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UM OLHAR PARA FATOS E FOTOS: UM EXERCÍCIO DE ANÁLISE As imagens na revista Fatos e Fotos que se referem a capital nor-

te-rio-grandense, à priori, trazem a ideia de um Nordeste homoge- neizado em suas relações e práticas, e coloca os outros centros, fora do Nordeste como representantes de uma nação em desenvolvimen-

dos pelo urbano, ou seja, sem mais espaço e tempo para o que per- manece “estático” no Nordeste, representando o passado colonial.

É apresentado um Nordeste deslocado do projeto industriali- zante. Uma região dita contraditória pois entre sua natureza árida, emerge a abundância na ordem da alimentação farta e exótica, dos longos tempos para as festas profanas e religiosas, um tempo mo- roso e cíclico. Como podemos observar nas fotografias que seguem.

Figura 1 – Natal.

Fonte: Revista Fatos e Fotos. 1968, p. 46 e 47.

A imagem fotográfica (Figura 1) objetiva oferecer um desfrute, um se deixar levar pelo prazer que proporciona. Remete-nos a um tempo estático, que se pode fruir, sob um ponto de vista romântico. Entretanto, para além da fruição, a complexificação estruturada de seus sentidos é capaz de orientá-la. Temos nessa imagem a cate- goria semântica mínima natureza vs. cultura, onde o mar, o céu, o vento, o ar e a terra são figurativos da natureza e a jangada, suas

velas, os homens organizando suas redes, as casas espalhadas na beira-mar é a cultura.

Contudo, o mar e a terra em foco na cena não são simples- mente natureza, são elementos físicos da natureza associados a outros valores culturais, não é uma simples referência à natureza, mas, a construção de uma estética que realiza a natureza em meios a valores culturais românticos, de fruição, de escolha de paisagens, que implica em um modo de vida, em uma temporalidade. Veja- mos o bote com os pescadores, nos direciona para uma experiência quase atemporal, lúdica.

A contradição entre o moderno e o pitoresco2. É a colocação de elementos da natureza dispostos em uma estética fotográfica, revelando o que é construído como agradável ao espírito, ao corpo. Podemos questionar, sobre o que essa imagem nos faz sentir? Ao obtermos as respostas, teremos conotações sociais projetadas, que foram construídas em um discurso mítico e estético.

E, nesse arranjo o aspecto que nos vem como natureza, deixa de ser simplesmente natural para se plasmar ao cultural, por que “perdeu muito do seu domínio semântico”, já por ter se tornado paisagem e cenário, que “são quase sinônimos devido à perda de precisão em seus significados” (TUAN, 1980: 152).

Quando a categoria simples natureza vs. cultura assume um dis- curso complexo, “deve-se determinar além dessa projeção, a rede de relações em que ela pode ser estabelecida”, ou seja, como pode ser complexificada com valores culturais na projeção da cultura so-

bre sua natureza (PIETROFORTE, 2012: 28). Se nos lembrarmos de que nas diferentes temporalidades e espacialidade as atitudes com a paisagem do meio ambiente são mutáveis e oscilam entre percep- ções positivas e negativas como nos explica Yi-Fu Tuan (1980), Alain Corbin (1989) e Simon Schama (1996) somos capazes de questionar as projeções sociais, as sensações, os discursos que a sacralizam, que as divinizam em relação às expectativas econômicas e políticas que a envolvem, entre outros valores que sistematizam sua comple- xidade. Assim, como ressalta Eagleton (2011), uma desconstrução da oposição natureza vs. cultura, visto que ambas se relacionam.

Figura 2 – Cidade Alta, Natal. Fonte: Fatos e fotos, 1968, página 47.

A segunda fotografia (Figura 2) contém fragmentos de imagens fotográficas, onde o texto verbal tem função de ancoragem, quando afirma sobre a permanência das práticas já esquecidas em outros centros (BARTHES, 1984: 32-33). Uma paisagem bucólica, de uma pe- quena cidade, com postes elétricos espaçados, casas grandes, como

se o espaço possibilitasse um resgate, uma libertação das prisões do próprio tempo, parece não haver contradições, tudo é sereno.

Essas imagens cristalizam a percepção do Nordeste como es- paço do típico, da região folclórica, que tem seu significado coberto por inúmeros significantes que deformam a realidade. As imagens construídas transformam-se no próprio significado, posicionando um discurso sobre o discurso transformado de sentido para edificar o que anuncia (BARTHES, 2009).

