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Capítulo 2 – Hábitos orais, alterações orofaciais e perturbações da fala na criança

3.1. Objetivos

3.1.1. Contextualização

Este estudo ocorre na sequência da nossa Dissertação de Mestrado em Activação do

Desenvolvimento Psicológico, intitulada Perturbações da Linguagem na Criança: caracterização e retrato-tipo, apresentada na Universidade de Aveiro, em 2008, sob a

orientação do Professor Carlos Fernandes da Silva (Costa, 2008). Este estudo foi posteriormente adaptado e publicado em livro (Andrade, 2008). Neste sentido, iniciamos a apresentação deste capítulo com algumas notas de síntese dos resultados. A dissertação de mestrado foi iniciada em 2007, com o objetivo geral de analisar as perturbações da linguagem na criança, em particular identificar e examinar algumas das variáveis de ordem pessoal, familiar e contextual que lhes estivessem associadas e que contribuíssem para a construção do respetivo retrato-tipo.

Neste contexto, foram analisadas variadas facetas dos problemas de linguagem da criança, tais como: questões da comunicação, linguagem e fala e seus processos de desenvolvimento; tipos de perturbações da linguagem; diversos aspetos (fisiológicos, genéticos, neurológicos, de saúde, do contexto familiar e socioculturais) que

constituíssem potenciais fatores de risco. Procurou-se identificar algumas características que, pela sua prevalência, contribuíssem para a construção de um retrato-tipo da criança com essas perturbações.

Adotou-se uma metodologia quantitativa, baseada na análise de um corpus documental constituído por 630 fichas de registo individual (anamnese), correspondentes a 630 crianças, entre os 2 e os 9 anos, avaliadas em consulta de terapia da fala. Estes participantes apresentavam perturbações da linguagem com diagnóstico realizado entre 1987 e 2006. Este corpus documental era propriedade da própria autora que, enquanto terapeuta da fala, o guardou ao longo da sua atividade profissional.

Os principais resultados permitiram esboçar alguns traços do retrato–tipo das crianças com perturbações da linguagem:

 A criança é do sexo masculino: 68,4% dos participantes eram do sexo masculino; esta tendência manteve-se nos cinco tipos de perturbação analisadas, sendo os valores mais elevados nas perturbações da linguagem expressiva e na gaguez;

 A criança tem antecedentes familiares que manifestam este tipo de problemas: 52,9% dos membros da amostra apresentavam algum ascendente com problemas de linguagem; esta frequência observou-se nas várias perturbações, sendo os valores mais elevados na perturbação fonológica e na gaguez;

 A criança com problemas de linguagem tende a ser a mais nova na fratria: 40,6% dos participantes com perturbações da linguagem são o “irmão mais novo”, 17,5% são o “irmão mais velho” e 31,4% são “filhos únicos”;

 A criança manteve hábitos orais prolongados do uso da chupeta, do biberão e/ou do chuchar no dedo: 70,9% das crianças mantiveram estes hábitos orais que se prolongaram para além dos 2 anos de idade.

Esta última característica espoletou a nossa curiosidade, ou seja, os hábitos orais (uso da chupeta, do biberão e do chuchar no dedo) emergiam associados às perturbações da linguagem (Tabela 1).

Tabela 1. Perturbações da fala versus uso de chupeta/biberão/dedo Perturbação Total Chupeta/ Biberão/Dedo Perturbação da Linguagem Expressiva Perturbação Mista da Linguagem Recetiva/ Expressiva Perturbação Fonológica Gaguez Perturbação da Comunicação sem outra especificação < 24 meses n 20 33 104 17 3 177 % 40,0% 37,5% 24,8% 42,5% 25,0% 29,1% ≥ 24 meses n 30 55 315 23 9 432 % 60,0% 62,5% 75,2% 57,5% 75,0% 70,9% Total 50 88 419 40 12 609 Fonte: Andrade (2008: 84)

Os dados apresentados na Tabela 1 expressam percentagens elevadas quanto à presença deste tipo de hábito a partir dos 2 anos de idade nas crianças da nossa amostra com patologia: 70,9%. Se procedermos a esta análise, por tipo de perturbação, a apreciação anterior mantém-se: à exceção da Gaguez (mesmo aqui aproxima-se desse valor), todas as outras perturbações ultrapassam os 60% quanto ao uso da chupeta, biberão ou dedo a partir dos 2 anos de idade. Salientamos que o grupo mais numeroso (Perturbação Fonológica: 419 participantes) apresenta nesta variável a percentagem mais elevada: 75,2%. Na nossa prática clínica deparamo-nos diariamente com este tipo de comportamento, pois são inúmeras as crianças com problemas de linguagem com idades superiores a 3 anos que exibem estes hábitos orais (Andrade, 2008: 84).

