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3. ESTORVO

3.1. ESTORVO, A OBRA DE CHICO BUARQUE DE HOLLANDA

3.1.2. A obra

Ao ler o romance Estorvo (1991), a primeira pergunta é: Que é estorvo? O próprio romance, como uma espécie de metalinguagem, oferece-nos um amontoado de sinônimos para tentar nos guiar no universo caótico do narrador-personagem “Eu”. Vejamos o que diz o romance sobre este vocábulo: “estorvo, estorvar, exturbare, distúrbio, perturbação, torvação, turva, torvelinho, turbulência, turbilhão, trovão, trouble, trápola, atropelo, tropel, torpor, estupor, estropiar, estrupício, estrovenga, estorvo” (BUARQUE, 1991, p. 9).

Estorvo traz em sua composição o sujeito contemporâneo, que não consegue

compreender a experiência como totalidade de sentido, e, assim, vê tudo fragmentado. Apresenta a (re) significação do corpo como espaço da peregrinação na infrutífera busca do relacionamento humano, e de sua identidade, mas que sempre vê dissolvido no mundo o espaço urbano desconhecido.

A referida obra tem uma técnica narrativa que se caracteriza pela dificuldade de construir uma interpretação romanesca nos moldes do romance tradicional, gerando hoje como consequência uma narrativa que podemos chamar de esquizofrênica, mas que não podemos considerar como algo novo, todavia uma forma de expressar o conhecimento do autor sobre grandes escritores, como Kafka e sua metamorfose; João Gilberto Noll e suas narrativas psicológicas e o cenário urbano e o clima turbulento da obra Zero, de Inácio de Loyola Brandão.

O romance está dividido em onze capítulos, os quais não são interligados sequencialmente, o que nos possibilita lê-lo de forma aleatória, como se cada capítulo fosse independente e como se fossem colocados em um espaço diferente a cada capítulo. A estrutura não-linear do enredo traz uma narrativa psicológica e circular, cujo fluxo se dá não apenas em cima dos fatos, mas sobre e abaixo deles, ou seja, o narrador não conta apenas o que vive ou viveu, confabula, imagina e relata essas confabulações, essas imaginações (como no momento em que imagina a morte da mãe, asfixiada pelo gás). Está sempre construindo hipóteses, como quando tenta descobrir quem é o homem que o aguarda à frente do olho mágico. Ele foge como se desejasse resgatar algum projeto, mas não chega a nenhum lugar, “termina dentro de um círculo vicioso cujo núcleo é tão forte que ele não consegue mais escapulir”13. Observe-se que a personagem aparece em constante movimento, revelando “a

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http://litebrasil.blogspot.com.br/2007/10/uma-leitura-de-estorvo-livro-de-chico.html.Acesso em 10 de agosto de 2011.

imobilidade e a impossibilidade de reagir a esse mundo”14 Ele (como Benjamin) não é responsável pelos próprios atos, é o tempo todo carregado em direção a um destino fatal.

Esta condução é feita pelo narrador para nos levar e nos soltar dentro da narrativa, deixando-nos em espaços nos quais ele se encontra, mas que não sabe onde são. Parece até que está pedindo ajuda para o leitor para encontrar sua identidade dentro desses espaços, mas colocando o leitor numa posição de cúmplice, como veremos no próximo capítulo.

O romance é estruturado em 11 capítulos e a história decorre em 6 dias, aparentemente - isso porque o narrador confessa não ter, ele próprio, a noção do tempo: “acordo sem saber se dormi pouco ou demais. É um meio de tarde, mas não sei de que dia” (BUARQUE, 1991, p. 83). O narrador personagem revela seu gosto por estar suspenso no tempo: “não me desagrada estar assim suspenso no tempo, contando os azulejos da piscina, chupando as mangas que o velho me trouxe” (idem, ibidem, p. 80), bem como seu desejo de passar a vida no vapor: “eu, por mim, levava no vapor o resto da existência” (idem, ibidem, p. 47).

Suspenso no tempo, deixa-se ser levado pela vida e, até mesmo quando roubado pela menina, não consegue esboçar qualquer reação: “quero reagir e não posso, meu corpo está dormente, meu cérebro, minha boca não consegue pronunciar ‘ei’” (idem, ibidem, p. 30). Esta espécie de dormência deixa vislumbrar a atmosfera onírica do romance, pela falta de reação típica quando estamos num sonho e não conseguimos nos mover nem sair dele. O tempo é um elemento importante, já que não é linear e explicita a própria expressão da personagem: há um tempo real, um tempo do sonho e um tempo da imaginação do protagonista, com o uso do condicional para mostrar seus “delírios” e divagações diante de cenas que ele supõe que poderiam acontecer. Quanto ao espaço, não há localização precisa: tanto pode ser o Rio de Janeiro como outra cidade qualquer.

Estorvo é visto pela crítica como uma “alegoria do vazio”, ou seja, “uma

representação simbólica da total falta de perspectiva do homem contemporâneo, inserido numa sociedade hipócrita” [...]”15.

Como já apontou o teórico e crítico norte-americano Fredric Jameson (1985), a sociabilidade regida pelas aparências, imposta pela necessidade de “se dar bem”, projeta e torna natural um padrão de comportamento que, tal como se apresenta, não faz parte da natureza humana. A paixão pelo status social é uma experiência que foi reificada,

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. http://litebrasil.blogspot.com.br/2007/10/uma-leitura-de-estorvo-livro-de-chico.html. acesso em 10 de agosto de 2011.

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glamourizada e posteriormente projetada para as pessoas como um valor em si mesmo,

despido de seu significado simbólico. O desejo de aceitação é transformado em algo que hoje parece atributo de uma natureza humana intrínseca, cujos valores se encontram em decadência. Por ser “narrado em primeira pessoa, Estorvo se mantém constantemente no limite entre o sonho e a vigília, projeções de um desespero subjetivo e crônica do cotidiano” como define a editora da obra na contracapa da primeira edição.