A imagem foi capturada da torre da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, construída em início do século XVIII, período colonial, tipo de igreja voltada para os escravos brasileiros, especialmente em estados como Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. No Rio Grande do Norte, o mesmo padrão devocional se repetiu. A Igreja localiza-se no bairro central da capital norte-rio-grandense, a Cidade Alta. Podemos captar por intermédio dessa imagem as expressões centro vs. margem/ superioridade vs. inferioridade/ céu vs.

terra/ moderno vs. arcaico e com essas categorias estabelecermos uma leitura de conteúdo que pode ser relacionado entre elas.

De acordo com a fotografia a cruz determina um modo de participação de toda a cena, ela está na categoria centro vs. margem, é o ponto de fuga que constrói a perspectiva que se vê emoldurada pela janela da torre, ao mesmo tempo em que a janela privilegia o olhar para essa centralidade, revelando-se como um portal para o passado, ela prende a perspectiva, que se não estivesse envolta pela moldura da janela indicaria um caminho para outros planos. Contudo, ela fecha, encerra o passado nesse espaço. Um espaço a-temporal e religioso. Na organização colonial, a instituição

religiosa católica representa um eixo central, aqui representado pela cruz, não necessariamente geométrico, mais simbólico, que serve para localizar, para situar e está em relação com as demais ocupações que compõe o urbano. Há também o deslocamento em relação ao frenesi do ritmo do clamor religioso no semiárido, que sede vez ao culto organizado, racionalizado, institucionalizado, no qual as saídas das casas direcionam para igreja.

Na dinâmica superioridade vs. inferioridade o conjunto formado pela praça, a igreja e a cruz sugere uma superioridade elevando os bens simbólicos religiosos, as pessoas mantêm-se em um plano in- ferior na imagem, o que coloca o privilégio das construções huma- nas, sobre os próprios homens. No qual as construções simbólicas que remetem ao divino destacam-se construindo uma nova relação simbólica que pode ser caracterizada entre céu vs. terra, o céu e a terra no discurso religioso conotam forças celestes, onde o céu pode representar a superioridade das forças espirituais e masculinas e a terra que germina fecundada pelo céu representa as forças femini- nas, mas que se encontra abaixo, numa esfera inferior. Mesmo céu e terra sendo natureza, estão classificados em ordem de importância, pois no céu repousa o divino e na terra há a materialidade humana, que se encontraria na relação natureza vs. cultura.

Nessas relações estabelecidas e colocadas em discurso, há o privilégio na imagem das forças divinas que representam a centra- lidade da fé católica, dominando os homens, há a referencia a so- ciedade patriarcal no momento em que o céu representa a mascu- linidade, há um apelo ao tempo não racionalizado, mas divinizado e uma projeção das relações humanas determinadas pela natureza,

como essa sendo a principal indicadora das formas culturais huma- nas. No momento em que a moldura encerra essa cena no espaço nordestino, caracteriza e identifica essa região, com essas práticas que o particularizam. Contudo, essa foi ou é uma paisagem familiar a quase todas as pequenas cidades do interior de qualquer região do hemisfério ocidental. É a elaboração do divino e sua centralidade, como mais um mito que compõe essa elaboração visual presente, como uma manifestação cultural que nega sua própria condição de discurso (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2013).

Os discursos saudosistas que valorizam um nordeste rural e de práticas religiosas, é um discurso mediador, sobretudo, das práticas oligárquicas agrárias da região. E, em torno dessas antigas formas de sociabilidade dispõe-se um “suposto resgate cultural”, que visa trazer do passado atividades e formas, no qual o popular, o folclórico e o religioso, imersos no espaço do nordeste tornam-se verdadeiros representantes do Brasil arcaico, por já serem creditados como pos- suidores, como significados e significantes dessas elaborações. A re- gião aparece como detentora de uma vocação para a atividade turís- tica, não só pela potencialidade natural, mas emerge nas promessas do turismo histórico e cultural, aspectos que entre outras coisas, são capazes de atuar como signos de obtenção de recursos (CRUZ, 2002). Na sequencia vêm às imagens de artesanatos (Figuras 3 e 4), elaboradas pelo famoso escultor e entalhador local, Ziltamir Soares, conhecido como Manxa que foi responsável pela construção de grandes monumentos que identificam a cidade, além de trabalhos para o governo federal e diversas empresas privadas nacionais e internacionais. Seus trabalhos partilham das ideologias que

compõem a ordem social dominante; divina e patriarcal, divulgada acima, incluem os valores e costumes partilhados, mas sem as quais o social seria impossível.

Figura 3 – Presépio artesanal do entalhador Manxa. Fonte: Fatos e fotos, 1968, p. 52.

