 4.815

2.2.2 O viés liberal: prevalência da inviolabilidade da vida privada

A despeito de grande parte da doutrina entender que não existe relação de hierarquia entre os direitos fundamentais em comento, há uma série de juristas que defendem posições diversas, as quais merecem ser analisadas.

Muito se critica a exposição do núcleo interno mais profundo do indivíduo – a sua intimidade – em troca da obtenção de lucro econômico por parte dos autores e das editoras de livros. Para Claudio Godoy:

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BARROSO, Luís Roberto. Constituição e código civil: colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa, 2005, p. 4.

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BARCELLOS, Ana Paula de. Intimidade e pessoas notórias. Liberdades de expressão e de informação e biografias. Conflito entre direitos fundamentais. Ponderação. Caso concreto e acesso à justiça. Tutelas específica e indenizatória, p. 3.

Mais ainda, e de outra parte, igualmente não se concebe que direitos da personalidade, mesmo de pessoas públicas e notórias, possam ser afrontados para fins exclusivamente comerciais. E pelo simples fato de que, afinal, nessas hipóteses desvirtua-se qualquer interesse jornalístico para dar lugar ao interesse publicitário, o que não se justifica. Não há, enfim, nesses casos, interesse público que permita a vulneração de direitos da personalidade, mesmo daquelas pessoas públicas ou notórias. Isso inclusive quando o fato noticiado seja verdadeiro.63

Merlin Clève questiona a legitimidade das ingerências alheias e o impacto que tal investidura gera sobre a vida privada dos indivíduos, partindo-se do pressuposto que a autonomia privada também funciona como base para a realização da dignidade humana em sua completude:

Quer-se afirmar, com isso, que na ordem constitucional brasileira, como de resto em outras ordens constitucionais presididas por análoga principiologia, a dignidade da pessoa humana não se afirma nem se sustenta, na sua inteireza, sem o apoio da noção de autonomia (privada e pública). A pessoa humana tutelada pela Constituição substancia, portanto, um ser capaz de decidir a propósito de seu destino. O papel do Estado-legislador, então, não é o de suprimir a esfera de decisão do cidadão, mesmo por meio de políticas dotadas de inequívoco valor comunitário, comprometidas com o interesse público na sua melhor conformação, sendo, antes, o de dotar os cidadãos das condições necessárias para bem decidir.64

Segundo estes juristas, o exercício, por parte de terceiros, de determinadas faculdades relativas aos direitos da personalidade deve atentar para a autonomia privada, sendo vedado que se exceda os limites impostos pelo titular das prerrogativas em questão. Isto significa dizer que o sujeito possui o condão de autorizar, ou não, a participação de terceiros naquilo que envolva seus direitos de personalidade, em razão do princípio da autonomia privada.

Defende Roxana Borges:

Os valores vigentes nesta sociedade são vários e contraditórios entre si. Há um relativismo social vigente, assim como um relativismo cultural e axiológico. Numa sociedade como essa, a garantia da sobrevivência de seus indivíduos reside na tolerância e na alteridade, não na eleição, por poucos (ou muitos, embora não todos), de uma moral superior, o que pode levar à justificação de regimes totalitários violadores dos direitos de quem não se identifica com as concepções de mundo vigentes nos círculos de poder.65

Para a autora, não se mostra plausível, quiçá coerente com a ordem constitucional brasileira, permitir que o Direito ignore o elemento volitivo próprio do ser humano

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GODOY, Cláudio Luiz Bueno. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade, 2008, p. 82-83.

64

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Liberdade de expressão, de informação e propaganda comercial, 2005, p. 216.

65

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada, 2005, p. 142.

individualmente considerado, em toda a sua personalidade, para submetê-lo ao interesse de uma maioria tão contraditoriamente diversificada, visto que inserida em uma sociedade essencialmente plural em seus valores66:

Portanto, o verdadeiro papel do princípio da dignidade humana em nosso ordenamento jurídico é: garantir a emancipação do homem, através do respeito por suas diferenças, do respeito por suas características, por sua consciência e sua faculdade de se autodeterminar conforme seu próprio sentimento de dignidade.67

Percebe-se, assim, que a justificativa da prevalência do interesse público em detrimento das escolhas individuais privadas é alvo de inúmeras críticas meio à comunidade jurídica, haja vista a proteção igualmente atribuída pela Constituição à personalidade da pessoa humana em suas mais variadas dimensões. Neste sentido, Daniel Sarmento esclarece:

Supor que as liberdades humanas só são protegidas na medida em que seu exercício atender a interesses coletivos equivale, no nosso entendimento, a recair num coletivismo transpersonalista, que não leva a sério que é o Homem ‘a medida de todas as coisas’ [...]. Num sistema constitucional antropocêntrico, fundado na dignidade da pessoa humana, não parece legítimo resolver possíveis tensões entre a liberdade existencial da pessoa e os interesses da coletividade sempre em favor dos segundos.68

Por fim, cite-se o Enunciado 531, aprovado na VI Jornada de Direito Civil, cujo teor reza que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. Esta previsão consolida, para muitos juristas, a necessidade de prévia autorização para publicação de biografias; de acordo com o invocado direito ao esquecimento, cada indivíduo detém a prerrogativa de consentir (ou não) que determinado acontecimento, ocorrido em seu passado e capaz de lhe incutir transtornos ou constrangimentos, seja divulgado ao público. Segundo Claudio Godoy:

Mesmo o fato específico, por força do qual a pessoa comum ganha notoriedade, só pode ser objeto de revelação, pelo interesse que desperta, enquanto ainda perdurar esse interesse. Em diversos termos, um fato, envolvendo pessoa comum, que tenha

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A égide liberal que permeia os ensinamentos de Roxana Borges (p. 145) é revelada, na sua maior clareza, em passagem digna de reprodução: “Não se pode admitir que, ainda, hoje, embora sob nova roupagem, não se conceba a pessoa como sujeito, como fim em si mesma. Não é admissível, após tantos anos de cristianismo, de filosofia kantiana e de doutrina tomista, das contribuições do iluminismo e das experiências dos Estados totalitários, que se utilize a defesa da “dignidade da pessoa humana” para oprimir um indivíduo ou o que este concebe como sua identidade ou sua dignidade, em nome de um bem comum superior ou de uma razão superior ou de uma moral oficial ou social. O indivíduo não pode ser tomado como meio para o bem comum, muito menos sua dignidade ou seu sentimento próprio de dignidade, por maior que seja a conveniência de regras de solidariedade. A pessoa não pode ser instrumentalizada, mesmo em prol de certo bem comum”.

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Ibidem, p. 146.

68

SARMENTO, 2004 apud MORAES, Maria Celina Bodin de. Ampliando os direitos da personalidade. In: 20 anos da Constituição Brasileira, 2009, p. 36.

social relevância logo que acontece, não induz, por causa disso, autorização para reproduções ilimitadas, a qualquer tempo, sem autorização do interessado.69