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2.3 PRINCIPAIS INFLUENCIADORES

2.3.2 Olivier Messiaen

Olivier Messiaen nasceu em 1908, na cidade de Avignon, França. Estudou composição e órgão no Conservatório de Paris entre os anos de 1919 e 1930, sob orientação de Paul Dukas e Marcel Dupré, respectivamente. Logo após, assumiu o cargo de organista na igreja da Trinité, em Paris, o qual ocupou até sua morte, em 1992.

Durante o tempo no Conservatório foi exposto a várias tradições musicais que nele exerceram grande influência, principalmente através de outro professor do Conservatório, Maurice Emmanuel, que interessava-se pela música da Grécia

antiga, canções folclóricas, modos exóticos e liturgias cristãs. Foi nesse período que Messiaen descobriu os ritmos do sul da Índia, sendo L'Ascension, para órgão e orquestra (1933-34), a obra em que pela primeira vez os introduz.

Para Messiaen, o componente mais importante da música era o ritmo, sendo que seu repertório não abrangia apenas ritmos hindus, utilizava também modelos de metrificação da poesia clássica grega, assim como foi muito influenciado por Stravinsky, especialmente pela técnica celular da Sagração da Primavera. Tudo isso levou-o a estabelecer um novo vocabulário de formulação rítmica.

Devemos a Olivier Messiaen – a partir do estudo profundo que fez do cantochão, da rítmica hindu e de Stravinsky – a criação de uma técnica consciente das durações. O fato é sem dúvida de importância, já que […] é preciso retornar ao século XIV para reencontrar preocupação semelhante na música ocidental; enquanto isto foi uma das constantes da música de outra civilizações (África Negra, Índia, Ilhas de Bali e de Java). (BOULEZ, 1995, p. 161)

Seguindo a mesma linha, Tragtenberg (1991, p. 194) afirma:

Desenvolvendo especialmente o sentido rítmico de sua música, Messiaen combinou os ritmos irregulares da tradição neumática da música indiana com a articulação em números proporcionais da notação musical ocidental, obtendo resultados métricos que acrescentam novas fórmulas em relação à rítmica de Stravinsky, que foi uma influência marcante em sua formação musical.

Vemos que o repertório rítmico de Messiaen é bastante abrangente, mas utilizado à sua maneira, destituído de suas funções originais. Portanto, a utilização de ritmos hindus não dá à música de Messiaen uma sonoridade especificamente indiana. Para Griffiths (1998), isso demonstra-se em, por exemplo, Turangalîla- Symphonie.

[…] a orquestração percussiva, à maneira do gamelão, numa obra como a Turangalîla-Symphonie (1946-48), que inclui celesta, vibrafone, glockenspiel e outros instrumentos de metal: o colorido pode ser balinês, mas vem associado a materiais rítmicos e

harmônicos de outras origens, resultando num efeito global que é puro Messiaen. (p. 120-121)

Ainda para Griffiths (1998, p. 121), a habilidade de Messiaen “para fundir idéias musicais de diferentes procedências em uma música imediatamente reconhecível escora-se sobretudo na harmonia modal que adotou, seguindo basicamente exemplos ocidentais: Debussy, Liszt, os nacionalistas russos e o cantochão”.

Suas formulações musicais devem-se muito à sua profunda fé católica. Para Messiaen (1956, p. 13, tradução livre), “a música deve ser capaz de expressar sentimentos nobres (e especialmente os mais nobres de todos, os sentimentos religiosos exaltados pela teologia e as verdades de nossa fé católica)”27, o que levou-

o a buscar paralelos em várias culturas musicais, tendo sua música uma característica mais estática do que dinâmica, avessa à lógica musical predominante do desenvolvimento.

[…] Messiaen sentiu a necessidade de manifestar sua crença na música como arte séria, dotada para exprimir o maravilhoso e o profundo, e encontrou no modalismo um universo musical inocente. Ele permitia progredir sem ironia, tomando por referência culturas nas quais a música estivera intimamente ligada à religião – a Europa medieval, a Grécia clássica e o Oriente (GRIFFITS, 1998, p. 121)

Para isso, trabalhou com o que chamou de Modos de transposição limitada, que são seleções simétricas das doze notas da escala cromática, assim como na escala de tons inteiros. Griffiths (1995, p. 137) explica que esses modos “neutralizam as forças harmônicas de longo alcance atraindo os acordes diatônicos para configurações baseadas em divisões simétricas da oitava, notadamente o acorde de sétima diminuta e a tríade aumentada”. Trabalhou também com ritmos não retrogradáveis: ritmos simétricos que quando lidos de trás para frente (retrogradados) tornam-se idênticos à sua ideia inicial, de frente para trás. São

27

music should be able to express some noble sentiments (and especially the most noble of all, the religious sentiments exalted by the theology and the truths of our Catholic faith)

palíndromos rítmicos. Ambas as ideias têm a mesma origem e acabam por complementar-se na construção musical, uma demonstrando-se horizontalmente (ritmos) e a outra verticalmente (modos), evidenciando o que Messian denominava de “charme das impossibilidades”.

