• Nenhum resultado encontrado

Olhares sobre a Juventude e suas representações

Introdução

Eis-nos perante o tema de grande força da narrativa de Branquinho da Fonseca. Reiterando uma opinião que António Manuel Ferreira expressou na conclusão do seu mais longo e amiudado estudo sobre aquele escritor presencista, na narrativa predominam «personagens cujos traços essenciais sinalizam a existência de uma personagem- síntese»227, apontando-nos precisamente para esta torrente de jovens em construção que vão aparecendo ao leitor. As personagens jovens constituem, de longe, o grosso aglutinante das restantes presenças ficcionais, com especial pendor para os narradores, geralmente juvenis, movidos por algum episódio marcante do passado, que desejam partilhar.

O adulto não parece ter seduzido o escritor pois representa já um estado imóvel e não evolutivo, destituído de sonho e realização, motivos que se deparam vivamente aos olhos do jovem. Nesta linha, mesmo o velho (genericamente falando), que a seguir se estuda, é a imagem de um passado cheio de recordações, que se coloca numa posição de esforço para a compreensão de si próprio no presente, em função desse tempo ido. Assim, e ainda recorrendo ao âmbito conclusivo do trabalho de António Manuel Ferreira, Branquinho da Fonseca caracteriza os jovens das suas narrativas da seguinte forma: «São tudo pessoas que estão em combate e em sonho. O adulto talvez seja o que já passou – não interessa já, não é? (...) Há uma plenitude na juventude, há outra força, há uma realização permanente. O jovem ou o adolescente estão a realizar-se, o homem adulto realizou- se...»228. O jovem investe-se de um dinamismo insatisfeito, que procura avidamente explicações e adaptações definitivas, justificadas com as constantes mudanças de espaço que o fazem confrontar-se com novas pessoas e condições. As mulheres, muitas delas já

227

António Manuel Ferreira, Arte Maior: os Contos de Branquinho da Fonseca, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 2004, p. 408.

228

Branquinho da Fonseca, Diário de Notícias, 30 de Setembro de 1936, apud António Manuel Ferreira, op.

mencionadas no capítulo precedente, apresentam-se, em grande número, com um perfil jovem, embora a sua movimentação no espaço dependa de factores que divergem dos que dirigem as personagens masculinas.

Mais do que percorrer e analisar as personagens jovens que povoam as narrativas, pretendemos ainda traçar configurações de juventude que transpõem essa dimensão. Coimbra é, sem dúvida, um importante símbolo da Juventude (como também da decadência) na obra de Branquinho da Fonseca: uma juventude ficcional, real e mesmo emblema do Portugal de meados do século passado. A juventude é expressamente convinda no romance do escritor, que apresenta a vida de um estudante de Direito em Coimbra, abordando, concomitantemente, questões sociais, históricas, políticas, literárias e pessoais, que desembocam numa exímia caracterização da realidade transposta para a ficção. Embora um pouco menosprezada e negligenciada, cremos ser esta uma obra de interesse e demarcação inquestionáveis para o enquadramento e compreensão das restantes criações do autor. A representação da cidade ou da pioneira instituição de ensino superior portuguesa configuram imagens diversas e profundas, passíveis de análise a partir dos textos literários em questão.

As participações jovens prendem-se profundamente à vertente lírica que percorre a produção contística ou de maior fôlego do escritor, tão responsável pelo pronunciado teor autobiográfico da mesma. Se encontrámos nos Românticos o grande pendor para o sentimentalismo que acha no amor ou no seu desencontro um tema angular para as suas ficções (daí que as personagens juvenis sejam o ponto forte dessas narrativas), também nas composições de Branquinho se verifica uma ampla exploração dos sentimentos, porém aliada a outros ingredientes. Os jovens surgem, normalmente, solitários, buscando uma senda ou direcção nas suas vidas, partindo quase sempre de um acontecimento de destaque no seu passado, que se traduz em busca da verdade e aprendizagem pessoal.

Rematamos com o tratamento do tema da juventude em O Barão. Esta personagem, que tantas e tão variadas análises já motivou, é também um ser ainda à procura do seu caminho. Nesta figura emblemática e polifacetada da narrativa de Branquinho da Fonseca, poder-se-á descobrir a confluência dos três estádios em estudo: a infância, a juventude e a velhice, como procuraremos demonstrar.

