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Como já foi dito antes, a investigação que está sendo presentemente relatada não pode ser tomada como avaliação de efetividade ou de eficácia do conjunto de ações que caracterizam o Programa Madrugada Viva, executado no estado do Espírito Santo. De certa forma, seria discutível a viabilidade de se proceder a tal avaliação, considerando que o referido Programa sofreu diversas modificações em uma década de existência, o que dificulta qualquer aferição razoavelmente precisa, sendo que a mais recente dessas mudanças descartou até mesmo o nome “Madrugada Vida”.

Algumas dessas mudanças já foram mencionadas na parte introdutória da tese. A ocorrência de casos freqüentes de acidentes de trânsito com mortes no início da década de 2000, muitos deles envolvendo jovens de classe média em deslocamento após o encerramento de eventos de lazer durante a madrugada, gerou grande comoção e forte exploração, muitas vezes de natureza sensacionalista, por parte dos meios de comunicação. Vale lembrar que se trata de momento em que muitas atividades de lazer destinadas, principalmente, ao público jovem de classe média passaram a ocorrer em horários cada vez mais deslocados para o final das noites e início das madrugadas, em localizações no entorno dos centros urbanos, com presença reduzida de fiscalização oficial e garantia de segurança fornecida pelos próprios organizadores, exigindo deslocamento em veículos particulares, até mesmo pela inexistência de transporte coletivo para atendimento de tal tipo de demanda. Essas atividades foram sempre patrocinadas por fabricantes de bebidas alcoólicas e não era incomum que a

112 aquisição dos ingressos desse direito ao livre acesso à bebida alcoólica, ainda que fosse evidente que muitos dos participantes tinham menos de 18 anos.

É razoável pensar que esses grandes eventos, fortemente propagados pelos meios de comunicação de massa, tiveram papel importante no sentido de reforçar ainda mais concepções pré-existentes e culturalmente sancionadas que consolidaram no país a idéia de que a associação entre diversão/alegria/prazer e bebida alcoólica é indispensável e natural. Deve ficar registrado que a classe artística jamais esboçou qualquer questionamento sobre o modelo de lazer posto em prática e oferecido aos jovens. É evidente que em tal contexto as condições propícias para que fossem negligenciados os riscos da associação entre ingerir bebida alcoólica antes de dirigir estavam criadas.

Pressionado pelas circunstâncias, o governo estadual criou o Programa Madrugada Viva em 2003, como tentativa de reduzir ocorrências de acidentes de trânsito relacionados ao consumo abusivo de bebida alcoólica. De início as ações caracterizavam-se como informativas ou educativas. Passaram a ter caráter punitivo em 2005, com justificativa apoiada no Código de Trânsito Brasileiro, mas sem suporte de qualquer lei específica estabelecida em nível nacional. Em tal momento passou a ser utilizado um modelo de bafômetro descartável que logo foi objeto de contestação por parte de defensores de motoristas flagrados em estado de embriaguez.

Em 2008 foi promulgada lei que tipificava como crime a condução de veículos sob efeito de bebidas alcoólicas e em tal ocasião a fiscalização já contava

113 com modelo de bafômetro que atendia normas estabelecidas pelo órgão nacional competente para fazê-lo. Houve reação inicial bastante positiva de setores da população, assim como de parte dos meios de comunicação, que produziram reportagens mostrando que poucos argumentavam que não há risco de dirigir após ingestão de bebida alcoólica, além de reportagens que exibiam condutores flagrados embriagados e que reagiam de forma bizarra à abordagem. É sempre importante assinalar que muitos desses flagrantes envolviam indivíduos da classe média ou de classe de alta renda, uma vez que são os mais prováveis condutores de veículos privados utilizados em associação com atividades de lazer. No caso, por exemplo, da cidade do Rio de Janeiro, que é especialmente importante pela visibilidade que têm os fatos ali ocorridos, os flagrados em situação irregular por vezes eram pessoas com vida pública – artistas de televisão, políticos, jogadores de futebol – representantes de grupos de alta renda que mantêm relações complexas com os veículos de comunicação de massa de maior prestígio, portando uma condição que poderia ser identificada pelo neologismo “classe mídia”. Porém, é claro que indivíduos de renda mais elevada têm acesso a formas de reação em benefício próprio, e tal possibilidade não tardou a ser acionada. A obrigatoriedade de o motorista submeter-se ao teste do bafômetro foi questionada na justiça com o argumento de que ninguém está obrigado a produzir provas que o incriminem, argumento ao qual os veículos de comunicação aderiram prontamente, resultando daí dificuldades evidentes ao trabalho de fiscalização.

Ao final de 2012 foi aprovada nova legislação que, mesmo mantendo a não obrigatoriedade do condutor submeter-se ao exame do bafômetro, ampliou de

114 forma expressiva o valor da multa a ser aplicada aos motoristas que estivessem sob efeito de bebida alcoólica, estabeleceu que o estado de embriaguez do motorista (ou de estar sob efeito de drogas ilícitas) também pode ser caracterizado pelas autoridades a partir de constatação de sinais e imagens observados ou registrados em vídeo e fotografia, sendo aceitáveis ainda depoimentos e provas testemunhais que comprovem que o motorista não está apto a dirigir. Essa nova legislação, ainda muito recente, está sob discussão, tendo suscitado tanto reações positivas no sentido de que ela favorecerá a retirada de mais motoristas alcoolizados do trânsito, como reações de desestímulo pelo fato de que a lei manteve imprecisões que serão exploradas por advogados de motoristas embriagados para inocentá-los. O presente texto retornará a essa controvérsia em sua parte final.

