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5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

5.1. CASO 1 – Miguel

5.1.3 A análise da rememoração escrita 1

5.1.3.1 Omissão

Quanto ao fenômeno da omissão dos dados da história do crime narrada na peça da denúncia, pode-se destacar as seguintes observações:

Na comparação entre a peça da denúncia e a rememoração escrita 1 é possível identificar a omissão de conteúdos específicos, como a hora (“por volta das 22 h”), o endereço (“na rua Constância”), ambientes (“em um campo de futebol, Campina Verde”) e os nomes das pessoas envolvidas na cena do crime (“Severino e Francisco” / “Farias” e “Leonardo”). Semelhantemente aos dados encontrados por Bartlett (1932), o promotor de justiça apresentou uma tendência a se lembrar apenas nos pontos principais da narrativa. Por pontos principais, entende-se a sequência de eventos, que compõem a estrutura central da história. Eles são necessários para a expressar a cena do crime no todo.

Esse fenômeno implicou na omissão de diversos detalhes (datas, nomes, endereços...), os quais podem ser considerados informações secundárias, pois eles contextualizam os eventos, situados na estrutura central da história. Diante disso, pode-se destacar duas vias de explicação possíveis para esse processo de omissão de informações contextuais.

A primeira diz respeito uma tendência do participante a ser mais direto e sintético em suas falas, características observadas durante os seus diálogos com a pesquisadora (desde o primeiro contato) e na sua atuação no Tribunal do Júri (observações realizadas pela pesquisadora durante sessões do júri acompanhadas até mesmo antes da realização deste estudo). Na segunda via de explicação, as omissões destacadas acima podem estar ligadas à prática profissional dos operadores do Direito de simplificar as informações nas explanações para os

jurados no Tribunal do Júri. Por, geralmente, esses indivíduos serem leigos quanto ao saber jurídico, os promotores de justiça e os advogados de defesa precisam “traduzir” com objetividade as narrativas dos processos judiciais.

Outro ponto que pode também ser atrelado a segunda via explicativa se refere à busca por se afastar afetivamente da história do crime, a qual é necessária para a realização de julgamentos imparciais. A essa interpretação se pode associar à informação de que o promotor de justiça evita memorizar os nomes dos acusados, para não personalizar os casos de crimes que estuda para atuar no Tribunal do Júri.

Infere-se que menos detalhes de informações contextuais facilitam um olhar mais objetivo sobre o evento, pois menos sentimentos e significados culturais são “recrutados” na formulação das interpretações sobre a história. Nessas condições, menos aproximação afetiva ou identificativa acontece, logo, se torna possível o promotor de justiça ir ao encontro do princípio jurídico da imparcialidade, apresentando a verdade real do processo judicial. Lembrar do eixo principal da história é suficiente para observar o enquadre jurídico, condenatório ou absolutório, do evento. Esse é um dos papeis do promotor de justiça atuante no Tribunal do Júri. Por conseguinte, aqui se destaca a função adaptativa da omissão das lembranças, mencionada por Bartlett (1932). Na presente pesquisa, entende-se que as omissões destacadas aconteceram nas trocas entre o participante (modo de ser, interesses, expectativas, crença de que o réu é culpado, conhecimentos sobre o processo judicial, etc.) e o meio (pesquisa sobre memória, participação no julgamento do crime alguns minutos depois, significados culturais compartilhados sobre o tipo do crime, papel de fiscal da lei, representações sociais sobre a função do promotor de justiça, etc.).

Em outras palavras, omitir informações durante a rememoração não denota, necessariamente, incapacidade do indivíduo evocá-las por os traços das lembranças terem se esvaecido, como destacado pela teoria da deterioração. Os dados desta pesquisa mostram ser possível que em condições diferentes essas lembranças omitidas podem ser expressadas – no caso 2 será abordado melhor sobre essa questão.

Quanto ao relato dos eventos que compõem o cenário do crime, o promotor de justiça desconsiderou as informações referentes à localização das vítimas, quando foram abordadas pelos acusados (“estavam assistindo a um jogo de futebol” - Quadro 1) e o efeito das ações desses indivíduos no ambiente, no início da execução do crime (“causando a maior confusão” - Quadro 1). Para a explanação dessa observação considere o Quadro 3:

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Quadro 3 - Comparativo da sequência de eventos da cena do crime entre a peça da denúncia e a rememoração escrita 1.