1 – Ventos de transição– jovens errantes pela vida

1.1 - O retorno ao passado – um eterno recordar

O conto é, por excelência, um género centrado no passado e nele se concentra a maior parte da narrativa de Branquinho da Fonseca. O tempo ido é, muitas vezes, o ponto de partida, a estratégia ou condição sine qua non para a elaboração da ficção escrita. Esta janela temporal associa-se a um dos traços definidores da geração da Presença: «a confissão ou transposição imaginativa da análise introspectiva»229 que, inequivocamente, influenciou a prática literária do escritor que estudamos.

Neste contexto, urge assinalar a importância da presença de alguns narradores homo e autodiegéticos nas narrativas fonsequianas. A perspectiva do jovem relator na apresentação dos factos assume relevância, na medida em que «por força dessa posição de ulterioridade em que normalmente decorre a narração (...), o narrador reconstitui artificialmente o tempo da experiência, os ritmos em que ela decorreu e as atitudes cognitivas que a regeram, ao mesmo tempo que abdica da prematura revelação de eventos posteriores a esse tempo da experiência em decurso»230. Ao tempo da narração, o sujeito enunciativo e participante já filtrou devidamente a informação, projectando no texto uma subjectividade que, por um lado, traduz uma visão algo distanciada dos factos e, por outro, reflecte uma evolução na forma como olha para si próprio. Um considerável número de textos concentra-se no «eu-personagem em acção» em detrimento do eu-narrador, partindo sempre de uma postura auto-reflexiva. Esta atitude é suscitada pelo encontro com outra(s) personagem(ns), que vai proporcionar uma vivência específica, permitindo a interiorização de uma lição de vida, nem sempre conclusiva. Verificámos que Rio Turvo é a obra que apresenta mais textos relatados em primeira pessoa, a saber: “Rio Turvo”, “Um Pobre Homem”, “A Prova de Força” e “A Estátua”. Pertencendo a outros volumes, “O Passageiro de 2ª Classe” (Z), “A Minha Inimiga” e “A Única Estrela” (CM), O Barão e “Os Olhos Deslumbrados” (BP). Todos estes contos são narrados por jovens que se focam num

229

António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1975, p. 1091.

230

Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, Dicionário de Narratologia, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2002, pp. 260- 261.

acontecimento passado e é sobretudo nestas histórias que nos apoiaremos para definir a tal «personagem-síntese» que se evidencia.

Os casos de “O Passageiro de 2ª Classe” (Z) ou O Barão levantam algumas dúvidas no que respeita à rotulação dos respectivos narradores. Carlos Reis, baseado nos estudos de Genette, define a expressão «narrador autodiegético» como «aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história»231. De modo enfático, a mais conhecida obra do autor tem causado alguma controvérsia nesta questão; por exemplo, segundo Rosa Maria Goulart, o inspector é um narrador homodiegético, enquanto «testemunha atenta às reacções do outro»232. No entanto, adiante, constata que mais do que um mero contador, o funcionário público acaba também por se ir autocaracterizando, através das vivências com a personagem. Assiste-se, deste modo, à «penetração no mundo do outro e desnudamento de si próprio (...) tarefas em que cada vez mais uma vai implicando a outra»233. O Barão é o pretexto necessário à revelação particular do inspector, desencadeando uma exposição pessoal quase involuntária.

Quanto ao conto de Zonas mencionado, e como a seguir tentaremos argumentar, o narrador participante não constituirá unicamente a personagem central, uma vez que nos parece que o universo diegético acaba por concentrar-se, afinal, na figura do médico que o jovem advogado encontra no seu trajecto ferroviário. O próprio título do conto “O Passageiro de 2ª Classe” indicia como personagem principal o doutor Jardim de Castro, numa arguta lógica de comutação entre a classe dos passageiros no meio de transporte e o status social e político do médico que, no explicit da acção, se reveste de contornos conclusivos. Estas são também razões a acumular às que brevemente indicaremos para corroborar a tese de que este conto de Zonas anuncia raízes fundadoras de O Barão.

Na retrospecção nostálgica do sujeito narrador, confronta-se o “eu” dos factos passados (marcantes) com o do momento da narração, propiciando o julgamento de si mesmo e do mundo que transmite através de considerações que embute na descrição dos acontecimentos, num tom acentuadamente filosófico. Um dos contos onde mais claramente se observa esta tendência é “Rio Turvo” (RT), do qual extraímos, a título de exemplo, as seguintes passagens:

231

Id., ibid., p. 259.

