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O último quarto do século XVIII é um período de expansão demográfica, urbanização crescente, desenvolvimento da indústria e do comércio, bem como de melhorias no setor agrícola. Dessa maneira, “os mundos do comércio e das manufaturas, e as atividades intelectuais e tecnológicas que as acompanhavam, eram seguros de si e dinâmicos, e as classes que deles se beneficiavam eram ativas, determinadas e otimistas”30. E, os maiores “vitoriosos” seriam os grupos que mais estavam envolvidos com as mudanças da época: círculos mercantis e financistas, fabricantes e empresários, proprietários economicamente iluminados, administradores sociais e econômicos de espírito científico, a classe média instruída.

Pelos padrões do mundo medieval ou mesmo do século XVI, o final do século XVIII era percebido como uma “era de comunicações rápidas e abundantes”, sendo possível notar o aperfeiçoamento nas estradas, nos veículos puxados a cavalo e também no serviço postal. Mas o deslocamento de pessoas e de mercadorias ainda era pequeno, lento e caro. Para as pessoas em geral viajar ainda não era uma prática comum. As notícias chegavam através dos viajantes e do que pode ser definido como “setor móvel da sociedade”, ou seja, mercadores, mascates, artesãos itinerantes, andarilhos, peregrinos, contrabandistas, ladrões, soldados31. Os viajantes, em particular, atravessavam o continente europeu em todas as direções, deliciando-se com o exótico e com o histórico.

Viagens longas e movimentadas, cheias de imprevistos, nas quais as fronteiras praticamente não existem, sendo outros, na realidade, os grandes obstáculos: as distâncias ainda longas pela precariedade dos caminhos e dos meios de transportes; os recursos escassos; o incômodo das quarentenas; os perigos do banditismo; o ineditismo de certas situações. Apesar de tudo isso, viaja bastante. Mudam certamente os gostos, as preferências, as modas. Das viagens pedagógicas às filosóficas, (…) e também, diríamos, de preferência em matéria de itinerários32.

Três Europas se ofereciam à curiosidade desses viajantes. Uma Europa Mediterrânea, ciosa da herança da Antiguidade Clássica. Uma Europa central e setentrional, mais avançada e

30 Eric HOBSBAWM. O mundo na década de 1780. In: A Era das Revoluções, 1789-1848, 1991, p. 35. 31 Ibidem, p. 26.

rica, e uma Europa fronteiriça, conquistadora, exótica, a leste e no ultramar. Desta forma, percebe-se que as informações sobre a Europa e partes do mundo chegavam através dos viajantes, que constituíam a partir de rotas e caminhos diferentes imagens e representações sobre a Europa, mas também sobre outras partes do mundo.

O mundo era em finais do século XVIII, e mesmo na primeira metade do século XIX, predominantemente rural. As cidades não se desenvolviam ainda neste momento de maneira acentuada. Podendo-se mesmo dizer que a cidade seria uma exceção.

Em todo o mundo, a taxa de urbanização gira à volta dos 10 %. Poucos países apresentam uma concentração excepcional (…). Para cá desta urbanização, desigual em densidade conforme os países e as civilizações, uma miríade de pequenas cidades de poucos milhares de habitantes, ou menos ainda. Sobre este fundo destacam-se as cidades mais conhecidas, famosas, cuja importância individual é decididamente superior à taxa de urbanização. É o caso particular das grandes cidades da Ásia, quase um mundo paralelo ao dos campos e ao dos grandes itinerários. Istambul atingiria no começo do século XVIII 700 000 habitantes, Pequim alguns milhões, Tóquio talvez um milhão em 1700, num país em curso de rápida urbanização desde finais do século XVII.

(…) No Ocidente as dimensões deste fenômeno são menores. (…) Exceptuando as grandes capitais, e não obstante o progressivo melhoramento das condições de vida, a população continua ligada a velhos moldes, os da prosperidade urbana do começo do século XIV e, mais tarde, do XVI. Os prenúncios de crise física e demográfica que o

século XVIII traria não modificam, por enquanto, o panorama do momento33.

Na Europa, mesmo em áreas urbanas a porcentagem rural ou agrícola era alta. A população urbana somente ultrapassaria a população rural na Inglaterra, pela primeira vez, na década de cinqüenta do século XIX. Ainda assim, na metade deste século, além de Londres, com cerca de 2,5 milhões de habitantes, apenas Paris poderia ser considerada uma grande cidade, com meio milhão. Aproximadamente vinte outras cidades contavam com uma população de cem mil habitantes.