X: ausência de informação correspondente

Nas omissões apresentadas acima, os dados excluídos nos extratos 01 e 03 (Quadro 3) da coluna da rememoração escrita 1 contribuem para o esclarecimento contextual do crime. As informações da sequência de eventos excluídas na rememoração escrita 1 (Quadro 2) representam dados específicos e mostram ter lugar secundário para o entendimento da história como um todo. Dados semelhantes a estes estiveram, também, presentes nos trabalhos de Bartlett (1932). Contudo, além desse papel secundário, elas permitem uma visualização mais completa de como procedeu a execução do delito. Portanto, esses detalhes, se não omitidos, parecem contribuir para a aproximação afetiva dos indivíduos aos fatos relatados.

Como afirmado por Bartlett (1932), o processo de reconstruir as informações de um material envolve retorno a uma massa ativa de experiências passadas, junto com os afetos e sensações a essas correspondentes. Assim, devido à tendência das pessoas significarem as suas interações no mundo (Valsiner, 2007, 2012), as suas reconstruções sobre as histórias de crimes implicam a articulação de significações já formuladas nas vivências anteriores, as quais possuem envolvimento afetivo dos indivíduos. Segundo Schritzmeyer (2007, p. 77):

Tipos de afetos característicos, portanto, são estabelecidos no Júri, como, por exemplo, considerar a vingança, por motivação “relevante”, não definidora de torpeza num assassinato, mas fator atenuante para o réu. Num caso em que se levanta esse tipo de discussão, o que mais importa são valores morais em função dos quais jurados decidem o que socialmente legitima ou não um homicídio.

Segundo Greco (2006), o homicídio doloso é o tipo de delito diferenciado em relação aos demais crimes, pois reúne uma grande mistura de sentimentos. Ele parece implicar grandes repercussões de rejeição na sociedade, pois se trata de crime contra a vida (Tavares, 2013; Cruz, 2006). Talvez isso se deva por esse evento trazer à tona os significados sobre a finitude da

Extrato Peça da denúncia Rememoração escrita 1

01 as vítimas estavam assistindo a um jogo de futebol X

02 quando os executados de surpresa, chegaram

atirando

Ao encontrarem tal pessoa, ambos passaram a atirar

03 causando a maior confusão, X

existência humana, com o agravante de ela ter ocorrido de modo não natural, mas por uma atitude violenta (concretizou-se devido ao desejo de alguém).

Como afirmado por Leite (2014) “O homicídio marca profundamente o seio de uma comunidade pela forma violenta através da qual um ente é retirado do convívio.” (p. 109). De acordo com a autora, desde as sociedades antigas ele desperta o desejo de vingança nas pessoas envolvidas. Segundo Capez (2012), o homicídio é o crime por excelência, porque a vida é o primeiro bem do homem. Todos os direitos garantidos por lei parte do direito de viver. Matar alguém é atentar contra a segurança das pessoas.

O crime abordado no fragmento da peça da denúncia rememorado pelo promotor de justiça não retratou um homicídio concretizado. Porém, ele apenas não foi consumado por vontade alheia a dos acusados, como narrado no processo judicial e propagado pelo promotor de justiça. Logo, nessas condições, o olhar que é dado ao acusado não parece ser amenizado, apenas por o crime ter sido tipificado juridicamente como tentativa de homicídio. O desejo do réu de matar não deixou de existir e esse parece ser um aspecto importante nas decisões dos jurados, como indicado na literatura (por exemplo, Vainsencher & Farias, 1997).

O papel de promotor de justiça de Miguel se articula com o seu papel de cidadão da mesma sociedade em que os jurados se inserem, construído ao longo do seu desenvolvimento pessoal. Portanto, certamente os significados referidos no parágrafo anterior fizeram parte da sua formação, tornando-o mais suscetível aos afetos emergentes no meio social, referentes a intensa rejeição às práticas de homicídios. Segundo Valsiner (2012), dependendo nível de abstração desses significados na constituição dos seres humanos, aqueles guiam as ações destes, mesmo que esses indivíduos não estejam conscientes disso.