232

Rosa Maria Goulart, «O Barão, uma narrativa lírica», in O trabalho da prosa – Narrativa, Ensaio,

Epistolografia, Braga, Angelus Novus Editora, 1997, p. 3.

233

Vou contar coisas que talvez pareçam exageradas ou absurdas às pessoas que não tenham andado por estes meios sociais ou que não sejam capazes dos pormenores de imaginação que lhes poderiam dispensar tal experiência.234

Neste estado de espírito está o drama do homem moderno (...), tem a inquietação dos caminhos a andar, caminhos que são os seus mas onde lhe ergueram muros. (...) Os ideais bastam para viver! (Eu, um materialista histórico, a dizer isto!) Sem ideias é que não é viver.235

Nestas tiradas, para além das reflexões sobre a trama social e humana, note-se a predominância do mesmo tempo verbal (ver sublinhados meus) que traz o narrador para o presente, o que acontece, aliás, em outros excertos de idêntico tom filosofante. O tempo actual, em que dá azo aos seus pensamentos, contrasta com o pretérito imperfeito que abunda na descrição do passado, como se atesta, por exemplo, nesta afirmação retirada de “A Única Estrela” (CM):

Estávamos ambos desesperados de solidão.236

Os narradores, ao reconhecerem ainda as mudanças operadas pela passagem dos anos, neles e nos outros, mergulham na complexa hibridez dos seus sentimentos presentes, numa desorientação temporal, que a recordação ora aviva, ora distancia:

Lembro-me bem de tudo, como se fosse ainda ontem. (...)

... neste momento estou a ver-me e vejo-a também a ela, e nem ela já existe nem eu, como era nessa ocasião. Parece-me que foi ontem mas e ao mesmo tempo sinto uma distância indefinível que me faz sofrer amargamente como se fosse um verdadeiro esquecimento ou um desprezo que me fizessem sentir por ela, contra a minha própria vontade.237

234

Branquinho da Fonseca, Rio Turvo, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1997, p. 19.

235

Id., ibid., p. 20.

236

Id., Caminhos Magnéticos, p. 226.

237

O sofrimento deste jovem arrasta-se pelo período que medeia entre a acção e a narração, funcionando o tempo, não como atenuante, mas como carrasco.

Ao mesmo tempo que descrevem a experiência vivida, os narradores vão acusando perspectivas de si próprios e do meio circundante, através de pensamentos ou reflexões que denunciam, no momento da produção escrita, uma análise mais consciente dos eventos. Retirados de um universo algo vasto, apresentamos outros extractos que comprovam a mesma tendência filosofante:

O homem não deve tomar tudo tão a sério, não deve procurar responsabilidades, como se mais ninguém fosse capaz delas. É a ridícula mania de que somos insubstituíveis e indispensáveis.238

Ser grande, na vida, é, muitas vezes, um acaso, um calhar do jogo que é a vida.239

Por que se luta, então, para conquistar um caminho que se sabe que não é o nosso? Somos nós próprios que traímos a nossa vida.240

As interrogações sobre a existência denunciam essa procura de um ideal que cumpra os anseios pessoais, que se perseguem pelas pegadas textuais que os jovens vão deixando. Em boa parte dos contos acima mencionados, o narrador é, por excelência, o assunto do enredo diegético, acusando um ser em construção.

Paradoxalmente, no conto “A Única Estrela” (CM), a escrita funciona como sonda introspectiva mas também como confissão expansiva, que mitiga a dor do sujeito:

...quero dizer que vou escrever pela mesma razão que algumas pessoas choram e por que a dor, por vezes, parece que fica mais pequena depois de se contar. (...) Publico-a para ter a impressão de que a conto a muita gente, a mil, a um milhão de pessoas, e que todos têm pena dela como eu. Assim, deixará bastante de ser meu esse sentimento: passará a ser universal e os sentimentos universais são muito fáceis e trazemo-los em nós sem darmos já por isso...241

238 Id., ibid., p. 105. 239 Id., ibid., p. 145. 240 Id., O Barão, p. 39. 241

A escrita “universalizará” e refreará o pesaroso sentimento de amargura, na medida em que será repartido e partilhado pelo público leitor.

