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2 2 M ODERNIDADE “ TRADICIONAL ” – M ODERNIDADE “ CONTEMPORÂNEA ”, AS NUANCES DO PODER NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E DO CONSUMO

Os conceitos de modernidade tradicional, predominantes durante a sociedade industrial começam a encontrar seu ponto de ruptura na própria transformação do processo produtivo. Na sociedade industrial as competências profissionais pertinentes a um

determinado ofício permaneciam as mesmas durante anos e os modos de dominação e elitização dos processos sociais tinham suas referências na sociedade de classes.

Alberto Melucci (1996), aliás, prefere referir-se à atual sociedade como “contemporânea”, apontando que termos como sociedade moderna, pós-moderna, pós- industrial apenas denunciam um sintoma de indecisão teórica decorrente da falência dos dois principais modelos de sociedade ou paradigmas nos quais as pesquisas sociais se pautam: o de sociedade capitalista e sociedade industrial, conceitos que não são mais pertinentes à compreensão das mudanças pelas quais a sociedade passa, que interferem e modificam a própria condição dos processos de individualização e subjetividade.

Nas sociedades industriais os modos técnicos e sociais de produção eram inseparáveis. A organização do trabalho em série, sob a rígida disciplina e controle nas eras “fordista” e “taylorista”, visava transformar e dinamizar o trabalho operário para a obtenção do maior lucro possível, “e o trabalho por produção, que fora tão difundido, era sobretudo uma forma extrema de dominação de classe” (TOURAINE, 2007, p. 33).

Atualmente, no entanto, a sociedade habita o mundo da informação, o que implica novas formas de dominação, deslocando os conflitos das fábricas, dos sindicatos, das negociações coletivas, mais para o nível global e de gestão financeira, do que em relação à organização de produção.

Nesta direção, Touraine observa que:

A imagem sugerida pela globalização é a de redes de informações e de intercâmbios que podem não ter praticamente nenhuma existência material, e a transformação das empresas no decurso dos últimos vinte anos consistiu muitas vezes em externalizar setores de produção, em fragmentar, em reduzir, portanto, consideravelmente o tamanho das empresas (Id., Ibid., p.33).

A sociedade contemporânea tem se caracterizado por rupturas, descontinuidades, perda de referências e mudanças vertiginosas nas suas dimensões tecnológicas, políticas, econômicas e culturais, dimensões que se interpenetram num processo de retroações e imprevisíveis interações.

A perda de raízes, de laços, as descontinuidades e fragmentações próprias da modernidade desvelam também os riscos do individualismo que a sociedade de consumo

produz e alimenta, a cultura do narcisismo, a perda dos vínculos sociais, a ética do privado – são as conseqüências da modernidade (GIDDENS, 1991).

Para esse autor, as rupturas com a tradição no início da modernidade provocaram os processos de “desencaixe” do indivíduo, despojando-o de uma identidade no tempo e no espaço. Os mecanismos de desencaixe retiram a atividade social de contextos localizados, que perdem os seus contornos, sobretudo após a instauração dos meios de comunicação eletrônicos, reorganizando as relações através de enormes distâncias, mas retirando dos indivíduos e comunidades, cada vez mais, a sua identidade, as suas raízes.

Giddens refere como mecanismos de desencaixe da modernidade, as fichas

simbólicas – o dinheiro, atualmente, a mais forte delas, substituindo as trocas de produtos

para subsistência e também as relações pessoais; os sistemas peritos – apenas uma seleta minoria de especialistas está autorizada a produzir, legitimar e aplicar conhecimentos em tecnologias, avaliando seus impactos.

A centralidade nos sistemas peritos desloca a confiança entre pessoas, relacionamentos e conhecimentos tradicionais, para essa comunidade seleta de especialistas. Originam-se, como conseqüências do processo de modernização, a virtualização de espaços de decisão, burocracia, controle estatal, tutela, apropriação de conhecimentos e sua utilização direcionada por decisões políticas de cunho economicista- racionalista. A sociedade se vê expropriada de sua capacidade de participar, refletir e opinar sobre as decisões e os rumos políticos das aplicações tecnológicas e a distribuição dos produtos desses avanços nos processos de industrialização.

Neste sentido, Zygmunt Bauman (2001, 2003, 2005, 2008) traz um olhar radical sobre as “novas condições da modernidade”. Desvela outras formas de dominação ligadas aos novos contornos de “fluidez” da condição “líquida” da modernidade. Incomensuravelmente mais dinâmica que a modernidade “sólida”, com suas certezas, previsibilidade, planejamentos, lugares, classes, controle, que se destinavam a um fim, tinham como horizonte um destino, pelo menos nas representações que se fundamentavam nas perspectivas de ordem, riqueza e progresso.

