• Nenhum resultado encontrado

Ojemopajeangaípa eles fizeram muitas magias do mal

Tátape osó janondé

antes deles irem para o fogo

Em resumo estes são os costumes “maus” que aparecem nomeados e descritos no diálogo pelos añánga, mas que aparecerão ainda muitas outras vezes falados por eles em outras partes do diálogo, ou então na fala do karaibebé, que além destes inclui no final do diálogo, como maus costumes moéma, mentiras.

Destes costumes indígenas, citados na voz dos personagens em cena, neste auto, historicamente aquele que mais assustava, horrorizava aos europeus, e principalmente aos padres, era o comer carne humana, entretanto, como "mau" costume o que mais aparece neste diálogo de Anchieta é o beber cauim. Por quê? A resposta, no entanto, só pode ser especulativa: porque o cauim, esta importante bebida fermentada dos índios, feito a base de aipim, milho ou do caju, se relacionava com praticamente todos os acontecimentos da vida indígena.

O cauim fazia parte dos rituais de passagem dos kunumí, menino, para o kunumí guasú, rapaz; fazia parte da festa do surgimento de um maramoñangára, guerreiro; também nos rituais de antropofagia, que estava ligado justamente ao do guerreiro, à troca de nomes do matador. Fazia parte das festas do início do plantio e depois da colheita de plantas, principalmente se esta planta fosse aquela com que se fazia o cauim e se a colheita fosse muito boa. Um belo dia de caça com bastante carne era comemorado com cauim. A visita de um caraíba chegando á uma taba era festejado com cauim. A boa hospitalidade era regada com cauim. Uma boa matança de inimigos era festejada com cauim. E, tudo aquilo que os índios aprendiam com os padres era esquecido quando tinham tomado cauim.

O cauim era uma bebida fermentada que deixava os índios bêbados pois eles bebiam até esgotar a igasába, grande pote de cauim, pois, quanto mais bebessem mais famosos seriam (fato que aparece no diálogo anchietano, na fala de Guaixará), assim, além de estar incluído em praticamente todas as festas e rituais, o cauim era “responsável” por muitas brigas e até mesmo guerras. Não são poucos os relatos que falam de tába que eram parentes, mas que por causa de briga de um elemento "borrachio" que acabou matando outro se tornaram tába inimigas.

A maneira para se fazer esta bebida, que Anchieta chamava de vinho, era: dar o aipim, o milho ou o caju as moças da tribo, para elas mascarem e .... O cauim era feito sob a orientação das velhas da tába que sabiam o ponto certo de fermentação, além do ritual necessário para que a bebida saísse boa, conhecimento que iam ensinando para as meninas. A preparação do cauim, incluindo-se aí o plantio e a colheita do produto era das principais atividades das mulheres nas sociedades indígenas, um dos fatores que tornavam as velhas mais prestigiadas. O cauim além de ser uma importante bebida para os rituais, festas, religião, etc. era também um importante alimento e um remédio para o frio e a dor.

Os jesuítas sabiam que esta bebida fazia parte da vida dos índios juntamente com o dançar, o tingir-se de vermelho, emplumar-se, tingir-se de preto, enfeitar-se, ser hospitaleiro, as festas e rituais, mas que estavam relacionados a costumes da vida indígena que eles queriam mudar de fato, os costumes tradicionais, considerados por eles como “maus’”: a antropofagia, a guerra entre tába para a vingança, a crença nas “boas palavras” dos karaí, sobre os ancestrais e sobre a “terra sem males”, a busca por tapuias nos matos, as constantes migrações, o semi-nomadismo, a educação dos meninos para serem guerreiros e vingadores, a mudança de nomes pela morte de prisioneiros, as curas, as magias, previsões para o futuro feitas pelos caraíbas, pajés, como pelas velhas, a influência que tinham as velhas nas tribos, o “casamento” das meninas e meninos com os velhos e velhas, os vários maridos e esposas que podiam ter tanto homens como mulheres. Costumes que eram fundamentais para a sobrevivência das sociedades indígenas, mas que tornavam impossíveis o trabalho de conversão e a manutenção dos índios como cristãos.

Acabar com os rituais regados pelo cauim era acabar com o modo de viver indígena, já que a organização social dos índios, e sua religião dependia essencialmente deste elemento . Isto talvez explique a razão de um prisioneiro esperar muito tempo para ser sacrificado no ritual antropofágico: faltou o cauim, é preciso esperar as plantas produzirem para fazer o suficiente para uma festa que tinha que durar muitos dias. Pode-se especular, então, que Anchieta, ao dar ênfase a kauinagem, as danças e festas, tenha pretendido fazer uma crítica a estes costumes, uma vez que eles estavam presentes em muitos fios da teia de vida/ideologia indígenas.