Nas considerações finais desse estudo indicámos este domínio como área de pesquisa futura, já que os dados sugeriam que o uso prolongado da chupeta (e de outros objetos de substituição) é fator associado às perturbações da linguagem (apesar de não conhecermos dados estatísticos nacionais sobre os hábitos orais na população portuguesa). Aprofundar o conhecimento neste âmbito, por exemplo, em termos das implicações em vários domínios da linguagem, do desenvolvimento das estruturas orofaciais, dos problemas de ortodontia, das questões emocionais associadas foi considerado relevante (Andrade, 2008: 103).

O estudo dos hábitos orais e a sua relação com as alterações orofaciais e com as perturbações da linguagem da criança surgiu, assim, como problemática central desta tese.

3.1.2. Problema e objetivos

O problema deste estudo centra-se nas perturbações da linguagem na criança, para obter estimativas de prevalência e analisar a relação entre determinados hábitos orais, as alterações orofaciais e os problemas de fala. Assenta no pressuposto sustentado pela literatura (conforme descrevemos no Capítulo 2), pela investigação que realizámos (Andrade, 2008) e pela nossa experiência profissional segundo o qual determinados hábitos orais da criança interferem no crescimento natural das estruturas orofaciais causando dificuldades e perturbações no desenvolvimento da linguagem e da fala. Neste sentido, o objetivo geral desta investigação é: obter estimativas de prevalência

das perturbações da linguagem da criança, com idade compreendida entre os 3 e os 9 anos, e identificar e examinar as relações entre hábitos orais, alterações orofaciais e perturbações na fala.

Figura 1. Modelo global de investigação

A Figura 1, embora compartimentada, estática e não denotando as articulações, as retroatividades e as sinergias, procura esquematizar as principais variáveis deste estudo. Ou seja, pretendemos, com base na caracterização das crianças da amostra, identificar: (i) os hábitos orais e sua duração, (ii) o tipo de respiração, (iii) as alterações orofaciais e (iv) a relação entre estas variáveis e as perturbações da linguagem manifestadas pelas crianças.

Com o objetivo de assegurar que os hábitos orais, alterações orofaciais e respiração são preditivos das perturbações da fala, recorreremos a um grupo de controlo com crianças sem patologia da fala que serão caracterizadas relativamente às três variáveis mencionadas (hábitos orais, respiração e alterações orofaciais).

Daqui decorrem os seguintes objetivos específicos:

 Analisar características sociais e familiares das crianças (3 a 9 anos de idade) com perturbações da linguagem, diagnosticadas em consulta de terapia da fala, designadamente: sexo, idade, escolarização, número de irmãos e posição na fratria, escolaridade e profissão dos pais, tipo de perturbação da linguagem, antecedentes familiares;

 Identificar a presença e duração de alguns hábitos orais no comportamento destas crianças: aleitamento materno, uso da chupeta, uso do biberão, sucção digital, sucção lingual e onicofagia;

 Identificar alterações orofaciais nas crianças, designadamente ao nível da oclusão dentária, lábios, língua, palato e freio lingual (curto);

 Analisar a associação entre presença e duração dos hábitos orais e a existência de alterações orofaciais;

 Identificar o tipo de respiração (oral, nasal, mista) apresentado pelas crianças, considerando o tipo de alteração orofacial;

 Analisar a associação entre alterações orofaciais e perturbações da linguagem e da fala;

 Comparar o grupo de casos clínicos com o grupo de controlo relativamente aos hábitos orais, respiração e alterações orofaciais.

Com estes objetivos pretende-se contribuir para uma melhor compreensão da importância dos hábitos orais enquanto potenciais fatores de risco do desenvolvimento da linguagem da criança e fornecer elementos de aplicabilidade no diagnóstico, tratamento e prevenção das perturbações da linguagem e da fala das crianças.