Na “solidez” da sociedade tradicional, industrial, os papéis estavam bem determinados, definidos pelas relações patrão e empregado. As manifestações de resistência e de lutas por melhores condições de trabalho no interior das fábricas caracterizavam as lutas e movimentos sociais.

A instantaneidade, porém, é a característica da “modernidade líquida”. Nela o

poder muda de endereço com a velocidade dos aviões, dos celulares, dos notebooks. Com

a globalização da economia, o capital transnacionalizado, a mesa de negociação não está mais à vista dos “trabalhadores”. A velha cisão entre burguesia e proletariado, patrão e operário, que amparava as lutas e movimentos sociais por melhores condições de trabalho e salário vem se dissipando em função dos novos contornos da sociedade da informação.

Nessa configuração, os contornos do controle e da dominação tornam-se quase invisíveis. As muralhas das fábricas perderam a solidez. Os processos de produção em massa, que exigiam rotina, disciplina, padrões, cedem lugar à automação hiper- especializada, que “desacomoda” os trabalhadores, homens e mulheres que ficaram à mercê de suas próprias capacidades para se “reacomodarem” aos novos requerimentos do sistema de mercado.

O trabalhador já não tem nenhuma garantia de emprego, e as carreiras ou funções que geralmente passavam de pai para filho, garantindo um espaço por toda a vida no antigo sistema fabril, tornaram-se “solúveis”. As próprias fábricas de aparência sólida desaparecem “instantaneamente”, quando seus produtos, também instantaneamente “envelhecem e deixam de ser vendáveis muito antes da data prevista de expiração” (BAUMAN, 2003, p. 46).

Requisita-se um funcionário flexível, criativo, apto a trabalhar em equipe, capaz de iniciativa, de decisões, de se adaptar à fluidez do mercado e responder rapidamente aos processos dinâmicos de criação de novos produtos para o mercado global, extremamente competitivo. A sociedade de consumo toma à frente no mundo globalizado, unifica, e aquele que tem o poder de comprar, de consumir, se fortalece e se firma como “cidadão”.

Na sociedade clássica, segundo Bauman (2003), a “antiga modernidade ‘desacomodava’ a fim de ‘reacomodar’. Enquanto a desacomodação era o destino socialmente sancionado, a reacomodação era a tarefa posta diante dos indivíduos” (p. 41). A possibilidade de se libertar das condições impostas pelos estamentos como condição sem escolha, destino por nascimento, hereditariedade, era agora concedida com a liberdade de pertencer à classe social (desacomodação).

A mobilidade seria garantida pelo respeito às liberdades individuais, dependendo, aliás, só do indivíduo, de sua capacidade de empenho, de seguir os modelos e as normas para atingir outro degrau na escala social (reacomodação). As novas condições da

sociedade trouxerem a mobilidade. As pessoas poderiam buscar seu pertencimento a uma classe.

A condição de desenvolvimento da modernidade foi a condição da existência do indivíduo. “Dispor dos membros como indivíduos é a marca da sociedade moderna” (BAUMAN, 2008, p. 62), no entanto, a individualização na sociedade contemporânea tem um significado diferente dos primórdios da era moderna, da sociedade industrial.

Da idéia de progresso linear alcançado pelos indivíduos dentro da nova “ordem” com a vigilância do Estado, a tutela, a regulamentação da economia, os modelos e os padrões, o indivíduo foi alçado a senhor único e solitário, responsável pelo seu destino; responsável pelo seu sucesso ou fracasso. Nada pode protegê-lo de si mesmo se não tiver boa vontade, esforço, capacidade de comunicação, criatividade. É sua inabilidade que fecha as portas para o sucesso.

Não vêm à luz, e nunca estiveram presentes, os pontos de partida diversos na vida dos indivíduos, mulheres e homens “libertos”, já condicionados pelo seu nascimento. Desde o início alçando os indivíduos a um destino de privações por oportunidades absolutamente desiguais, a modernidade traçou as rotas da individualização como “um destino, não como uma escolha” (Id., 2008, p.64).

Nas atuais condições da modernidade líquida, de ambivalência, inseguranças, incertezas, Bauman aponta os perigos de uma individualidade forjada na competitividade, nos interesses próprios, no ideal de ultrapassar sempre o outro para conseguir um lugar, um porto, ainda que fugidio e sem garantia: a lacuna que distancia o cidadão do indivíduo.

