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CAPÍTULO 2 – AS OBRAS ARISTOFÂNICAS E O REGIME DEMOCRÁTICO

2. Hegemonias e Imperialismos: A Ofensiva Contra os Persas e Lutas Fratricidas

3.1 As Obras Aristofânicas

Sabemos que Aristófanes escreveu inúmeras obras. Mas tudo que possuímos e o estado em que chegaram até os dias atuais constituem apenas uma pequena parte do que ele produziu. Como já declaramos, optamos pela utilização de três obras aristofânicas completas, que se notabilizaram pela variedade de temas e personagens relacionados ao universo feminino, nas quais as Melissaí movem toda a trama. Por meio da documentação textual selecionada, desenvolvemos um estudo resgatando, a partir das personagens femininas aristofânicas, elementos que nos conduziram a reflexões destinadas à compreensão do feminino e de sua participação no interior da Pólis ateniense durante a época mencionada. Diante disto, optamos pelas peças: Lisístrata e As Mulheres que Celebram as Tesmophorias datadas de 411 a.C., e Assembléia das Mulheres de 392 a.C. representadas nas Leneias e Grandes Dionisíacas.

Em todos estes trabalhos aristofânicos, as personagens femininas foram muito bem representadas. Apresentavam-se mediante uma fealdade que as tornavam dignas companheiras dos corruptos cidadãos atenienses. Os papéis eram desempenhados por homens disfarçados, o que conferia aos temas cômicos uma forma caricaturada (GRIMAL, 1978: 60). Em seu discurso, elas tornaram-se sujeitos de conhecimento, diferentemente da concepção grega de diferenciação dos sexos, que enquadrou o feminino sempre numa posição de receptividade ao masculino,

principalmente quanto à questão relativa à sua capacidade de aquisição conquistadora e de sua competência. Nas peças analisadas, o feminino aristofânico vive situações que não conseguiríamos imaginar segundo os padrões Falocêntricos gregos, pois nelas encontramos mulheres apresentadas enquanto seres dotados de inteligência e detentoras de um controle sobre sua própria sexualidade, sem imposições masculinas ou censuras.

Não possuímos, segundo o que temos notícias, uma documentação imagética de registros de representações, principalmente em vasos antigos, que retratassem as Melissaí na comédia antiga, o que demonstra que não havia interesse sobre este tipo de tema, nem por parte dos artistas, nem por parte da clientela, principalmente por questões ligadas à moralidade antiga (VRISSIMTZIS, 2002: 117).

Na primeira obra, Lisístrata que, segundo Cantarella significa, “a que dissolve os exércitos” (CANTARELLA, 1996: 120-121), foi apresentada nos últimos anos da Guerra do Peloponeso, nos quais Atenas vivia uma situação crítica. Nela, atenienses e espartanos estão envolvidos na guerra. As mulheres já estavam cansadas de sofrer pela perda de seus maridos nos campos de batalha. Para acabar definitivamente com esta situação, a ateniense Lisístrata sugere duas ações sobre as quais se desenvolve toda a peça: a tomada da Acrópole e a realização de uma greve de sexo, unindo as mulheres de Atenas e de outras cidades gregas, para alcançar o propósito de terem os homens de volta, mesmo que para isso tivessem que lutar contra seus próprios desejos sexuais. Apesar da defesa dos guerreiros, a peça permeia entre jogos de sedução e disputas pelas quais acaba vencendo a sabedoria feminina, como demonstramos neste trecho:

LISÍSTRATA

Fique certa de que o destino do país está em nossas mãos. Se falharmos, a pátria estará perdida, será destruída por tantas lutas fatricidas. Mas se nós, as mulheres, nos unirmos, as mulheres de todos os rincões da Grécia, o país estará salvo.

