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Não obstante, se Simão não se constrói romanticamente como uma personagem impetuosa e enérgica, perseverando o ideário

No documento São Paulo e Lisboa, 2014 (páginas 91-94)

revolucioná-rio, ou não tem uma genealogia briosa, poder-se-ia insistir na

hipersen-sibilidade sentimental, na sua passionalidade melancólica, colocando

o amor como motor da sua trajetória. É precisamente o modo como

esse sentimento se manifesta e determina a conduta da personagem em

questão o objeto da interação entre narrador e leitor. Nas páginas

fi-nais de Amor de Perdição (se já não bastasse aquela digressão que o

narrador faz acerca das preocupações pecuniárias de Simão, aludida no

subcapítulo anterior) é deixado implícito que o amor de Simão por

Te-reza é um sentimento quimérico, incapaz de resistir à ação do tempo

e do desejo de afirmação social. No capítulo XIX, momento em que

há uma concentração dramática assaz acentuada, o narrador faz uma

longa divagação em que contrapõe os eventos da realidade aos do

ro-mance, sugerindo que aqueles, se introduzidos na obra literária,

pode-riam torná-la fria e impertinente. Trata-se de uma afirmação irônica que

tem por objetivo preparar o leitor para uma possível surpresa. Nesse

momento, é revelado que, ao cabo de dezenove meses de cárcere,

Si-mão ansiava viver e não amar. Nesse mesmo capítulo, ainda é revelado

que os anelos da alma de Simão tinham mirado ambições de um nome.

Além do amor, ambicionava a glória, o renome e a vã imortalidade –

verdade incômoda e paradoxal para o livro que é considerado como o

exemplar antológico do romance passional português. Veja-se de perto

esse trecho:

A verdade é algumas vezes o escolho de um romance. / Na

vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos, ou

da lógica implacável das coisas; mas, na novela, custa-nos a

so-frer que o autor, se inventa, não invente melhor; e, se copia,

não minta por amor da arte. / Um romance que estriba na

ver-dade o seu merecimento, é frio, é impertinente, é uma coisa que

não sacode os nervos, nem tira a gente, sequer uma temporada

enquanto ele nos lembra, desse jogo de nora, cujos alcatruzes

somos, uns a subir, outros a descer, movidos pela manivela do

egoísmo. / A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em

painéis ao público!? / A verdade do coração humano! Se o

co-ração humano tem filamentos de ferro que o prendem ao barro

de onde saiu, ou pesam nele e o submergem no charco da culpa

primitiva, para que emergi-lo, retratá-lo, e pô-lo à venda!? / Os

reparos são de quem tem o juízo no seu lugar; mas, pois que eu

perdi o meu a estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é

pintá-la como ela é, feia e repugnante. / A desgraça afervora ou

quebranta o amor? / Isso é que eu submeto à decisão do leitor

inteligente. Fatos e não teses é o que trago para aqui. O pintor

retrata uns olhos, e não explica as funções óticas do aparelho

vi-sual. / Ao cabo de dezenove meses de cárcere, Simão Botelho

almejava um raio de sol [. . . ]. / Ânsia de viver era a sua; já não

era de amar. / Seis meses diante da forca deviam distender-lhe

as fibras do coração; e o coração, para o amor, quer-se forte e

tenso, duma certa rijeza [. . . ]. / Caiu a forca pavorosa aos olhos

de Simão [. . . ]. / Esperança para Simão Botelho, qual? / A

Ín-dia, a humilhação, a miséria, a indigência. / E os anelos daquela

alma que tinham mirado as ambições de um nome. [. . . ] mas,

além do amor, estava a glória, o renome e a vã imortalidade [. . . ]

(AP, pp. 275-277).

O narrador desvia o curso da tensão do drama que assola os

perso-nagens para o conflito que estabelece com o leitor. De modo análogo

a uma representação teatral, ambos passam a encenar e/ou desvendar

o ato que envolve a criação de um romance. Faz-se mister então

colo-car em pauta a criação da personagem, o conceito que o leitor tem de

herói, a sua compressão das diferenças entre a realidade ficcional e a

realidade empírica (questão cara para um público que, em sua grande

maioria, ainda estava aprendendo a lidar com a representação

mimé-tica, para quem a noção de verdade não podia ser negligenciada, mas

que também não queria emprestar os olhos a uma “verdade feia e

re-pugnante”; aspecto oneroso também para o escritor, que tinha a difícil

tarefa de criar um universo paralelo ao real, sem deixar transparecer que

a imaginação fora promotora dessa criação)

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. A tensão se intensifica

quando a discussão deixa o plano “teórico” e alcança o “prático”, isto é,

quando Simão se torna alvo dos procedimentos artísticos enunciados.

O leitor é cooptado de forma pouco tranquila a cooperar ativamente

com o desenho do protagonista. A ele, o narrador faculta a

percep-ção do enfraquecimento e subsequente falência dos ímpetos amorosos

de Simão, levando-o a contemplar, estilhaçado, o quadro de

expecta-tivas que formara no início na leitura. Valendo-se de um referencial

vocabular que se pauta mais pela sugestão, dúvida e hipótese que pela

certeza (note-se, nesse sentido, o emprego das interrogações, a

conju-gação subjuntiva do verbo dever – “deviam distender-lhe as fibras do

coração” – e o uso do “se” como índice de incerteza), o gestor da

nar-rativa retrata os olhos, mas se recusa a explicar “as funções óticas do

aparelho visual”, o que compete ao destinatário. Em outras palavras:

ele dispõe e o leitor compõe. Em contato com a verdade “fria e

imper-tinente”, a audiência pode (re)compor a imagem de Simão, para além

dos imperativos do amor passional, nos termos “da glória, do renome

11

A propósito desse aspecto, pontua Castro (1991, p. 60): “O problema

consis-tia, essencialmente, em conciliar o gosto «poético» dos leitores, sempre interessados

numa ficção que lhes proporcionasse uma visão da vida mais atraente do que a

pró-pria vida, e capaz de lhes criar evasão fácil em mundos ideais, com a preocupação, tão

característica do romance de atualidade [. . . ], pintar os costumes de uma sociedade

que, no plano do real, se movia por forças que eram a negação daqueles ideais que os

leitores procuravam imaginativamente no mundo da ficção”.

e da vã imortalidade”. Com efeito, se a verdade é o “escolho de um

romance”, o narrador convoca o leitor a partilhar e se responsabilizar

por esse dissabor.

Mais adiante, encerrando a discussão sobre o amor e o herói

No documento São Paulo e Lisboa, 2014 (páginas 91-94)