Os jovens narradores evidenciam a importância dos casos narrados, em particular como sendo preponderantes na demarcação e continuação da sua senda. A nostalgia do passado e desses episódios constitui um marco inigualável no seu percurso, que insistem em recordar, tantas vezes em exercício masoquista, que a letra, para além do pensamento, testemunha e adensa. O acto da escrita, podendo ser um escape depurativo no sujeito enunciador, cumpre ainda a função do «eterno recordar», como se mencionou no título, revelando uma personalidade-padrão presa a um passado que revive ardentemente no agora e cujo esquecimento, presente ou futuro, é tarefa árdua ou mesmo impossível.

Tanto o “eu narrador” (distanciado dos acontecimentos) como o “eu participante” (situado como personagem) transpiram a evidência de um só ser em metamorfose, periclitante entre o seu discernimento e a verdade do mundo.

1.2 – O campo revitalizador em oposição à cidade poluta e decadente

«A muralha protege a povoação em toda a volta, para não deixar sair nem entrar nada. Não deixar entrar a civilização nem sair o ar estranho e primitivo do velho burgo».242

O tópico “A Cidade e o Campo” mergulha-nos em uma dualidade literária já antiga. Inicialmente, as descrições de ambos os espaços não careciam de se afirmar com base no confronto: «o sentimento do “campo”, que se revela através dos poetas dos Cancioneiros medievais, e até das novelas de cavalaria, é (...) imediato; (...) os grandes frescos citadinos, pintados por Fernão Lopes, testemunham um sentimento imediato da “cidade”, a que é (...) alheia a preocupação de estabelecer comparações com a vida campestre»243. A partir do séc. XVI, porém, esboçava-se a fundação de um tema que viria a consagrar-se um dos grandes da literatura: o contraste entre a cidade e o campo. Com Sá de Miranda, vincula-se

242

Id., ibid., p. 180.

243

David Mourão-Ferreira, «A Cidade e o Campo», in Dicionário de Literatura, 3ª ed., 1º vol., Porto, Figueirinhas, 1973, p. 178.

a «apologia do campo» à «defesa da liberdade moral»244 não alheia à influência da aurea mediocritas, a «doirada mediania» das Odes de Horácio, ideal que iluminou e adquiriu expressão, posteriormente, em composições de outros poetas árcades como Correia Garção ou Nicolau Tolentino. O tema toma-se de contradições no Romantismo e Pré-Romantismo e é no dealbar do Modernismo que revistas como A Águia presidem a uma mitificação do «campo», desigualmente continuada. De um modo geral, a inspiração poética e literária parece estar mais associada ao bucolismo dos refúgios campestres, de solidão e isolamento, impulsionadores da criação.

No caso da errância juvenil ilustrada nos contos de Branquinho da Fonseca, estes dois ambientes adquirem uma importância fundamental. O carácter benigno do rural, associado à juventude e ao regresso à infância, por oposição ao maléfico citadino, aliado à depressão e ao pessimismo, são insistentemente recalcados, estando disseminados por toda a narrativa.

Referindo-se à criação artística, António Quadros faz a seguinte asserção: «para compreender o caso dos artistas de uma maneira geral, é necessário ir às raízes mais profundas das suas obras, o «porquê» ou o «como», e daí percorrer o caminho seguido até essas obras»245. Cremos terem sido influências determinantes para a repercussão deste tópico na obra de Branquinho da Fonseca as vivências infanto-juvenis e o estado adulto do autor que, à semelhança do que acontece às personagens que circulam na maior fatia da sua obra, se alternam entre o campo e a cidade. O contista é proveniente da vila de Mortágua, pertencente ao distrito de Viseu, mencionado em algumas narrativas, e frequentou o ensino superior na cidade de Coimbra, caracterizada de modo disfórico na sua ficção. Ainda que madrinha da sua emancipação literária, a urbe coimbrã terá estabelecido uma mudança nada promissora na sua vida, porquanto a sua formação pouca ou nenhuma aplicação teve nos seus desempenhos profissionais posteriores. O mesmo se verifica com Bernardo Cabral, o estudante protagonista do romance cuja formação nada de útil representa para si. Assim, não só no campo literário como também no real, o imaginário do autor parece ter ficado impregnado de fortes laços à vida simples e popular das aldeias, vilas rurais ou litorais (que conheceu e habitou), o que cedo tomou expressão nas suas primeiras

244

Id., ibid., p. 179.