Mas o termo ‘urbano’ também inclui a multidão de pequenas cidades de província, onde se encontrava realmente a maioria dos habitantes urbanos; aquelas onde o homem podia, a pé e em poucos minutos, vencer a distância entre a praça da catedral, rodeada pelos edifícios públicos e as casas das celebridades, e o campo34.

33 Marcel RONCAYOLO. Cidade. Enciclopédia Einaudi: Região, vol.8, 1986, p. 404. 34 Eric HOBSBAWN. Op. cit., p. 27.

Estas “cidades de província”35 não seriam, contudo, menos urbanas por serem pequenas. Por outro lado, havia uma linha bem delimitada que marcava as atividades urbanas e as atividades rurais. Ponto crucial da questão agrária era a relação entre os que cultivavam a terra e os que a possuíam, os que produziam a riqueza e os que a acumulavam. A posse da terra, ter uma propriedade, era normalmente a garantia de privilégios políticos e sociais, bem como o acesso a altos postos do Estado.

O problema agrário era portanto o fundamental no ano de 1789, e é fácil compreender por que a primeira escola sistematizada de economistas do continente, os fisiocratas franceses, tomara como verdade o fato de que a terra, e o aluguel da terra, era a única fonte de renda líquida36.

Apenas em algumas áreas ocorreu um desenvolvimento agrário em direção a uma agricultura puramente capitalista. Na Inglaterra, por exemplo, a propriedade da terra era altamente concentrada. No entanto, o agricultor típico era o arrendatário, cujo empreendimento comercial era médio e operado por mão-de-obra contratada. Pouco a pouco surgia, entre 1760-1830, uma classe de empresários agrícolas e, por outro lado, um imenso

proletariado rural37. Mas, a agricultura européia era, excluindo-se algumas regiões mais

desenvolvidas, tradicional e ineficiente. No entanto, não se deve pensar que o século XVIII era de estagnação agrícola.

Os dois principais centros europeus, centros irradiadores também da “dupla revolução”, eram Inglaterra e França. A Inglaterra era considerada o Estado mais bem sucedido da Europa e seu desenvolvimento era garantido pelo incremento econômico e desenvolvimento industrial. Desde o início do século XVIII, a Inglaterra ganhava destaque e conquistava a preponderância nos mares e no mundo ultramarino. A França, no entanto, sofria

35 Ibidem. 36 Ibidem, p. 29.

37 Para Raymond WILLIAMS é preciso relativizar a idéia de uma “Inglaterra rural” ou de uma “Inglaterra

industrial”. Considera que havia interconexões entre propriedade rural/propriedade urbana, entre propriedade industrial/ propriedade agrícola. A questão chave seria se perguntar qual interação havia entre a Inglaterra urbana e rural, a industrial e a agrícola — o mercado. O campo e a cidade na história e na literatura, 1989, p. 252.

um declínio de seu poderio continental, contra uma presença britânica cada vez mais marcante.

Londres era reconhecidamente a maior cidade do “mundo civilizado”, inspirando Voltaire a compará-la com Atenas. Isso equivalia a considerar que progresso e cultura expressavam civilização e liberdade38. Para Voltaire, a cidade tinha como função a difusão da razão e do bom gosto para os indivíduos. A atividade industrial e a busca dos prazeres refinados seriam as marcas distintivas da cidade, e desse modo, da civilização. Não Paris, mas Londres, era tomada por ele como símbolo do progresso e das luzes. Adam Smith compreendia que as cidades eram o centro da liberdade e da ordem. Assim, a base sob as qual se sustentava a cidade era o progresso da indústria e da cultura. Deste modo, tanto para Adam Smith quanto para Voltaire, “a dinâmica da civilização” estava na cidade. Ambos pensavam a história como processo e a cidade como possuidora de virtudes que contribuíam para o progresso social39.

Ao se vincular a cidade a uma determinada concepção de mundo, compreende-se também que esta seria “representativa ou visualizadora de conceitos ou de valores”40. Esses valores e conceitos são expressos tanto na dimensão física, que implicam uma organização do espaço, quanto em uma dimensão mais abstrata, relativa a um campo de atitudes e de comportamentos, porque envolve a perspectiva de ser a cidade (re)produtora de relações sociais. As concepções de cidade, as ações na cidade, não se constroem de maneira isolada, mas estão ligadas aos valores e aos princípios que norteiam uma época. Nesse sentido, pode- se conceber que as “idéias dos intelectuais sobre a cidade nos conduzem inevitavelmente para fora de seu enquadramento próprio, pondo em jogo miríades de conceitos e valores sobre a natureza do homem, da sociedade e da cultura”41.