Insegurança, medo e ansiedade são os novos meios de controle do capital, legitimação e fortalecimento dos princípios neoliberais:

Os medos especificamente modernos nasceram na primeira rodada da desregulamentação-com-individualização, no momento em que os vínculos inter-humanos de parentesco e vizinhança, estreitamente atados por laços comunitários ou empresariais, aparentemente eternos, mas de qualquer modo sobrevivendo desde tempos imemoriais, tinham sido afrouxados ou rompidos. (BAUMAN, 2007, p. 73).

A fluidez, a insegurança, a ausência de laços, os vínculos que se tornam cada vez mais virtuais e descartáveis, promovem a enorme distância entre o cidadão que busca o seu

bem-estar através do bem-estar da cidade, do bem comum, e o indivíduo que se torna indiferente, “morno, cético ou prudente em relação à ‘causa comum’, ao ‘ao bem comum’à ‘boa sociedade’ ou à ‘sociedade justa’. Qual é o sentido de ‘interesses comuns’ se não permitir que cada indivíduo satisfaça seus próprios interesses?” (Id., 2001, p. 45).

Paradoxalmente, no entanto, essa potencialização das conseqüências de uma modernidade que produz efeitos de deterioração das relações, dos valores, quebra das tradições, incertezas, descontinuidades e riscos, provoca também uma ruptura com as concepções deterministas, evolucionistas, totalitárias, homogeneizadoras que firmaram a própria modernidade. Traz uma condição de reflexividade (GIDDENS, BECK e LASCH, 1997; MELUCCI, 1996, 2001), uma modernidade que pensa em si mesma, que reflete sobre seus próprios efeitos no contexto global. O conhecimento se torna reflexivo e busca novas racionalidades para diferentes processos de desenvolvimento.

Para Antony Giddens, a “modernização reflexiva” é decorrente desse período de “alta modernidade”, produzindo grandes mudanças sociais – as conseqüências da

modernidade – que irão desvelar o nível de insegurança, incertezas e perigos, produzindo,

enfim, a consciência de que passamos da sociedade moderna para a sociedade de risco, explicitada não só por Giddens, mas com ênfase pelos trabalhos de Ulrich Beck.

Segundo Beck, a intensificação das ameaças no âmbito socioambiental, transforma a clássica sociedade moderna em sociedade de risco. O conflito agora não se refere somente à produção e distribuição de riquezas, mas à produção e distribuição de riscos. Os referenciais racionais de controle da sociedade moderna já não podem mais controlar ou gerenciar os riscos. O autor chama a atenção para o conceito de ‘modernização reflexiva’, que significa autoconfrontação com os efeitos da sociedade de risco, distinguindo-o da noção de ‘reflexão’.

A sociedade de risco não é uma opção que se pode escolher ou rejeitar no decorrer de disputas políticas. Ela surge na continuidade dos processos de modernização autônoma, que são cegos e surdos a seus próprios efeitos e ameaças. De maneira cumulativa e latente, estes últimos produzem ameaças que questionam e finalmente destroem as bases da sociedade industrial (1997, p. 16).

As definições do risco na sociedade moderna rompem com o monopólio da racionalidade das ciências tradicionais. A discussão social e a percepção dos riscos

ambientais demonstram claramente a fratura entre a racionalidade científica e a racionalidade social no trato das questões que envolvem os potenciais riscos civilizatórios da sociedade industrial.

A multiplicação dos riscos, em especial os ambientais e tecnológicos de graves conseqüências, são elementos-chave para entender as características, os limites e as transformações do projeto histórico da modernidade. Os riscos contemporâneos explicitam os limites e as conseqüências das práticas sociais e políticas marcadas pela racionalidade tecnocientífica, trazendo consigo a “reflexividade”. O conceito de risco passa a ocupar um papel estratégico para entender as características, os limites e as transformações do projeto histórico da modernidade.

Ulrich Beck traz importantes fundamentações para a reflexão sobre a emergência de novas estruturas de concepção e políticas educacionais, que podem orientar a escola para compreender a dinâmica de suas próprias mudanças no seio da sociedade de risco. À educação compete preparar-se para compreender e enfrentar os processos de desincorporação, de dissolução e incorporação de novas estruturas sociais que se tecem em meio às contingências da sociedade de risco. As concepções tradicionais de classe, família, trabalho, gênero estão em pleno processo de transformações muito dinâmicas, aceleradas pela modernização midiática que intensifica ainda mais a globalização dessas transformações:

Assim, em virtude de seu inerente dinamismo, a sociedade moderna está acabando com suas formações de classe, camadas sociais, ocupação, papéis dos sexos, família nuclear, agricultura, setores empresariais e, é claro, também com os pré-requisitos e as formas contínuas do progresso técno-econômico. Este novo estágio, em que progresso pode se transformar em autodestruição, em que um tipo de modernização destrói outro e o modifica, é o que eu chamo de etapa da modernização reflexiva (1997, p. 12).