245

António Quadros, «Saroyan poeta, sobretudo poeta», in Modernos de Ontem e de Hoje, Lisboa, Portugália Editora, 1947, p. 141.

composições poéticas. Esta será uma das que exemplarmente transmitem essa enérgica ligação à terra:

Eu sou lá dos montes que medem o céu,

sou das frias serras onde primeiro o sol nasceu e onde os rios são apenas fontes.

Sou donde as árvores falam a língua que eu conheço, onde de mim sei tudo e do resto me esqueço.246

A força deste motivo está bem patente no cômputo da sua produção literária mas, restringindo-nos apenas à narrativa, percebemos, logo a partir da sua primeira colectânea de contos, a caracterização negativa e opressora que confere aos meios citadinos, frequentes em Zonas. A cidade e as suas ruas são escuras, as casas velhas e podres, exalando odores desagradáveis, aspectos em harmonia com a miséria e tristeza das gentes de “Andares” e “O Resto”. Tanto que a felicidade do casal que se encontra amorosamente, no primeiro conto, não se coaduna com aquele sítio, emblema de um passado sombrio, que urge abandonar. Também Coimbra, em Porta de Minerva, se representa em moldes semelhantes:

Vinha, sem se saber se das paredes viscosas se do chão, o cheiro desagradável das ruas pobres e sujas.247

O Dr. Jardim de “O Passageiro de 2ª Classe” (Z) não é mais do que um dos rostos dessa corrupção citadina que concebe e cala o crime. A cidade é um meio asfixiante248 que obriga o indivíduo a uma apatia de indiferença atormentada que, no caso de Carma (“A Gémea”), culmina mesmo em suicídio. Em “O Anjo” (CM) Amorim é um pobre homem

246

Branquinho da Fonseca, «Poema do Mar e da Serra», Litoral, nº 3, 1944, p. 266 apud António Manuel

Ferreira, op. cit., pp. 270-271.

247

Id., Porta de Minerva, p. 37.

248

que a cidade ocultou da verdadeira vida («... revia toda a sua vida desde pequeno, desde o solar dos pais, grandes senhores muito ricos, que viviam na província, até àquele humilde quarto na cidade, que o escondera do mundo» (p. 27)) e Lisboa constitui, para D. Ramon, a frustação de uma existência desamada pela família e amigos que só lhe aviva as saudades da sua terra natal, na Argentina (Buenos Aires). Para Pedro, o “D. Vampiro”, a cidade acarretou a doença e, para Paulo, “O Conspirador” revolucionário, a presença na capital portuguesa é sinónimo de detenção.

Também naquela que é considerada a obra prima do autor, o Barão, podemos ler uma clara oposição entre o campo, representado pelo senhor da Serra do Barroso e a cidade, personificada pelo inspector, proveniente de Lisboa; embora partilhando momentos de mútua emoção, os dois protagonistas parecem nunca se encontrar plenamente, sendo frequente o choque entre a personalidade, os desejos ou ideias de ambos. No entanto, quando inveja o palácio do anfitrião, o narrador confessa também que a calmaria que o envolve contribui para completar o panorama ideal, permitindo-lhe o encontro com a sua essência:

Viver o tumulto das grandes cidades e depois o silêncio, a solidão desses paraísos abandonados há muitos anos, onde entramos com não sei que inquietação, como quem desembarca numa ilha desconhecida... Ah! Isso, sim, é que me dava outras possibilidades de ser, de compreender e de ir pelo meu caminho.249

O rumo que Régio, convicto, tomava no seu «Cântico Negro» é o que aspiram achar estes jovens fonsequianos. Para o inspector, a atracção pelo campo é sinónimo de uma vida que não está ao seu alcance, porque se encontra escravizado a regras que contemplam o dinheiro como forma de sobrevivência, às quais já não consegue escapar:

O espírito manda-me quebrar estas algemas que trago nos pulsos e ir para os montes, vaguear entre as coisas da natureza, a vê-las com o deslumbramento de quem começasse a vida em cada dia. As flores, os bichos, o Sol, a chuva, as fontes, as árvores, as aves, o azul do céu, as nuvens brancas que o vento leva lá ao longe, o mar, ah! Tudo isso!...

Documentos relacionados