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A Obscuridade das Paixões

No documento Paixões na doutrina cartesiana (páginas 99-101)

Capítulo III – As Paixões no Contexto do Dualismo Cartesiano

3.2. O Estatuto Ontológico das Paixões Cartesianas

3.2.1. A Obscuridade das Paixões

Como vimos no capítulo II, no contexto cartesiano, “percepção” pode ter diferentes significados. Ela pode ser entendida apenas como “ato de consciência”, considerando-a em si mesma, ou ter enfatizado seu sentido de “remeter a algo”, pois “percepção” é sempre “percepção de algo”. No caso da paixão, seu sentido de ser uma “percepção” designa que sua origem está em algo diferente do espírito. Quando consideramos as paixões do ponto de vista da sua gênese, estamos considerando-as na perspectiva de remeterem a suas causas, isto é, estamos tratando-as do ponto de vista objetivo. Em outras palavras, estamos considerando a paixão como uma percepção que remete a algo, como sabemos, nosso próprio corpo ou quaisquer outros corpos. É este o sentido que tomamos quando, por exemplo, uma pessoa diz, “eu vejo um pássaro”. Esta sentença afirma não somente que a percepção de “ver” tem um conteúdo (é a percepção de um pássaro e não de um rato na sua mente), mas pode ser usada para referir a um pássaro que de fato esteja na árvore em frente a sua janela. Esta afirmação pode ser, no entanto, verdadeira ou falsa no que diz respeito à real ocorrência de um pássaro que cause a idéia de pássaro. Posso estar pensando que existe um pássaro, quando o que vejo pela janela é apenas um galho de árvore ou, então, posso estar apenas sonhando que vejo um pássaro. Portanto, no que diz respeito ao que a percepção remete, em outras palavras, a sua causa, ela pode ser posta em dúvida. Isto é, do ponto de vista da vontade, que é a faculdade de afirmar, negar, fazer juízos positivos ou negativos sobre as percepções, fazemos juízos sobre

os dados dos sentidos, mas estes juízos podem ser verdadeiros ou falsos.51 O que queremos salientar aqui é que esta possibilidade de erro acerca das percepções sensíveis deve-se ao caráter de obscuridade destas percepções.

Segundo Descartes, as paixões são modos de pensar que apresentam a característica da obscuridade. Ele afirma: “... todos esses sentimentos de fome, de sede, de dor, etc., nada mais são do que certas formas confusas de pensar, que provêm e dependem da união e como que da mistura do espírito com o corpo.” (DESCARTES, 1988c, p.68). Podemos dizer que esta obscuridade refere-se às paixões, e não propriamente aos juízos que fazemos delas. O aspecto obscuro das paixões se deve ao fato de que elas são o resultado imediato da união da alma ao corpo, e não idéias formadas ou nascidas exclusivamente da alma. É a relação ou referência da alma ao corpo que confere obscuridade às paixões. É o que afirma Guéroult em sua análise das idéias sensíveis cartesianas. De acordo com ele, as idéias sensíveis estão em oposição a idéias do puro entendimento. Por serem indícios dos modos dos corpos, percepções sensíveis possuem uma realidade objetiva52 muito pequena e muito frágil. Devido a isso, o aspecto dessas idéias é obscuro e confuso. É devido à pequenez e fragilidade da realidade objetiva destas idéias que sua aparência, ou o que podemos chamar o qualitativo, é obscuridade e confusão. (GUÉROULT, 1968, p.59, tradução nossa). E esclarece Guéroult: “A qualidade não é a realidade objetiva mesma, mas para o entendimento é o sinal e resultado da infinita pequenez desta realidade. Ela não constitui o conteúdo da idéia, mas o aspecto turvo sob o qual ela se apresenta a nós.” (GUÉROULT, 1968, p.131, tradução nossa). É deste modo que podemos dizer que as paixões têm a característica da obscuridade e confusão para o puro entendimento, considerando a relação de uma percepção a algo exterior ao pensamento. E é por isso que os juízos que fazemos sobre as paixões podem ser falsos. Por lhes faltar clareza quanto ao que remete fora do espírito, não é possível assegurar juízos de semelhança entre as idéias sensíveis e suas causas. Como afirma Landim, se as coisas exteriores são a causa das paixões, estas, por sua vez, parecem reproduzir, no domínio do pensamento, as impressões causadas pelos corpos. Por esta razão, as paixões são consideradas idéias sensíveis: elas

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Não iremos discutir aqui a verdade dos sentidos em si mesmos. Segundo Hatfield, Descartes nega que haja falsidade nos sentidos (e por implicação, nega que haja verdade também). Não são os sentidos que erram, propriamente falando. O erro recai no juízo habitual que fazemos sobre os dados dos sentidos, isto é, no terceiro grau da percepção sensória. Quando, por exemplo, fazemos um juízo de que uma vareta é reta. Para a doutrina cartesiana, meros juízos habituais não proporcionam fundamentos suficientes para decidir se devemos confiar na visão ou no tato (porque para a visão a vareta se apresenta torta, mas para o tato, ela se apresenta reta, ou vice- versa), pois podemos habitualmente fazer juízos falsos. Cabe ao entendimento tomar a decisão. Mas o entendimento corrige os juízos, não os sentidos propriamente. (HATFIELD, p.357-358, tradução nossa). Sobre a questão da verdade dos sentidos, cf. também Guéroult, 1968.

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Apenas lembrando, “realidade objetiva” diz respeito ao grau de ser que uma idéia participa por representação. (DESCARTES, 1988c [1641], p.35).

dependem de uma condição exterior ao pensamento. No entanto, embora estas idéias tenham como causa o corpo, isto não garante juízos de semelhança sobre o que elas supostamente representam. Ou seja, mesmo que o corpo seja a sua causa, isto não significa que o efeito (a idéia, no caso a paixão) seja semelhante à sua causa. (LANDIM, 1992, p.94). Enfim, do ponto de vista da sua origem, as paixões são um modo de pensar misto, e, por não serem pensamentos puramente intelectuais, elas são confusas e obscuras.

No documento Paixões na doutrina cartesiana (páginas 99-101)