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4 A RECONDUÇÃO DA QUESTÃO DO SER NA QUESTÃO DA TECNOLOGIA

4.1 Onde se encontram, o primeiro e o segundo Heidegger

Acaso ainda não esteja clara a relação íntima que se dá entre a questão da tecnologia da informação e a questão do Ser, o que, aliás, justifica sobremaneira as escolhas metodológica e referencial desta pesquisa, a reflexão deste capítulo começará justamente sobre esse ponto. É marcante o crescente interesse de Heidegger, após Ser e Tempo, sobre o que se passa no mundo à sua volta, notadamente o progresso, as mudanças sociais, o destino geral da humanidade. Após a II Guerra Mundial, o tom crítico e amargo em relação à ciência e aos avanços tecnológicos torna- se mais forte. Sistematicamente, não importando o tema, seu discurso recai sobre observações com relação à tecnologia pós-industrial, destruição da Natureza, do declínio à possibilidade, para ele cada vez mais concreta, de extermínio da humanidade. Estabeleceu-se entre os comentadores e pensadores da atual Academia a idéia de uma mudança geral de pensamento que teria tomado Heidegger, o que haveria gerado uma cisão clara em sua obra pós-ST. Para alguns, não está totalmente claro como poderia ainda um “terceiro Heidegger”, mas pelo menos, a idéia de um “segundo” é largamente aceita.

Embora não seja objetivo fim deste trabalho investigar essa classificação para reafirmá-la ou refutá-la, e ainda não esquecendo de considerar que ela pode servir para fins metodológicos, surge como incontornável, no encaminhamento para as conclusões advindas da apresentação conceitual proposta no primeiro capítulo e dos pressupostos enumerados no segundo, a observação sobre o imbricamento entre a questão da técnica e a pergunta pelo sentido do Ser.

Também não se trata de julgar as diferenças graduais de valor entre uma fase e outra, como por exemplo pensou Emmanuel Lévinas1, que denotou como uma das marcas da cisão o desaparecimento da fenomenologia, “par la première place que commence à occuper dans ses

analyses les étymologies”.2 Sem negar a importância dessa abordagem, no entanto, ele pondera que, “la sagesse du mot joue un rôle d´illustration, adjacent”,3 o que faz, para ele, a filosofia

1 LÉVINAS, E. L´être dans la pensée de Heidegger; l´autre et son visage. Anthólogie de la pensée française par les philosophes du XXéme siécle. [jan. 2003] Paris: Frémeux & Associés. CD sonoro (10min).

2 “pelo primeiro lugar que começa a ocupar em suas análises as etimologias” (tradução nossa) 3 “A sabedoria da palavra têm um papel de ilustração, adjacente” (tradução nossa)

do “segundo Heidegger” menos convincente. Para Lévinas, a verdade filosófica produzida em Ser e Tempo, “l´oeuvre ultérieur jamais produit”.1

Porém, a idéia difundida como senso comum de que Heidegger teria abandonado o projeto filosófico inaugurado em Ser e Tempo e se voltado para um outro completamente díspar, o que marcaria uma certa descontinuidade em sua obra – é essa justamente a qual o resultado a que chegou esta pesquisa não pode concordar. Esta é, aliás, uma idéia extremamente nociva à compreensão de seu legado, influindo, inclusive, na compreensão do verdadeiro significado que a técnica ocupa na filosofia de Heidegger. A técnica, por fim, a tecnologia, como modo de des- velamento, é um modo de devir, expondo de maneira particular e intrigante o jogo entre Ser e ente. Assim sendo, conclui-se que Heidegger jamais retirou seu olhar desse jogo, tendo-se em conta como suas idéias começaram na formulação do acontecimento-apropriador [Ereignis] e findaram na serenidade [gelassenheit], conceitos a serem discutidos mais adiante.

Zaine Ridling2, ao comentar o pensamento do Heidegger tardio, diz:

From Being and Time one might get the impression that we can find such an alternative simply by taking a fresh look at our own everyday existence. But Heidegger now seems to believe in that. in the modern age, everyday existence is so impoverished and corrupted that what we need is a radical revolution in our relationship to Being itself.3

A revolução radical aludida por Ridling somente poderia se dar a partir da tecnologia ela mesma; a técnica, apesar de toda a ameaça que aporta e talvez tão somente por ser a própria ameaça, é quem fornece o caminho para a espera da mudança. A tecnologia da informação, imperativo do hoje, dita como as coisas são, nela se encerra a possibilidade cotidiana do ser dos entes. Portanto não há como negar que esta é, renovada a perspectiva, desde sempre a questão do Ser. Se retomada a reflexão da primeira seção do primeiro capítulo, vê-se

Heidegger afirmar veementemente essa possibilidade: “pode então este enviar ainda se chamar um consentir? Sem

1 “A obra ulterior nunca produziu” (tradução nossa)

2 RIDLING, Z. The lightness of Being: a comprehensive study of Heidegger´s thought. Kansas: Access Foundation, 2001. p. 525-526.

3 “Em Ser e Tempo alguém pode tirar a impressão de que nós podemos achar uma alternativa, simplesmente ao dar uma olhada na nossa existência cotidiana. Mas Heidegger agora parece acreditar que, na idade moderna, a existência cotidiana está tão empobrecida e corrompida que o que nós precisamos é uma revolução radical na nossa relação com o Ser ele mesmo.” (tradução nossa)

dúvida, e muito mais se nesse destino devesse crescer aquilo que salva”.1 O enviar ao qual ele se refere é a destinação imposta pelo enquadramento, de descoberta dos entes em uma determinada direção. Embora direcionada ao encobrimento, ainda assim, é em sua essência descoberta, desalbergamento que concede, o que lhe confere a possibilidade de, ao mesmo tempo em que condena, salvar.

Justamente na armação [enquadramento], que ameaça arrastar o homem no requerer enquanto, supostamente, o único modo de desabrigar e, assim, impulsionar o homem ao perigo do abandono de sua livre essência, justamente nesse extremo perigo vem à luz o pertencimento íntimo e indestrutível do homem àquilo que consente, a supor que comecemos a fazer a nossa parte atentando para a essência da técnica.2

O despertar do olhar sobre a questão do ser para a questão da técnica centra-se na ambigüidade de sua essência; reconhecer, atentar para esse duplo e, sobretudo como se defenderá mais adiante, permanecer numa constância do olhar para esse duplo é a tarefa proposta por Heidegger que se inicia como ação do pensamento mais apropriada para viver o hoje. Mas, contudo, esse trata-se apenas do primeiro passo, pois “desse modo, ainda não estamos salvos. Mas somos convocados para sermos esperança na crescente luz do que salva”.3 Esclarecido sumariamente o elo entre a questão do Ser e da técnica, é possível agora percorrer o caminho em direção ao essencial “daquilo que hoje é”.