Esse charme, ao mesmo tempo voluptuoso e contemplativo, reside particularmente em certas impossibilidades matemáticas dos domínios modal e rítmico. Modos que não podem ser transpostos além de um certo número de transposições, já que sempre acabam caindo nas mesmas notas; ritmos que não podem ser retrogradados, porque neste caso se achará a mesma ordem de valores outra vez – essas são duas notáveis impossibilidades. […]. Nota-se imediatamente a analogia dessas duas impossibilidades e como elas se complementam, os ritmos fazendo no sentido horizontal (retrogradação) o que os modos fazem no sentido vertical (transposição).28 (MESSIAEN, 1956, p. 13, tradução livre)

Como essas figuras não retrogradáveis, a música desprende-se de sua lógica temporal linear, de desenvolvimento. Stolp (2006) coloca que há simbolicamente nessa ideia uma tentativa de transcendência à perspectiva humana de unidirecionalidade do tempo, há uma intenção de aproximar-se ao tempo divino, já que, dentro da perspectiva cristã, Deus está fora da concepção humana de tempo.

O tempo regular move-se em direção ao futuro – nunca retrocede. O tempo psicológico, ou tempo do pensamento, vai em todas as direções: para frente, para trás, cortado em pedaços, à vontade... Na vida da Ressurreição, viveremos em um tempo maleável e cambiável. O poder do músico, que retrograda e permuta suas durações, nos prepara, de uma pequena maneira, para essa vida. (MESSIAEN apud STOLP, 2006, p. 16, tradução livre)29

28 This charm, at once voluptuous and contemplative, resides particularly in certain mathematical

impossibilities of the modal and rhythmic domains. Modes wich cannot be transposed beyond a certain number of transpositions, because one always falls again into the same notes; rhythms wich cannot be used in retrograde, because in such a case one finds the same order of values again – these are two striking impossibilities. […]. Immediately one notices the analogy of these two impossibilities and how they complement one another, the rhythms realizing in the horizontal direction (retrogradation) what the modes realize in the vertical direction (transposition).

29 regular time moves towards the future – it never goes backwards. Psychological time, or time of

thought, goes in all directions: forward, backwatds, cut in pieces, at will...In the life of the Resurrection we will live in a duration malleable and transformable. The power of the musician, who retrogrades and permutes his durations, prepares us, in a small way, for that state”

Para Messiaen, a natureza é uma revelação divina, devendo o músico, portanto, ser sensível às várias escalas de tempo, superpostas umas às outras, que nos cercam: o tempo praticamente infinito das estrelas, o tempo muito longo das montanhas, o tempo mediano do ser humano, o tempo breve dos insetos, o tempo muito breve dos átomos, assim como o tempo psicológico, completamente livre de qualquer amarra. Através do ritmo é possível fazer experimentações com o tempo abrindo novas relações temporais. O tempo pode ser cortado, depois pode ser juntado novamente na ordem inversa. É como se pudéssemos andar em diferentes pontos do tempo, articulando passado, presente e futuro.

Outra técnica utilizada por Messiaen, tendo em vista ritmos amétricos, foi a adição de um valor curto a qualquer ritmo, fosse através de uma nota, uma pausa ou um ponto. Quando esses “valores adicionados” fossem empregados com frequência, toda a regularidade métrica era minada. Vale mencionar que as barras de compasso em Messiaen não marcam unidades fixas de tempo, mas sim, células rítmicas de duração variável, servindo apenas como pontos de referência coordenando as relações harmônicas entre as vozes.

Griffiths (1998, p. 123) vê em La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus- Christ (1963-69) “a suma teológica e musical de Messiaen”, sendo que estão reunidos aí os temas que a Messaien sempre foram caros: “o mistério da Trindade, a divindade do Cristo, a filiação do homem a Deus, a grandeza da natureza como revelação da majestade divina”. Griffiths (IDEM, p. 123) também explica que, “em termos musicais, a obra desenrola todo o repertório de ideias e técnicas do autor, dos ritmos hindus à percussão do gamelão, da métrica grega à harmonia modal, da melodia de cantochão ao canto dos pássaros”.