Na segunda metade do século XVIII, circulava em diferentes pontos do globo um pensamento otimista sobre o progresso e sobre a riqueza da civilização, cuja realização apenas

38 Maria Stella BRESCIANI. Metrópoles: As faces do monstro urbano (as cidades no século XIX). Revista Brasileira de História. SP, v. 5,n.º 8/9, set. 1984/abr. 1985, p. 35-68.

39 Karl SCHORSKE. Op. cit., p. 55-59.

40 Sérgio Paulo ROUANET. A cidade iluminista. In: Cléia SCHIAVO; Jaime ZETTEL (Coord.). Memória,

Cidade e Cultura, 1997, p. 1-13.

se concretizariam por meio da cidade e na cidade. Especialmente a partir da Europa, se irradiava a crença e a convicção no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza, no controle sobre a natureza. Tais concepções em grande medida estiveram ligadas em um primeiro momento ao movimento intelectual ocorrido na Europa, e com repercussão em vários pontos do mundo, reconhecido como “Iluminismo” (ou “Ilustração”). Esta palavra encerraria para Francisco Falcon uma referência comum ao movimento filosófico do século XVIII, bem como uma certa “mística” ou “doutrina”, cujos adeptos se diziam “iluminados”. Em francês, “Luzes” (Lumières) expressaria tanto uma palavra ordem quanto um estado de espírito que seriam indicativos de um movimento intelectual, com o qual os filósofos e os homens de letras sentiam afinidades. Outras palavras, tais como Aufklärung, enlightenment,

ilustración, mas com significados que variavam conforme cada espaço cultural, eram também

utilizadas para traduzir as idéias do movimento que ocorria. O emprego destas palavras implicava a ampla difusão das Luzes e sua diversidade em espaços e tempos também variados.

No entanto, independente de uma definição quanto à sua cronologia, o iluminismo se ligaria por um conjunto de valores, conceitos e utopias. E antes de tudo, por afirmar a autonomia da razão e por desejar “impô-la a todos os domínios da vida do espírito”. O movimento do iluminismo, ou Aufklärung, como seria mais chamado pelos alemães, não esteve ligado a nenhuma escola de opinião filosófica. Mas a diversidade de formas seria de fato a tradução do “desenvolvimento e o desdobramento de uma força criadora única, de uma natureza homogênea”. Para nomear esta força ou diretriz recorre-se ao nome “razão”. Neste sentido, a “razão” é “o ponto de encontro e o centro de expansão do século, a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de seu querer e de suas realizações” 42.

Estaria em jogo uma revalorização da atividade intelectual que tinha como finalidade difundir a “luz” onde até então predominavam as “trevas”. Os que aderiam a esta cultura, os chamados “philosophes”, eram pensadores voltados para uma ação prática e reformadora da sociedade, ou da polis, submetida aos imperativos da razão. Os grupos sociais que estavam mais diretamente ligados ao movimento do iluminismo e que, portanto, se tornavam seus agentes e difundidores eram, no sentido amplo do termo, os “letrados”, ou seja, os “homens de letras” (“gens de lettres”). Deste modo, todos os que estavam envolvidos com as profissões

liberais, os oficiais ou funcionários do Estado, clérigos, artistas, e diletantes de nuanças variadas, como nobres e comerciantes. Não foram propriamente inovadores, mas antes de tudo ousados em suas críticas às instituições existentes, particularmente à Igreja e ao clero. O anticlericlarismo típico das “Luzes” francesas, não pode, contudo, ser considerado regra para toda a Europa. No entanto, afirmava-se a necessidade de manter a Igreja afastada do Estado e da política em geral.

Através da imprensa buscavam instalar no lugar do cristianismo um sistema racional de ética e filosofia, sustentado por verdades científicas. Esta perspectiva, ligada ao processo de secularização, estava associada à idéia de emancipação de cada campo de conhecimento, particularmente aqueles cujo objeto era o próprio homem, da tutela da teologia e da metafísica. A valorização do homem e uma profunda crença na razão humana e nos seus poderes está presente entre todos os pensadores. Esta valorização significava perceber que o homem devia tornar-se sujeito e dono de seu próprio destino, esperando que cada um pensasse por si mesmo.

