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Obras literárias em As Palavras e as Coisas

No documento Paradigma, Arqueologia e Literatura (páginas 38-42)

Este livro, publicado em 1966, tem como subtítulo uma arqueologia das ciências humanas. Isto é, ele procura revelar o solo onde estas se fundamentam, descrevendo a sua formação histórica em planos sincrônicos, onde seria possível descrever um certo regime discursivo em torno das positividades que orientam formas de objetivação mais ou menos estáveis em determinados períodos. A essa quase estrutura dá o nome de epistème. Haveria, portanto, uma epistème do séc. XVI, no período do Renascimento, que desenharia as condições de possibilidades do discurso nesse período, um solo que organizaria, a priori, o tipo de questões que podem ser colocadas e o modo como podem ser colocadas; que estabeleceria condições para a produção de sentido e que conduziria, portanto,

inevitavelmente, a certos tipos de resposta, e não outros. No caso do século XVI, a figura soberana do saber, constituído e instituído em positividade para suas formações discursivas é a semelhança. Nesse regime das similitudes tudo é signo em uma remissão infinita de conveniências, emulações, analogias e simpatias. “Buscar o sentido é trazer à luz o que se assemelha.”66

Diante de certos eventos históricos, ou acontecimentos (événement), mais ou menos indetermináveis, mas, em todo caso, restritos a certos curtos períodos de transição, haveria uma série de transformações fazendo com que velhos problemas desapareçam e novos surjam; que se constituam novas formas de ver e de dizer e estabelecendo novas positividades para o saber.67 Dessa forma a transição do período do Renascimento, no século XVI, para o Clássico,

nos séculos XVII e XVIII, estaria marcada por um corte abrupto, uma mudança na forma mesma em que o sentido se constitui. Aí, não é mais a semelhança que ordena o mundo e funda os saberes, mas sim a representação. A linguagem se separa do mundo a que estava unida, como signo entre signos no regime das semelhanças, e passa agora a representá-lo. O mundo ainda é dotado de uma Ordem natural e pré-determinada que é dada ao homem na forma da representação, que recobre o mundo em toda sua extensão e que pode ser representada, por sua vez, pela linguagem. Essa ordem universal e contínua da natureza, a representação dispõe em um quadro de identidades e diferenças cujo total preenchimento, procedendo por sistema ou por método, é a missão e a promessa do Saber. É nesse contexto que se desenvolvem a história natural, a análise das riquezas e a gramática geral. A primeira teria por objetivo a disposição de todos os seres naturais em um quadro de diferenças e identidades, segundo sua visibilidade, como são dados à representação. A análise das riquezas suporia um quadro geral das trocas em que o valor de um produto é representado pela moeda em uma equivalência geral entre todos os bens comerciáveis e toda a riqueza disponível no mundo. Da mesma forma, na gramática geral, há uma equivalência geral entre a língua e a

66 APEAC, p.40

67 Aqui recuperamos um dos principais pontos de contato entre Kuhn e Foucault. Há sempre um processo de mutação nas formas discursivas do saber, mas há diferentes momentos com diferentes velocidades. Ora esse processo se dá de forma contínua num progresso dado pela produção de diferenças a partir de repetições do paradigma, o que Kuhn chama de “ciência normal” e que em Foucault corresponderia à relativa estabilidade das formações discursivas dentro de um período compreendido por uma episteme. Ora haveria momentos de maior velocidade em que as formas de perceber o mundo, as visibilidades ou os paradigmas, mudariam de uma forma algo brusca. É o que Kuhn chama de “revoluções científicas” e que em Foucault aparece na forma desses acontecimentos inomináveis. A diferença fundamental, talvez, entre a revolução kuhniana e o

acontecimento em Foucault é que aquela é produto de uma acumulação histórica de anomalias no paradigma e o último se dá devido a um arranjo singular, generalizado, mas casual, da configuração dos saberes em relação com os jogos de poder que os constituem.

representação, significante e significado, como também entre representação e representado. No fim do séc. XVIII, há também um acontecimento que desenvolve uma ruptura fundamental entre as formas do saber clássicas e as modernas. Se este acontecimento é evidente na mutação que engendra nos regimes discursivos, Foucault não arrisca identificá-lo em eventos históricos particulares. Não seria difícil relacioná-lo com os mesmos movimentos históricos que culminaram na Revolução Francesa uma vez que é, efetivamente, por volta desse período que Foucault localiza os movimentos que levam à ruptura com as positividades clássicas da Ordem e do Quadro no regime da representação. É nesse período que, por um recuo da representação, emergem da história natural, da análise das riquezas e da gramática geral as novas positividades da Vida, do Trabalho e da Linguagem, conforme aquelas se transformam em biologia, economia e filologia. A história não é, entretanto, para Foucault, uma sucessão linear e homogênea de eventos, é múltipla e heterogênea. Este acontecimento não pode ser determinado porque sua relação com as transformações que acarreta não é de causa e efeito. Este acontecimento é o próprio movimento das transformações que designa. O que conecta todas essas formações discursivas e faz com que suas transformações coincidam no tempo é, então, uma certa viscosidade própria dos acontecimentos históricos. Assim, esclarece Foucault em A arqueologia do saber:

