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A reforma de 2011 não é fruto do pensamento de nossa época. Muito pelo contrário, esta se deu de maneira tardia em dois níveis: primeiramente, por tratar-se de projeto de lei de 2001, que somente alcançou aprovação uma década depois. Em segundo lugar, porque mesmo

em 2001, tais inovações já eram tardias, por intentarem adequação ao texto constitucional que já vigia há mais de uma década. Nesse interstício, pode-se dizer, inclusive, que o texto legal desatualizou-se antes mesmo de começar a viger. A própria Constituição Federal já sofreu diversas emendas desde 1988, o que gera amplos reflexos na validade de todo o ordenamento jurídico.

A burocracia e morosidade legislativa e a falta de sistematização das reformas contribuem para uma verdadeira desorganização da nossa legislação codificada. Ao alterarem- se apenas partes pontuais da Lei, deixando outras intactas, é comum que passem a transparecer diversas incongruências sistemáticas no trato dos diversos institutos. Sobre o assunto, Aury Lopes Junior afirma:

O problema das reformas pontuais, sem desmerecer a imensa qualidade do trabalho realizado pela comissão de juristas, é que elas geram inconsistência sistêmica, transformando o CPP, cada vez mais, numa imensa colcha de retalhos. Basta ver que modificaram todos os procedimentos em 2008 e não tocaram no capítulo das nulidades... gerando graves paradoxos25.

Nesta diapasão, desde 2008, foi estabelecida uma comissão com o intuito da criação de um Código de Processo Penal inteiramente novo, mais adequada à nova realidade constitucional brasileira, e livre das incoerências e incompatibilidades que foram surgindo no Código de Processo Penal de 1941 depois de suas incontáveis reformas. Tal esforço, solidificado na forma do Projeto de Lei do Senado nº 156 de 2009, continua em tramitação até hoje. Ao invés de focar suas atenções na edição e aprovação deste projeto, no entanto, o nosso poder legislativo preferiu investir em iniciativas mais simples e pontuais, com a aprovação do Projeto de Lei 4208 de 2001, agora conhecido como Lei Nº 12.403/2011. Passemos, então, para a análise das motivações políticas envolvidas nesta atuação legislativa.

É fato que o sistema carcerário brasileiro encontra-se em estado de plena decadência. Segundo pesquisa realizada pela organização não governamental inglesa International Centre

for Prison Studies (ICPS), o Brasil ocupa a quarta posição entre os países com maior

população carcerária do mundo, contando com um total de cerca de 500 mil presos26. Em 2010, o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontava que cerca de 45% da

25 LOPES JUNIOR, op. cit, p.1.

26 KAWAGUTI, Luis. Brasil tem 4ª maior população carcerária do mundo e déficit de 200 mil vagas.

Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120529_presos_onu_lk.shtml>. Acesso em 08 de janeiro de 2013.

população carcerária brasileira era composta por presos provisórios27. Além disso, é conhecimento comum que a maior parte dos presídios brasileiros sofrem de problemas de infraestrutura, e que há um déficit de vagas no sistema prisional. Tal realidade representa uma afronta direta aos direitos humanos, defendidos, inclusive e em especial medida, pelas organizações de direito internacional público. Por conta das pressões internacionais, e até mesmo internas, a classe política brasileira se vê encurralada: se por um lado, a criminalidade se mostra crescente, por outro os investimentos públicos no sistema prisional brasileiro não são capazes de suprir à demanda. Tudo isso é reflexo de diversas questões econômicas, sociais e culturais. A deficiência de investimento público em áreas como educação, moradia, cultura e lazer, bem como as fortes desigualdades sociais e econômicas características da sociedade brasileira e, em geral, a ineficiência das políticas públicas mostram-se como fatores preponderantes para o aumento vertiginoso da criminalidade e, com isso, para o declínio do sistema prisional brasileiro.

Ao invés de concentrarem-se os esforços em medidas de maior abrangência, parece- nos que os interesses políticos envolvidos na tramitação do que hoje é a Lei Nº 12.403/2011 buscaram uma solução mais fácil, mais imediata e, inclusive, mais barata. Apesar de imbuídos de um discurso constitucionalista e de defesa dos direitos humanos, percebemos que a intenção legislativa mais assemelha-se a um paliativo do que a uma prudente tentativa de solucionar uma situação que já é insustentável.

Neste contexto, sempre se discute sobre o papel do direito penal (e, consequentemente, do processo penal) na diminuição da criminalidade. Muitos estudiosos defendem que a alteração da legislação em matéria criminal não tem o condão de, por si só, diminuir o índice de criminalidade no Brasil, uma vez que a criminalidade seria apenas sintoma de outros problemas mais profundos de ordem social, problemas estes que devem ser solucionados não por meio de mera alteração dos diplomas legais, mas sim com intensa modificação da estrutura social e econômica do país. Apesar da utilização deste argumento ser mais comum quando em contrariedade a qualquer iniciativa no sentido da intensificação do rigor da legislação penal, pensamos que esta mesma linha de raciocínio pode também ser

27 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2010.

Disponível em: <http://www2.forumseguranca.org.br/sites/ default/files/anuario2010FINALbaixa.pdf>. Acesso em 08 de janeiro de 2013.

utilizada na via contrária. A Lei Nº 12.403/2011 objetivou a redução da população carcerária brasileira, sobretudo no que diz respeito aos presos provisórios. Mas há de se questionar se tal iniciativa legislativa seria o meio mais adequado para a solução do problema.

Não estamos a defender, contudo, que a nova sistemática das medidas cautelares trazida pela Lei Nº 12.403/2011 aponte um retrocesso, ou que esteja em desacordo com a realidade constitucional que vivenciamos. Pelo contrário: a maior parte das alterações, de fato, trouxe maior conformidade do texto legal com os preceitos constitucionais de respeito ao estado de inocência e à dignidade da pessoa humana. Decerto que o caminho para a perfeita harmonização entre a aplicação da legislação infraconstitucional e o respeito aos preceitos constitucionais não é algo que se traça da noite para o dia, mas sim um ideal que os operadores do direito, cotidianamente, devem buscar em sua atuação. A dificuldade está, no entanto, em identificar se a reforma de 2011 representou um verdadeiro passo rumo à efetiva constitucionalização da atuação estatal em matéria criminal, ou se apenas teve o intuito de apresentar tímidos avanços para silenciar as pressões políticas e atrasar, o quanto for possível, tal realidade.