Outros costumes foram postos em cena como sendo "maus" entre eles o adultério e a prostituição que, me pareciam, inicialmente estarem fora da teia de costumes indígenas. No entanto, estes costumes, aprendi, são considerados "maus" não só no teatro anchietano como também para a sociedade indígena.

As sociedades indígenas em que pese o fato de serem mais naturais, mais sensuais, tinham a sua organização social baseada no parentesco, então, as regras de formação dos grupos parentes era muito específica. Os filhos e parentes daquele (guerreiro) que podia ter muitas mulheres é que deixavam a oca, em que viviam para construírem uma nova oca e tába em que ele seria o chefe guerreiro.

O adultério era um perigo para este tipo de organização social, notadamente aquele que não era apenas uma brincadeira passageira no mato. O adultério causava grandes problemas quando uma das mulheres jovens de um chefe velho, acabava preferindo um chefe mais jovem de uma outra tába. Os filhos meninos que por ventura seriam gerados desta união seriam os "descendentes de quem"?. É importante mencionar o fato que os filhos meninos eram tidos pelos indígenas, como tendo sido gerados pelos homens, no lombo, sendo as mulheres apenas uma espécie de "incubadora".

Assim conforme com as regras de adultério, as regras para a formação dos pares conjugais eram rígidas. O rapaz só podia casar e ter sua vida sexual a partir do momento em que se tornasse

guerreiro, o que significaria fazer prisioneiros, matá-los e de preferência comê-los com seus parentes ( o que nem sempre era fácil de se conseguir). A moça por sua vez, tinha a idade certa para iniciar sua vidas a dois. Como normalmente o rapaz de sua idade não podia casar-se, por não ter se tornado guerreiro, ela acabava quase sempre casando com os velhos das tába. Não é difícil imaginar rapazes e moças e velhas (abandonadas pelos seus velhos na troca pelas mocinhas) recebendo muitos parceiros (clandestinos) às ocultas nas matas, o que para os padres configuraria talvez o mesmo que prostituição. O verso do teatro anchietano mañana,

syguarajy espiar, meretriz coincide com uma observação feita quinhentos anos após por Pierre Clastres quanto aos kunumí: espiavam as mocinhas nos matos quando percebiam que elas saiam

para os seus encontros

Quando os estudos sobre a rede de costumes indígenas dessa dissertação chega ao fim, considerados por Anchieta em seu teatro, como maus costumes, algumas questões me vêm à mente: teriam os jesuítas conseguido destruir a rede de costumes em que viviam os índios brasileiros? Conseguiram com suas "boas falas", (através do teatro, ou da evangelização) fazer com que os indígenas abandonassem mesmo sua vida "antiga"? Respostas que têm que ser buscadas na síntese dialética desta história: não há duvidas que o Brasil, hoje, é um país, na sua quase totalidade, católico e cristão, e a grande maioria de seu povo vive segundo os costumes desta religião, mas... Uma nova indagação se impõe: é, esta grande transformação, fruto do trabalho de evangelização jesuítica? Ou será fruto do poder destrutivo de Tupã? Talvez a destruição do indígena brasileiro por Tupã, como os tupinambá do Paraguasú, responda esta indagação. Quem sabe não explique, também uma constatação de Sérgio Buarque de Holanda no seu clássico, Raízes: o homem brasileiro sente-se vivendo em um clima e um lugar que não é o

seu. O homem brasileiro católico e cristão não se sentiria nativo, descendente do indígena, porque

este indígena na verdade foi quase que totalmente destruído por Tupã? Não Deus, mas o som onomatopaico do canhão.

Talvez fosse interessante trazer agora para esta dissertação/encenação uma curiosidade: Pierre Clastes, que viveu na década de sessenta, junto aos índios guarani, conheceu tribos entre os Aché Gatu, indíos do Paraguai, que praticavam a antropofagia:

Você falou o que? Ela repete e insiste: “Cho memby juta-iã rõ u pa”.

Silêncio. Olho-a, bruscamente teso e perturbado, como quem descobre de

repente o que havia renunciado encontrar por ter por longo tempo buscado

em vão. Então, mais nenhuma vontade de fazer a sesta, é o caçador à

espreita de uma caça inesperada. Jygi, rã, sonhadora – na realidade, ela

saboreia seus bombons -, não me dá mais atenção. Mas é irrevogável, ela

falou, não poderia mais voltar atrás. Quase perdi o fôlego. Quando respondi

em seu lugar que se havia enterrado sua filha vítima de um assassinato

ritual, ela corrigiu vivamente: “Enterrada não! Ela foi assada; em seguida

eles a comeram! Depois ela confirma: “Minha filha, não a enterraram. Os

Aché a comeram. “ Eis então: os Aché Gatu são mesmo canibais, eu não