Nesta peça, vemos que o elemento sexual apresenta-se como um forte instrumento para a conquista de seus interesses. Num jogo permanente de sedução, de avanços e de recuos, a trama é finalizada com a vitória das mulheres, materializada num acordo de paz entre Atenas e Esparta. Lisístrata de Aristófanes é a primeira grande obra pacifista da história da qual se tem notícia, na qual encontramos a discussão de temas sérios como a paz, as mulheres, a Democracia, o amor à pátria e o preço da guerra. Para Grimal:

“A comédia de Aristófanes, em certos aspectos, tem a função de uma imprensa de oposição. Ao serviço de um ideal político (o conservadorismo, o respeito pelos valores, que, ao tempo das guerras Medo-Persas, tinham feito furor em Atenas, mas também o respeito pela vida humana, o horror a guerra, o sentimento muito forte dos prazeres da vida) o autor denuncia tudo o que contrário ao interesse da cidade e ao espírito humanista” (GRIMAL, 1958: 61).

As críticas do poeta atingiam a todos: os chefes políticos, a Assembléia, os Tribunais, os militares, os tragediógrafos, os filósofos, os velhos, os jovens e as mulheres. As intenções morais por trás das críticas eram muito sérias. O poeta defendia sempre os valores antigos, a vida rural e, especialmente, a paz tão desejável durante a Guerra do Peloponeso. Dividindo o protagonismo com Lisístrata, em algumas situações, encontramos a personagem espartana Lampito. Como Lisístrata, Lampito possui uma intervenção mais decidida, em virtude de dirigir Esparta sob o mesmo plano executado em Atenas por sua amiga, convocando as mulheres espartanas a um jejum sexual que obrigasse aos homens a concessão da paz. Entre Lampito e Lisístrata havia um paralelismo. Ela representa a própria Lisístrata em Esparta. Nesta fala, Lampito declara

estar disposta a qualquer sacrifício para o bem estar das cidades envolvidas no conflito, como verificamos na fala de Lampito a seguir:

LAMPITO

E eu subiria uma montanha de joelhos se soubesse que lá no cume encontraria a paz.

(ARISTÓFANES. Lisístrata, 20).

Lisístrata aborda um grupo de personagens femininas, mulheres que personificam conceitos defendidos pelo autor. Construções que coroaram Aristófanes mais do que qualquer outro em comédias. É por meio das identidades de Lisístrata e Lampito que nós compreendemos a natureza da obra de Aristófanes. O autor preferiu não sujeitar a personagem espartana a qualquer comparação depreciativa, tendo em vista uma intencionalidade pacifista subjacente. Nas demais, é importante citarmos ainda a atuação do coro de mulheres, que forneceram um apoio decisivo à causa pacifista. Conferem um suporte decisivo a Lisístrata e Lampito em oposição aos seus inimigos, como visualizamos nesta fala:

CORO

Está bem!... Se não há outro jeito, acabemos com a guerra.

(ARISTÓFANES. Lisístrata, 64).

Já em Assembléia das Mulheres, a personagem principal chamada Praxágora, lidera várias mulheres que, unidas e disfarçadas como homens, resolvem tomar o poder das mãos do sexo oposto. Vestidas de forma masculina se dirigem à Assembléia infiltradas em meio ao público e à frente da tribuna. Durante o discurso, se passando por homens, propõem que o governo e todas as decisões políticas fossem entregues às mulheres. Sem perceberem que foram enganados, os verdadeiros homens acabam entregando o poder nas mãos do grupo feminino. As mulheres instauram

mudanças quanto à forma de governar, propondo extinguir todas as desigualdades entre os cidadãos, como notamos neste fragmento:

PRAXÁGORA

Já é tempo de marcharmos! Lembremo-nos bem mulheres, - devemos repetir sem cessar; homens, homens, homens, para evitar descuidos desastrosos. Não será pequeno o perigo se nos apanharem tramando um golpe de audácia como esse.

(ARISTÓFANES. Assembléia das Mulheres, 100).

Eram inteligentes; a protagonista em especial possuía um talento discursivo e retórico. Eram tidas como dissimuladas e mentirosas, pois utilizaram sua vitória sobre os homens em beneficio próprio e não para o bem estar da coletividade, como informado no início da peça. Trata-se de uma obra em que Aristófanes satiriza um estado imaginário administrado por mulheres, onde as mais velhas acabam tendo prioridade para reclamar o amor dos homens mais jovens.

A utilização de mulheres mais velhas na peça tinha o intuito de ferir o status do cidadão, isto é, o relacionamento de homens com mulheres mais velhas, pois isto na Atenas clássica era visto como algo depreciativo. Senhoras com idades mais elevadas não poderiam procriar, contrariando questões ligadas ao matrimônio e à continuação dos descendentes diretos, os futuros cidadãos.