Miguel referiu em entrevista que uma das funções do promotor de justiça é a de “amortecedor da violência” (sic.), que a cidade vivencia todos os dias. Essa sua compreensão mostra-se relacionada ao desejo de punir os culpados, pelo ato violento contra o bem maior das vítimas: a sua vida. Esse é um desejo alimentado pelo sentimento de vingança compartilhado socialmente, direcionado a quem burla a lei, principalmente quando se ameaça o direito de viver de alguém.

Contudo, nesse mesmo cenário se configura o princípio jurídico da imparcialidade, pelo qual o trabalho dos juízes e dos promotores de justiça deve se configurar no Brasil (Nucci, 2005). Assim, apresenta-se um ponto de tensão entre o sentimento de vingança presente na posição de cidadão comum (cuja constituição teve início muito antes da formação jurídica) e a atuação imparcial que se deve ter enquanto profissional do Direito ético. Desse modo, o desejo

5. Resultados e discussão 75 por punição, de alguém que ocupa o banco dos réus, precisa ser expressado de forma equilibrada no plenário do Tribunal do Júri para não entrar na lógica de “condenar a todo custo” (sic.), que o participante referiu não concordar.

A tensão gerada por aqueles sentimentos ambivalentes parece ser psicologicamente revolvida com a busca pelo afastamento afetivo, racionalizadas pelo próprio Miguel mediante a sua postura de evitar memorizar nomes dos réus, para “não tornar pessoal” (sic.). Assim, neste primeiro estudo de caso, a referida busca pelo distanciamento afetivo pode ser observada na rememoração mediante a omissão das informações contextuais, dentre as quais estão os nomes dos réus, como já discutido anteriormente.

Contudo, assim como a atuação imparcial, na perspectiva de Miguel, o significado de “amortecedor da violência” aparece com elemento importante na prática de um bom promotor de justiça. Ou seja, este profissional deve desenvolver uma tese convincente de condenação do réu, nos processos judiciais em que há indícios de este é culpado para que o mesmo seja punido pelo seu delito. Isso pode ser demonstrado na rememoração escrita 1, por exemplo, no próprio modo de rememorar a cena do crime, como apresentado no Quadro 3, que enfatizou a atuação transgressora e má intencionada do réu, quase não apresentando informações sobre as vítimas.

Outro elemento omitido na rememoração escrita 1 foi a informação de que as vítimas sobreviveram, devido ao trabalho eficiente dos médicos que lhes prestaram o atendimento de urgência (“lesões estas que somente não foram as causas das mortes destas, devido à perícia dos médicos que as atenderam no hospital” - Quadro 1). Concomitante a isso, não foram referenciados os laudos das perícias médicas, acerca das lesões provocadas pelos acusados, presentes no processo judicial (“lesões descritas nos laudos de fls. 28 e 29” - Quadro 1).

Observa-se que essas informações são importantes como elementos de prova, quanto à intenção dos acusados de matar as vítimas (não morreram por causa do atendimento médico recebido) e a materialidade do crime (perícias médicas sobre as lesões sofridas pelas vítimas). Assim, no crime rememorado por Miguel, elas funcionaram como dados de suporte para dois elementos rememorados: “resolveram matar um desafeto” e “ambos passaram a atirar, tendo atingido o alvo e também outra pessoa que estava ao lado.” (Quadro 2), respectivamente. Nesse sentido, trataram-se de dados imprescindíveis para fundamentar o início das investigações judiciais e a sustentação na sessão do júri.

do participante quanto ao objetivo geral proposto nesta pesquisa28. Os significados decorrentes da situação de pesquisa pareceram ter influenciado a omissão dos elementos de provas na rememoração escrita 1. Essas foram construídas após a ocorrência do evento, durante as investigações, para que o mesmo fosse categorizado na linguagem jurídica. Assim, pode-se explicar as omissões dos referidos dados, mediante a instrução dada pela pesquisadora e o entendimento de que eles se configuram em uma repercussão do evento, e não em parte do acontecimento, em si.

Esses dados remetem ao papel dos conhecimentos prévios e dos objetivos de quem rememora no processo de reconstrução das lembranças, em articulação com a demanda social que lhe foi dada (situação da pesquisa). Conforme afirmado por Bartlett (1932), as pessoas significam o material a ser rememorado e a situação em que eles se inserem durante a rememoração. Mais uma vez, destaca-se a função adaptativa da rememoração, ela não depende apenas de processos internos dos indivíduos, mas também considera as demandas sociais emergentes no meio em que esses se inserem de modo integrado.