revolucioná-rio, ou não tem uma genealogia briosa, poder-se-ia insistir na
hipersen-sibilidade sentimental, na sua passionalidade melancólica, colocando
o amor como motor da sua trajetória. É precisamente o modo como
esse sentimento se manifesta e determina a conduta da personagem em
questão o objeto da interação entre narrador e leitor. Nas páginas
fi-nais de Amor de Perdição (se já não bastasse aquela digressão que o
narrador faz acerca das preocupações pecuniárias de Simão, aludida no
subcapítulo anterior) é deixado implícito que o amor de Simão por
Te-reza é um sentimento quimérico, incapaz de resistir à ação do tempo
e do desejo de afirmação social. No capítulo XIX, momento em que
há uma concentração dramática assaz acentuada, o narrador faz uma
longa divagação em que contrapõe os eventos da realidade aos do
ro-mance, sugerindo que aqueles, se introduzidos na obra literária,
pode-riam torná-la fria e impertinente. Trata-se de uma afirmação irônica que
tem por objetivo preparar o leitor para uma possível surpresa. Nesse
momento, é revelado que, ao cabo de dezenove meses de cárcere,
Si-mão ansiava viver e não amar. Nesse mesmo capítulo, ainda é revelado
que os anelos da alma de Simão tinham mirado ambições de um nome.
Além do amor, ambicionava a glória, o renome e a vã imortalidade –
verdade incômoda e paradoxal para o livro que é considerado como o
exemplar antológico do romance passional português. Veja-se de perto
esse trecho:
A verdade é algumas vezes o escolho de um romance. / Na
vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos, ou
da lógica implacável das coisas; mas, na novela, custa-nos a
so-frer que o autor, se inventa, não invente melhor; e, se copia,
não minta por amor da arte. / Um romance que estriba na
ver-dade o seu merecimento, é frio, é impertinente, é uma coisa que
não sacode os nervos, nem tira a gente, sequer uma temporada
enquanto ele nos lembra, desse jogo de nora, cujos alcatruzes
somos, uns a subir, outros a descer, movidos pela manivela do
egoísmo. / A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em
painéis ao público!? / A verdade do coração humano! Se o
co-ração humano tem filamentos de ferro que o prendem ao barro
de onde saiu, ou pesam nele e o submergem no charco da culpa
primitiva, para que emergi-lo, retratá-lo, e pô-lo à venda!? / Os
reparos são de quem tem o juízo no seu lugar; mas, pois que eu
perdi o meu a estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é
pintá-la como ela é, feia e repugnante. / A desgraça afervora ou
quebranta o amor? / Isso é que eu submeto à decisão do leitor
inteligente. Fatos e não teses é o que trago para aqui. O pintor
retrata uns olhos, e não explica as funções óticas do aparelho
vi-sual. / Ao cabo de dezenove meses de cárcere, Simão Botelho
almejava um raio de sol [. . . ]. / Ânsia de viver era a sua; já não
era de amar. / Seis meses diante da forca deviam distender-lhe
as fibras do coração; e o coração, para o amor, quer-se forte e
tenso, duma certa rijeza [. . . ]. / Caiu a forca pavorosa aos olhos
de Simão [. . . ]. / Esperança para Simão Botelho, qual? / A
Ín-dia, a humilhação, a miséria, a indigência. / E os anelos daquela
alma que tinham mirado as ambições de um nome. [. . . ] mas,
além do amor, estava a glória, o renome e a vã imortalidade [. . . ]
(AP, pp. 275-277).
O narrador desvia o curso da tensão do drama que assola os
perso-nagens para o conflito que estabelece com o leitor. De modo análogo
a uma representação teatral, ambos passam a encenar e/ou desvendar
o ato que envolve a criação de um romance. Faz-se mister então
colo-car em pauta a criação da personagem, o conceito que o leitor tem de
herói, a sua compressão das diferenças entre a realidade ficcional e a
realidade empírica (questão cara para um público que, em sua grande
maioria, ainda estava aprendendo a lidar com a representação
mimé-tica, para quem a noção de verdade não podia ser negligenciada, mas
que também não queria emprestar os olhos a uma “verdade feia e
re-pugnante”; aspecto oneroso também para o escritor, que tinha a difícil
tarefa de criar um universo paralelo ao real, sem deixar transparecer que
a imaginação fora promotora dessa criação)
11. A tensão se intensifica
quando a discussão deixa o plano “teórico” e alcança o “prático”, isto é,
quando Simão se torna alvo dos procedimentos artísticos enunciados.
O leitor é cooptado de forma pouco tranquila a cooperar ativamente
com o desenho do protagonista. A ele, o narrador faculta a
percep-ção do enfraquecimento e subsequente falência dos ímpetos amorosos
de Simão, levando-o a contemplar, estilhaçado, o quadro de
expecta-tivas que formara no início na leitura. Valendo-se de um referencial
vocabular que se pauta mais pela sugestão, dúvida e hipótese que pela
certeza (note-se, nesse sentido, o emprego das interrogações, a
conju-gação subjuntiva do verbo dever – “deviam distender-lhe as fibras do
coração” – e o uso do “se” como índice de incerteza), o gestor da
nar-rativa retrata os olhos, mas se recusa a explicar “as funções óticas do
aparelho visual”, o que compete ao destinatário. Em outras palavras:
ele dispõe e o leitor compõe. Em contato com a verdade “fria e
imper-tinente”, a audiência pode (re)compor a imagem de Simão, para além
dos imperativos do amor passional, nos termos “da glória, do renome
11
A propósito desse aspecto, pontua Castro (1991, p. 60): “O problema
consis-tia, essencialmente, em conciliar o gosto «poético» dos leitores, sempre interessados
numa ficção que lhes proporcionasse uma visão da vida mais atraente do que a
pró-pria vida, e capaz de lhes criar evasão fácil em mundos ideais, com a preocupação, tão
característica do romance de atualidade [. . . ], pintar os costumes de uma sociedade
que, no plano do real, se movia por forças que eram a negação daqueles ideais que os
leitores procuravam imaginativamente no mundo da ficção”.
e da vã imortalidade”. Com efeito, se a verdade é o “escolho de um
romance”, o narrador convoca o leitor a partilhar e se responsabilizar
por esse dissabor.
Mais adiante, encerrando a discussão sobre o amor e o herói
No documento
São Paulo e Lisboa, 2014
(páginas 91-94)