No sentido desses novos contornos da modernidade contemporânea, Melucci (2001) observa que, na atual “sociedade da informação”, o conhecimento avança vertiginosamente como elemento essencial da vida social e da produtividade, percorre rapidamente todas as esferas sociais através da mídia e dos avanços da tecnologia da informação e os tempos e espaços se tornam globais e virtuais.

No entanto, a produção de conhecimento na sociedade da informação, sem as necessárias ferramentas de decodificação para ser interpretado e utilizado de forma equilibrada por todos, converte-se em novo fator de discriminação social e econômica, aumentando exponencialmente o número de excluídos dos processos culturais e sociais.

Seletividade cultural e seletividade social se mesclam, excluindo as pessoas com menos recursos formativos, favorecem as novas ocupações intelectuais que manejam as informações. As lutas tradicionais dos trabalhadores por melhor escolaridade e melhores condições de trabalho, cedem lugar à luta para “encontrar um lugar” no mundo do trabalho.

Analisando o processo de planetarização, Alberto Melucci refere-se a outra condição, paradoxalmente colocada pela modernidade: os indivíduos têm hoje, à sua disposição, potenciais de auto-realização que nenhuma sociedade jamais realizou. Oportunidades de desenvolver suas capacidades cognitivas e comunicativas, extensão dos direitos civis, exercício de decisões com autonomia, possibilidades de escolha, capacidade de construir conhecimentos, realizando sua própria individualidade.

Para o autor, a dramaticidade reside, porém, na possibilidade de acesso a essas realizações, à distribuição dos recursos materiais e culturais. A ausência de eqüidade na distribuição dos recursos também se mundializou:

Dramáticas desigualdades no acesso a estas oportunidades nascem hoje de poderes e forças que excluem grupos sociais e regiões do mundo inteiro. No interior das assim denominadas sociedades desenvolvidas e na periferia do planeta nascem novas desigualdades que assumem a forma de privação cultural, da destruição de culturas tradicionais, substituídas unicamente pela marginalidade ou o consumo dependente e pela imposição de estilos de vida que não oferecem aos indivíduos as bases culturais para sua auto-identificação” (Melucci, 2001, p. 45, tradução livre).

Por outro lado, essa permanente tensão desencadeia também fortes impulsos em direção à autonomia individual, sem a qual o indivíduo não pode refletir e adquirir consciência crítica. Essas condições ampliam para o indivíduo o potencial de exercitar sua capacidade de tomar decisões em busca de mudanças, perceber as determinações construídas historicamente e desnaturalizar as relações de miséria e exclusão, constituindo a sua identidade. Ao mesmo tempo, construindo vínculos sociais, fortalecendo ações

coletivas, onde assume, como sujeito, o seu papel político e co-responsável na reinvenção de uma sociedade solidária.

Estamos, portanto, diante de fenômenos sociais cujos impactos não podem ser avaliados e analisados à luz da ciência moderna e suas lógicas racionalistas de objetividade, certeza e verdade. Em sua conformação atual, a sociedade se torna cada vez mais reflexiva, pela disseminação e democratização da informação e novas individualidades se forjam no poder da escolha.

Ainda no campo dos “paradoxos” da sociedade pós-moderna, Melucci (2001) adverte que a informação, como recurso simbólico tem também o poder de criar e alimentar necessidades que tocam nas profundezas da dimensão psicoafetiva da condição humana, mascarando uma reflexividade artificial, construída, manipulada pela influência crescente da mídia, que, a serviço do mercado, promove a “planetarização” das necessidades materiais e homogeneíza os referenciais de cultura, sociedade, bem-estar e individualidade.

Esse fenômeno torna difícil o estabelecimento das fronteiras entre as subjetividades construídas nas histórias de vidas e seus entrelaçamentos com o meio, o cotidiano e com o outro, em territórios de relações e trocas, e as subjetividades constituídas através dessa construção simbólica artificial, midiática.

Isto multiplica a responsabilidade e o papel social da educação formal, pois a produção de conhecimento na sociedade da informação, sem as necessárias ferramentas de decodificação para ser interpretado e utilizado de forma equilibrada por todos, converte-se em novo fator de discriminação social e econômica, aumentando exponencialmente o número de excluídos dos processos culturais e sociais.