Apresentado tal conjunto de considerações passa-se à explicitação dos objetivos do estudo.

O objetivo central é investigar como pode ser caracterizado o contexto atual no qual sobrevive o Programa Juntos pela Vida a partir de informações colhidas com três grupos de pessoas que constituem informantes relevantes para o tema em questão. Quais afirmações seguras são possíveis fazer sobre reflexos comportamentais e culturais das práticas adotadas pelo Programa Juntos pela Vida e sobre quais possibilidades futuras, em curto e em médio prazo, há indícios disponíveis, a partir dos dados obtidos com os grupos de colaboradores acima referidos?

115 Um desses grupos é o dos executores (grupo 02) das ações de fiscalização e repressão que são parte essencial do Programa Juntos pela Vida. Interessa saber deles como descrevem seu trabalho, o que apontam como realizações importantes do Programa e também como dificuldades para o seu adequado desenvolvimento. Interessa saber também como avaliam o papel dos meios de comunicação em sua relação com o Programa e como percebem a adequação e as limitações da legislação que lhe dá suporte. Interessa ainda conhecer as eventuais sugestões de aprimoramento que tenham a apresentar e as justificativas que as embasam.

Quando o Programa Madrugada Viva passou a ser rotulado como “Juntos pela Vida”, algumas mudanças marcantes puderam ser identificadas. Uma delas é a separação física de blitz policial e blitz educativa. Se no Programa Madrugada Viva, o motorista cujo exame de alcoolemia resultava negativo era encaminhado para a parte educativa para recebimento de brindes e panfletos educativos, no Programa Juntos pela Vida, isso não ocorre. Uma vez liberado pelo etilômetro, o condutor é liberado para seguir seu trajeto. A parte educativa teve sua caracterização alterada no Programa Juntos pela Vida, tendo sido, assim, desvinculada da ação fiscalizatória. Nos dias de blitz os profissionais que atuam na parte educativa ficam agora em locais separados dos policiais militares, passando de bar em bar, alertando os motoristas sobre os riscos de beber e dirigir.

O segundo grupo de colaboradores (grupo 03) é o que inclui jovens habilitados a dirigir. Trata-se de público especialmente interessante por dois

116 motivos principais: a) é o público alvo preferencial do antigo Programa Madrugada Viva e atual Juntos pela Vida até mesmo por estar super-representado no conjunto de condutores que dirigem durante a madrugada; b) é o público com maior potencial de contribuir para a geração de uma nova postura cultural de recusa à associação entre ingestão de bebida alcoólica e condução de veículos no caso de haver convencimento sobre a importância social dessa nova postura que, em sendo assim, teria grande chance de difundir-se e se consolidar.

Interessa saber desse grupo como o Programa Madrugada Viva / Juntos pela Vida17 afetou suas ações e as de seus amigos e amigas (mudança de comportamento, estratégias grupais de adaptação à exigência legal, estratégias de burla) e qual é sua avaliação das mudanças percebidas, ou seja, se há compreensão favorável ou desfavorável aos princípios que presidem a decisão de criar um Programa como o Madrugada Viva/Juntos pela Vida. Interessa também conhecer suas críticas à forma como as ações policiais são realizadas e suas eventuais sugestões para o aprimoramento do Programa. Interessa adicionalmente investigar se a noção de comportamento de risco é mencionada como elemento que consideram ao falarem sobre a prática de ingerir bebida alcoólica e dirigir a seguir, ou se manifestam convicção de que há controle eficiente por parte de quem adota tal prática, resultando daí a fiscalização ser vista como ingerência inadmissível à garantia de privacidade. Mais ainda, interessa verificar se e como os entrevistados fornecem indicações de que têm consciência

17 Foi mantida a nomenclatura Madrugada Viva/Juntos pela Vida, porque no pré-teste aplicado no

117 de estar em jogo um contexto no qual está em questão a articulação entre interesse público e privado e os limites implicados em tal articulação.

A participação do terceiro grupo (que na verdade é o grupo 01, conforme “Procedimentos Metodológicos”) de colaboradores no presente estudo é um tanto diferenciada das anteriores. Deles não foram obtidos dados a serem submetidos ao mesmo tipo de análise dos dados proporcionados pelos integrantes dos demais grupos. Esse grupo é constituído por gestores, ou seja, profissionais que contribuíram para o planejamento, a implantação e o acompanhamento do Programa Madrugada Viva. Suas entrevistas representaram grande contribuição como subsídios para ampliar o conhecimento sobre o Programa e sua lógica, além de fornecerem parâmetros para ajustes no projeto e mesmo para a interpretação de parte dos resultados obtidos com os demais participantes do estudo. Como se verá suas entrevistas não foram tratadas como resultados do estudo, mas estarão presentes em diversos momentos como contribuição para a análise e a discussão do conjunto de material coletado.

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