Os problemas da natureza e os da história seriam compreendidos como formando uma unidade difícil de ser desfeita. História e natureza seriam tratadas a partir do método universal da “razão”. Isto apenas era possível porque o pressuposto era o do caráter universal e imutável da natureza humana. Isto garantia que para seu entendimento era necessário apenas descobrir as leis gerais que regessem a vida humana e suas manifestações. Tal perspectiva envolvia a idéia de um desenvolvimento incessante da razão, a certeza e entusiasmo para com a idéia de progresso, que se expressaria especialmente na crença da “perfectibilidade do homem”. Complementar à idéia de progresso encontra-se a noção de civilização que, por sua vez, liga- se a de cultura. A cultura de uma sociedade ou povo seria a tradução do progresso da humanidade, ou seja, a expressão de sua civilização.

A noção de civilização, unida à noção de progresso, remete à constituição de uma sociedade ideal e a um caminhar constante dos povos. São conceitos usados em sentido metafísico e dizem respeito à capacidade de promover o bem estar de toda uma sociedade e de a conduzir a um estado de perfeição. “Civilização” descreveria um processo, ou melhor, um resultado. Refere-se a algo que está em constante movimento, sempre para frente. Este conceito manifesta a autoconfiança e a identidade nacional dos povos, sendo o progresso decorrência destes valores. A este conceito acrescenta-se ainda a noção de “aprimoramento da

condição do homem”, que diz respeito ao ideal de prosperidade pública, ao fim da barbárie, cujo resultado seria o refinamento das relações sociais43. Em finais do século XVIII, o termo civilização assume conotações mais amplas, não se restringindo às distinções entre grupos e classes, ou apenas indicando questões referentes ao comportamento e à sensibilidade, ao espaço social de nobreza e da burguesia, mas também diferenças com relação a povos e nações.

Nos séculos XVIII e XIX existe por parte das elites intelectuais e políticas uma preocupação bastante perceptível com relação às noções de civilidade e civilização. A palavra “civilização” em português corresponde ao termo “civilisation” em francês, que se liga ao termo latino “civilitas”, que remete às qualidades que possui uma alma nobre e espiritualmente elevada. Por outro lado, o termo pode ser entendido também como a arte de governar a cidade44. De acordo com Alfredo Nicéforo, pela conotação assumida pela expressão “civilitas” no século XVIII, esta parece se identificar mais com o adjetivo latino “civilis”, que corresponderia a um indivíduo cultivado, polido, afável, cortês e refinado. Ou seja, o oposto da pessoa rústica, do campesino45. “Civilis”, dessa maneira, remeteria ao comportamento da pessoa com espírito elevado, mais do que à nobreza de espírito contida na noção de “civilitas”. O termo “civilização” foi precedido em francês por outras palavras como "civilisé", "civiliser" e "civilité", existentes no idioma desde o século XVI. De acordo com Norbert Elias, desde o Renascimento, a elite de diversas cidades européias procurou com o uso da palavra "civilité", gênese do termo "civilisation", desenvolver códigos de conduta e comportamento a serem observados. Dentre esses comportamentos podemos citar os hábitos à mesa, como não comer sem talheres ou estalando os lábios, os hábitos de expressão corporal, como o modo de assoar-se, a postura correta durante uma conversação. Estes preceitos de comportamentos eram apresentados como um conjunto de práticas que deviam ser adotadas e percebidas como

condutas de “bom tom”46. “Civilité”, portanto, dizia respeito às condutas de um homem com

43 Ver também Nobert ELIAS. O Processo Civilizador — Uma História dos Costumes, v.1, 1994.

44 Cf. Alfredo Nicéforo. Les indices numériques de la civilisation et du progrès, 1921. p. 26. Apud André Nunes

de AZEVEDO. Da Monarquia à República: Um estudo dos conceitos de civilização e progresso na cidade do Rio de Janeiro entre 1868 e 1906, 2003 (Tese de Doutorado – PUC/RJ).

45 Ibidem, p. 27.

“civilisation”, visto que a primeira era compreendida como refinamento, entendimento e execução de uma conduta. E quanto ao espaço da realização destas potencialidades, ninguém duvidava de que fosse a Europa e os europeus “os povos mais policiados, civilizados e melhores do planeta”47.