A ideia de um único e mesmo corte que divide de uma só vez, e em um momento dado, todas as formações discursivas, interrompendo-as com um único movimento e reconstituindo-as segundo as mesmas regras, não poderia ser mantida. A contemporaneidade de várias transformações não significa sua exata coincidência cronológica: cada transformação pode ter seu índice particular de "viscosidade" temporal. A história natural, a gramática geral e a análise das riquezas constituíram-se de modos análogos, e todas três no curso do século XVII; mas o sistema de formação da análise das riquezas estava ligado a um grande número de condições e de práticas não discursivas (circulação das mercadorias, manipulações monetárias com seus efeitos, sistema de proteção ao comércio e às manufaturas, oscilações na quantidade de metal cunhado): daí a lentidão de um processo que se desenrolou durante mais de um século (de Grammont a Cantillon), enquanto as transformações instauradas pela gramática e pela história natural não se estenderam durante mais de 25 anos.68

A arqueologia visa às diferenças últimas para chegar à singularidade: “levar o mais longe possível as diferenças entre acontecimentos que parecem pertencer a uma mesma

espécie”69 Assim, não se trata, para Foucault, de demonstrar uma continuidade entre as

disciplinas clássicas e as modernas, mas, justamente, de levar suas diferenças até as últimas consequências apontando o que elas têm de irredutível, demonstrando, ao mesmo tempo, como essas puderam surgir esboçando o espaço de sua emergência, seu solo de positividade.

Os acontecimentos que separam as diferentes epistemes permanecem não nomeados e resistem a toda tentativa de objetivação. Curiosamente é justamente no lugar desse silêncio que Foucault evoca as obras literárias. Para compreender melhor esse lugar que ocupou e os deslocamentos que sofreu a literatura na obra de Foucault, escolhi examinar algumas das obras mencionadas em As palavras e as coisas, nas quais se pode observar o movimento que parece retirar a literatura de um lugar privilegiado, nivelando-a, por outro lado, com outras formas discursivas da nossa cultura, ciências e filosofia. Aí a literatura aparece num lugar menor, mas fundamental, justamente nos interstícios, entre as grandes descrições de epistemes, junto aos grandes acontecimentos que modificam fundamentalmente as positividades e as formas de ver e dizer. Acontecimentos que não podem ser objetivados nem explicados por suas causas ou reduzidos a meros fatos históricos uma vez que condicionam e excedem as formas segundo as quais podemos nomear essas diferenças.

Acompanhando o limiar do Renascimento para a Idade Clássica encontramos Dom Quixote; desta para a modernidade, Justine e Juliette. Já a segunda metade de As palavras e as coisas é dedicada à busca pelas positividades (Vida, Trabalho, Linguagem) que fundam e que organizam o saber moderno e que abrem o espaço para o surgimento das ciências humanas. Inúmeros autores literários são mencionados aqui, Mallarmé, Raymond Roussel, Artaud, Blanchot, Bataille, para exemplificar o lugar de centralidade que a linguagem assume na modernidade obcecada pelo homem. Um autor, entretanto, assume um lugar especial no texto porque o atravessa inteiramente, apesar de, curiosamente, não ser mencionado em nenhum lugar além do prefácio. Já aí, Foucault abre seu livro escrevendo: “Este livro nasceu de um texto de Borges”. Assim, escolhi Borges para tentar compreender esse lugar sutil e fundamental que a literatura exerce nesta arqueologia da modernidade. Aí onde o homem surge já como um duplo de si mesmo e a linguagem percorre o espaço infinito e limitado da linguagem, jogos e experiências tão familiares ao autor argentino.

Foucault não descreve essas obras literárias, não utiliza trechos ou episódios como exemplos de alguma coisa, mas as trata, de certa forma, como índice desses acontecimentos

transformadores. Buscarei assim refazer o percurso da leitura de As palavras e as coisas revisitando essas obras literárias, seguindo os feixes de luz e sombra que projetam sobre o livro e o pensamento de Foucault.

No documento Paradigma, Arqueologia e Literatura (páginas 38-42)