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Observemos, então, um pouco mais de perto, certas questões funda mentais relacionadas com o conceito de autor.

No documento "Agustina e o Fantasma de Harry Potter" (páginas 114-118)

Agustina e o fantasma de Harry Potter

3. Observemos, então, um pouco mais de perto, certas questões funda mentais relacionadas com o conceito de autor.

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Primeiro que tudo, há que recordar que o autor é construído por uma totalidade-obra continuada e recorrente. A atribuição e o estabelecimento de autoria é, tradicionalmente, uma das principais tarefas da história literária e da filologia.

Mas a noção de autor como instância central da criação literária é rela- tivamente recente: data do final do século XVIII, da emergência do roman- tismo e da noção de «génio criador». E não esqueçamos, também, que na literatura infantil e tradicional (duas categorias que muitas vezes se confun- dem) a associação, fusão de autorias e adaptação de outros autores é muito habitual.

De qualquer forma, o termo «autor» designa, normalmente, a instância responsável pela atividade literária produtora do universo diegético, simé- trica à do «leitor». De facto, a condição de autor detém uma incidência nos planos estético, ético, cultural, jurídico, económico, social e detém, igual- mente, uma autoridade sobre o leitor.

O termo «autor» deriva do termo medieval auctor, que designava um es- critor cujas palavras inspiravam respeito e fé. No trivium do conhecimento medieval – retórica, dialética e gramática –, Cícero, Aristóteles e os poetas an- tigos estabeleciam as regras fundadoras e os princípios para essas diferentes disciplinas e sancionavam a autoridade moral e política da cultura medieval em geral4. Os auctores, todos já remotamente vivendo na imortalidade, eram,

assim, figuras fundadoras que estabeleciam os contextos epistemológicos da cultura e, por isso, eram imunes ao devir histórico, sendo considerados uni- versais e intemporais. Comparando literatura e paraliteratura, Madelénat5

postula que a obra de arte literária deve talvez sacrificar a sedução imediata, escapar aos estereótipos que agradam facilmente e atingir arranjos temáti- cos e formais inovadores, de que só mais tarde a sociedade se apropria e os quais investe simbólica e ideologicamente. Implicitamente, reconhecemos aqui vestígios expressivos de uma concepção de literatura enquanto reali- dade trans-histórica, intemporal: de literatura criada por auctores.

No fundo, trata-se, talvez, de restaurar os privilégios culturais dos agen- tes e criadores de conhecimento, de utopia e de intemporalidade (exatamente 4Donald Pease, «Author», in Frank Lentricchia e Thomas McLaughlin, Critical Terms for

Literary Theory, 2. ed., Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1995, p. 106.

5Daniel Madelénat, «Littérature et societé», in Pierre Brunel e Yves Chevrel, Précis de litté-

rature comparée, Paris, PUF, 1989, pp. 105-176.

como os dos auctores antigos).

A separação do cultural e do artístico em relação ao económico e ao social reforça-se no romantismo. Lembremos, por exemplo, Almeida Garrett6na

sua astuta «Advertência» a Folhas caídas, referindo-se ao poeta como aquele que não entende «do poder, da riqueza, do mando, ou da glória», mas que, ao contrário dos outros, sobreviverá à morte física.

Nos nossos dias, parece genericamente pacífico considerar o autor como uma figura, mais ou menos fantasmática, projetada por meio de procedimen- tos intratextuais. Deste modo, o autor distingue-se do escritor, ou do autor empírico, humano e físico. Efetivamente, o nome de autor textual pode não coincidir – e raramente coincide exatamente – com o nome do autor empí- rico: Agustina Bessa-Luís chama-se, realmente, Maria Agustina Ferreira Tei- xeira Bessa, por casamento Luís; e J. K. Rowling chama-se Joanne Rowling, tendo acrescentado a inicial K. (de Kathleen, nome da sua bisavó) por exi- gência da editora. A própria Agustina nos diz que assinou as primeiras obras como Stravoguine, personagem de Dostoievski. O nome do autor é, sem dú- vida, uma espécie de ficção. E o autor é, ele próprio, uma espécie de «fan- tasma» do escritor, construído ou projetado pela obra. O autor detém uma presença virtual, que só virtualmente coincide com a do escritor.

De todo o modo, o autor textual cumpre a função de se assumir como princípio composicional da obra – podendo ser visto como espécie de met-

teur en scène, uma «potência federativa» ou um «maestro»: nas palavras de

Helena Buescu, «o autor é um movimento contraditório adentro duma co- lectividade, mais do que um sujeito homogéneo e totalizador.»7Elemento de

uma transação cultural, de um ato comunicativo social, o conceito de autor integra, indispensavelmente, o nosso sistema de leitura, é condição da nossa prática discursiva. O autor é um postulado da própria interação comunica- tiva – da própria noção de comunicação.

O conceito de personalidade literária talvez possa dar conta disso mesmo: da construção de uma função-autor dotada, no entanto, de uma presença configuradora, quaqse como uma espécie de personagem, de interlocutor silenciosamente eloquente, mas indispensável para a efetivação da comuni-

6Almeida Garrett, Folhas caídas, Mem Martins, Europa-América, p. 43. 7

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cação. E, assim, o autor é integrante, não do sistema extraliterário, mas do sistema literário em sentido lato, do sistema de comunicação literária.

Mas, efetivamente, o nome do autor, a sua aura conotativa, é também pro- duto de uma constelação de signos verbais, míticos e visuais, e de uma cons- trução social e simbólica. Estas são produtoras de uma imagem reconhecida de celebridade, de «canonização», e, neste caso, as componentes biografistas, personalistas e empíricas são recuperadas: veja-se a ênfase conferida ao pe- ríodo português e portuense da biografia de Rowling, veja-se a autobiografia de Agustina.

Aceitemos, portanto, mesmo provisória e esquematicamente, que o autor textual é o nome de um lugar e de uma função, de uma entidade em relação comunicativa com o leitor, uma relação retórica de que fazem parte igual- mente, como em toda a situação comunicativa, o referente, o código, a obra, o canal.

O autor textual – por exemplo, no caso da autora de Harry Potter – é uma entidade operativa na obra, constituindo um conjunto de traços (um tom, um estilo, uma voz, uma história pessoal) que inserem a personagem e as suas aventuras na rede vasta do sistema cultural. J. K. Rowling, indissociável da sua criação Harry Potter, tornou-se assim uma «marca», quer no sentido de «impressão digital», quer no sentido do consumo e do comércio. O que Agus- tina insinua é que, no caso de Rowling, essa marca não coincide com o autor empírico. E, de facto, nunca coincide: o autor textual é uma representação, uma construção. Mas o que está em jogo é a existência de uma manobra frau- dulenta e dolosa: a expropriação da criação ao seu legítimo criador, no que isso também implica de apropriação monetária.

Isso tem importância para o leitor? De que forma pode, ele também, sentir-se defraudado? Creio que só poderá ter importância na exata medida em que, para ele, seja relevante o respeito e a admiração pelo autor empírico, autor-génio (à romântica), de modo a condicionar a sua própria leitura e frui- ção da obra, indissociável da pessoa genial que a concebeu. Eventualmente, ele pode sentir que foi vítima de um circuito comunicativo desequilibrado, batoteiro, porque o leitor está de boa-fé, e sozinho, e o autor não.

4. O problema principal consistirá, segundo creio, na traição à intimi-

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