Este último, o canto dos pássaros, foi uma das principais fontes da música de Messiaen, principalmente a partir da década de 50. O autor, sobre esse canto, diz:

Para mim, toda a música está aí. A música livre, anônima, improvisada por gosto, para saudar o sol que se levanta, para seduzir a bem-amada, […] para atravessar o tempo e o espaço e

fazer generosos e providenciais contrapontos com seus vizinhos de habitat. […] O canto dos pássaros está acima dos sonhos do poeta e, sobretudo, muito acima do músico que tenta transcrevê-lo. (MESSIAEN apud MASSIN, 1997, p. 1130)

Schafer (2001, p. 155) afirma que as canções dos pássaros sempre irão sugerir delicadeza de sentimentos, sempre aparecendo em música em deliberada contradição à brutalidade da vida exterior. “É desse modo que ela entra em oposição às forças malignas do Anel de Wagner e é sustentada por Olivier Messiaen em nosso tempo, pela mesma razão.”

O canto dos pássaros já aparece na obra de Messiaen desde antes da década de 1950, como em, por exemplo, Quatour pour la fin du temps, obra de 1940-41, tempo em que foi prisioneiro de guerra, tendo-a apresentado pela primeira vez com seus companheiros de cativeiro. Mas foi Le merle noir (1952) a primeira obra inteiramente baseada no canto dos passáros. Seguem-se Réveil des oiseaux (1953), Oiseaux exotiques (1955-56) e Catalogue d’oiseaux (1956-58).

Catalogue d'oiseaux para piano, por exemplo, é uma coleção de peças, sendo que cada uma delas apresenta uma representação sonora de determinado pássaro em seu habitat, em, frequentemente, uma hora específica do dia.

As representações dos cantos dos pássaros são tão exatas quanto possível, e as cores do céu, das plumagens e do ambiente vêm traduzidas em harmonias que, para ele pelo menos, evocam a apropriada impressão visual. O que ele chama de 'segundo modo de transposição limitada', por exemplo, 'gira em torno de certos violetas, certos azuis e do roxo violáceo – enquanto o modo n. 3 corresponde a uma laranja com matizes vermelhos e negros, um toque dourado e um branco leitoso de reflexos furta-cor, como nas opalas'. (GRIFFITHS, 1998, p. 126)

Na transição da década de 1950 para a de 1960 surge Chronochromie (1959- 60), na qual o canto dos pássaros começa a ser misturada a construções abstratas e paisagens de montanhas, assim como misturam-se ao cantochão e ricas harmonias em Couleurs de la Cité Céleste (1963).

A década de 1960 surge para Messiaen, assim como para muitos compositores, como espaço para a heterogeneidade. No caso de Messiaen, esse é um momento em que tenta unir os vários componentes de sua linguagem, desenvolvida ao longo de quatro décadas. É importante frisar que a intenção não era a síntese, mas sim, a abertura de espaço para a complexidade.

Messiaen exerceu importante papel como professor, tendo, logo após sua saída da prisão, retornado ao Conservatório para ensinar, em 1942. Sua atividade docente, assim como seu trabalho como compositor, tiveram profunda influência sobre a geração pós Segunda Guerra, estando entre seus alunos, por exemplo, Pierre Boulez e Karheinz Stockhausen. Várias obras importantes foram compostas durante esta década, como Visions de l’Amen (1943), Trois petites liturgies (1943- 44), Vint Regards sur l’Énfant-Jésus (1944) para piano, Harawi (1945), Turangalila- Symphonie (1946-48), assim como o famoso Mode de Valeurs et d'Intensités, sendo este o terceiro estudo dos Quatre Études de Rythme para piano (1949-50), que causou profunda influência nas novas ideias composicionais dos anos seguintes.

Devemos a ele sobretudo – entre outras aquisições – a idéia primeira de ter desligado a escrita rítmica da escrita polifônica […]. É assim que ele realiza seus primeiros cânones rítmicos, seja por aumentação seja por diminuição ou ainda por adição de ponto, origem de toda uma técnica polirrítmica. Devemos a ele as ampliações simétricas ou assimétricas de células rítmicas, e ainda o fato de ter estabelecido a diferença entre ritmos retrogradáveis e ritmos não-retrogradáveis.

Devemos ainda a ele a criação de modos de durações nos quais a rítmica ganha um valor funcional; devemos-lhe, enfim, a preocupação de estabelecer uma dialética das durações por meio de suas pesquisas de uma hierarquia nos valores (oposições variáveis de valores mais ou menos curtos e de valores mais ou menos longos, pares ou ímpares), dialética que, ao atuar sobre as estruturas de neumas rítmicos, fornece a ela própria um meio de desenvolvimento musical. É preciso considerar igualmente como muito importantes as pesquisas que ele efetuou ao criar, paralelamente aos modos rítmicos, modos de intensidade e modos de ataque.

Esta sucinta enumeração é o suficiente para provar o quanto os princípios rítmicos seriais que expusemos não poderiam ser concebidos sem a inquietação e a técnica que Messiaen nos transmitiu (BOULEZ, 1995, p. 161)

Talvez a maior lição de Messiaen, tanto para Griffiths quanto para Boulez, tenha sido a de que tudo pode ser utilizado para a criação de uma obra. Tudo pode tornar-se música.