Assembléia das Mulheres destaca, além de uma crítica às instituições e aos cidadãos de Atenas, uma sátira às teorias de certos filósofos, principalmente os sofistas. Inspiradas no princípio de uma relação entre a direção da coisa pública e do lar, as mulheres governaram a cidade de Atenas com a mesma eficiência com que cuidavam de suas casas. Atenas seria como uma única habitação na qual cada um poderia obter, através de fundo comum, o necessário à sua subsistência, graças a reformas de base como a comunidade de bens e de mulheres. No final da trama, a protagonista expõe

claramente que seus anseios pessoais estavam acima de ideais direcionados à igualdade coletiva, por meio de sofismas, a personagem atinge suas finalidades.

Por fim, na obra As Mulheres que Celebram as Tesmophorias, as mulheres de Atenas estão preparadas para celebrar sua festa chamada de Tesmophorias. Eram celebrações femininas em honra à deusa Deméter, uma das doze divindades do Olimpo, filha de Cronos e Réia, deusa das colheitas e das estações do ano. Era uma festa destinada a homenagear ainda sua filha, Perséfone ou Koré, conhecida como deusa das flores, filha de Zeus e Deméter (GRIMAL, 1951: 114-115). Tratava-se de uma reunião de mulheres, no ambiente do Tesmophorion, em que os homens não podiam participar. Nestas circunstâncias, percebemos a indignação feminina contra Eurípides, acusado de dirigir acusações infames contra as Tesmophóras, grupo de esposas legítimas, categoria de celebrantes deste ritual.

Nesta peça não se estruturaram personagens femininas protagonizadas, apenas um grupo de mulheres celebrantes das Tesmophorias. Entre os homens estão Eurípides, Mnesíloco, Agáton um poeta trágico também contemporâneo e Clístenes, os dois últimos tratados como efeminados, um escravo, e ainda, um soldado e um dirigente. A peça satiriza questões ligadas ao gênero trágico, para isso utiliza tragediógrafos como Eurípides e Agáton e ainda, as próprias mulheres.

As mulheres de Atenas, reunidas no templo de Deméter durante o festival das Tesmophorias, quando a presença de homens é proibida, planejam se vingar de Eurípides devido à maneira pela qual são retratadas em suas tragédias.

EURÍPIDES

È por isso mesmo que posso ser morto. As mulheres armaram uma trama contra mim: elas vão se reunir em assembléia hoje mesmo no templo das Tesmôforas, para deliberar sobre a minha morte, pois querem o meu fim. (ARISTÓFANES. As Mulheres que Celebram as Tesmophorias, 57).

Eurípides pede que o poeta Agáton, de modos efeminados, que defenda sua causa durante a reunião, mas diante da recusa de Agáton, um parente de Eurípides se disfarça de mulher e participa da reunião. Ele é descoberto e preso. Sendo assim, Eurípides se vê obrigado a ir até o local e depois de fazer um acordo com as mulheres, consegue resgatá-lo. Diante da situação do parente, o autor Pierre Grimal, no livro O Teatro Antigo, acrescenta que:

“O parente de Eurípides, (Mnesíloco), que queria fazer-se passar por mulher é despido publicamente e tenta em vão dissimular o seu Phallos, que procura explicar que o traje usado pelo infeliz homem é como aqueles que vemos nas estatuetas” (GRIMAL, 1978: 61).

O final da peça nos apresenta um final feliz. Traduz, como nas demais peças analisadas, a vitória feminina sobre os homens. É a herança infeliz a que todos os Anthropoí estavam condenados, pela vontade de Zeus, onde estariam sempre a mercê das herdeiras de Pandora.

Em resumo, são três trabalhos que demonstraram o universo da Atenas clássica. Deste modo, falaremos como o feminino se constituía por meio de um olhar que supera a imagem da mulher descrita neste período, inserindo-as a partir das novas propostas epistemológicas da historiografia contemporânea. Nas páginas que se seguem, faremos uma apreensão das relações de poder entre os gêneros na Pólis, no que confere uma discussão no âmbito da participação política, tendo como fio condutor as peças aristofânicas em relevo neste trabalho.