Figura 4 – Manxa e suas esculturas. Fonte: Fatos e fotos, 1968, p. 52.

São várias as produções de Manxa, em materiais e tamanhos diferentes, as dispostas na revista seguem a relação natureza vs.

cultura e humano vs. divino onde as narrativas estão embasadas em uma tensão entre a humanidade e a divindade, baseado na vivência, valores e identidade de Manxa. Sugerindo que os personagens oscilem entre seres humanos e os divinos, temos a representação humana em uma forma selvagem, a carranca no lado esquerdo da figura 4, um humano ligado as suas formas naturais. No lado direito, destacam-se os aspectos religiosos no qual está imerso o discurso da cultura popular, a cultura nordestina, com uma recorrência dos discursos religiosos.

produções vindas das camadas populares, imagens e discursos que são escolhidos por estratégias diversas. A escolha do próprio Manxa como um representante do artesanato, da cultura popular, parte da mediação feita entre a elite letrada, entre seus financiadores, políticos e instituições diversas que aspiram encontrar na produção do artesão suas expectativas atendidas. Sendo assim, tem seu reconhecimento para além do seu grupo social. Vale observar que quando há um interesse de determinadas instituições sociais em promover o que é dito popular, são para os grupos letrados, para os representantes das instituições que se dirigirão os estudiosos e produtores do popular.

A inspiração cristã presente nessas obras populares e em ou- tras manifestações culturais que remetem a um espaço de nordesti- nidade estavam presentes em instituições elitizadas e proporciona- vam a essas instituições uma regularidade na organização e conse- quentemente na segurança social. Os valores cristãos, por exemplo, eram partilhados entre os diferentes grupos e classes sociais, para a classe dominante havia na religião uma maneira de domar, de civi- lizar, disciplinar e moralizar grupos que viviam com a violência e a indisciplina, por outro lado, aos pertencentes das camadas popula- res, ao seguir esses valores encontravam a oportunidade de estarem imersos em um grupo social coeso, de obterem favores e até mesmo uma garantia de morte com enterro digno.

A produção do Manxa, representante da cultura popular Nordestina, entre outras conhecidas, como as do mestre Vitalino Ferreira, que concebem também espaços do Nordeste, estão imersas em uma rede manufatureira, de produção e circulação

totalmente localizadas nos circuitos do capital, do lucro, da exploração do trabalho assalariado, onde se fabrica uma mais valia simbólica do folclore, da religiosidade e do popular para atender a gostos específicos. É a produção de um trabalho também alheio ao seu processo, que se mascara com a visão romântica da fabricação da cultura popular e do folclore.

Nesse sistema de imagens, uma relação presente, que se es- tabelece entre as conexões realizadas está na dupla identidade vs.

alteridade, esta relação contida em todas as imagens leva em con- ta em primeiro lugar à construção da própria ideia de Nordeste, entrelaçadas com o fenômeno da seca, que passa a ser quase um monopólio desta região, ligada as relações de poder das elites agrá- rias do espaço; a literatura também constrói homens ligados à con- dições de animalidade favorecido pelo determinismo geográfico, minando toda e qualquer possibilidade de civilidade, constrói o discurso saudosista da casa-grande e senzala, da família patriarcal e da capela religiosa. Emerge assim para acomodar a região que se forma, uma identidade construída por meio da reação conservado- ra à sociedade capitalista que se implanta no país, em detrimen- to das elites tradicionais3. Enquanto a identidade do Sudeste, que constitui a alteridade com o Nordeste do país, é construída a partir das expectativas do moderno, do urbano e do industrial que advém com a sociedade burguesa.

O Nordeste é propagado como sendo portador uma cultura tradicional, rural, mestiça e pré-capitalista, portanto folclórica e

artesanal, um espaço que mantém na preservação da sua cultura o passado preso. Essas imagens que divulgam essas formas de Nor- deste, absorvidas pelo mercado destinado ao turismo justificam a preservação de uma cultura autêntica, principalmente, por ter sido o local onde se iniciou o processo de colonização no Brasil, dife- rente de outras áreas do país, que estão destinadas à modernida- de, constroem preconceitos. Destacam elementos específicos que emergiram como identitários da região, reconfigurados e articula- dos entre os fragmentos visuais que promoviam o imaginário sobre a seca, sobre o cangaço e sobre a religiosidade na região deslocando o sentido das primeiras significações: “metalinguagem”, um discur- so que toma como referente o discurso anterior, mas esvaziando o seu sentido (BARTHES, 2009).